sexta-feira, dezembro 29, 2006

uma mulher sente...

uma mulher sente, uma mulher sabe...
hoje pareces-me um outono inclinado, enganado, a véspera do inverno.
uma mulher sente, uma mulher treme...
resta um pouco de dia, uma pompeia por submergir: tu a examinares o quê?
uma mulher sente, uma mulher sabe...
( não há sorriso burguês que apague a certeza que lhes oferece esse silêncio)
uma mulher sente, uma mulher sabe...
hoje pareces-me uma penugem de cisne a pesar como chumbo; hoje pareces-me a bengala de ti mesmo.
uma mulher sente, uma mulher sabe...

insensata toda a palavra que não o grito que não é palavra
insensata toda a desculpa que não a culpa de não ter culpa
insensato todo o pedido que não seja: isso, isso, isso, minha besta...
uma mulher sente, uma mulher sente, uma mullher sente...
tão mais que o sentir que queres que sinta na pergunta: sentes, sentes, SENTES, querida?

uma mulher sente, uma mulher recorda
uma morte pelas pernas, uma vida pela boca
uma mulher insensata sente, uma mulher triste recorda
e sabe que não sentes.

quarta-feira, dezembro 27, 2006

veneno

com uma reforma de dez dias para gozar, pede ajuda sempre que acorda: o silêncio de não ter de se apressar e, nesse silêncio, que é o vazio dos pretextos, está aterrorizada.
saberá alguém dessa (sua) reclusão?
os demónios todos a aproveitarem o carro que não sai do parque em frente:
- hoje ficas por cá?
a cabeça cheia do seu veneno, o medo de se perder nele, o tempo sem o amparo dos horários.
- vais chorar, doida?
talvez ficar de pé, a provar o equilíbrio; talvez correr à frente do medo, a cansar a ansiedade; talvez pegar no telefone, a descobrir uma pessoa.
isto dói.

segunda-feira, dezembro 25, 2006

vício, amor?

pode o amor nascer de um vício? ou: pode o amor ser já esse vício? ou: pode um vício ser amor?
querer repetir é miserável, de pouco que exprime o querer da viciada; quer que a repetição seja só o princípio da pronunciação da próxima vez. transportada nesse momento incerto, não lhe chega a memória aflita da pele a arder; quer, é isso que quer, dar mais, provar mais fundo, ousar como se não ousa, dar-se até ao gesto que o outro se proíbe, menos ali, onde se vê adiada, suada.
pode o amor ser um vício?
tantas histórias de amor, os sintomas todos outros, aqui um pulsar diferente, por ver no outro o mesmo abismo: quem se mata primeiro, meu amor?
pode o amor ser pensar pela boca, pode o amor ser respirar pelo cérebro? não é desejo, porque o desejo não mata os cenários depois dele, e os cenários andam mutilados, aos bocados, uma guerra: uma guerra pacífica, por isso de amor?
querer, querer, querer, em paz, isso, em paz, querer, fazer tudo o que nos seja exigido, por este fogo, pelo outro, por nós, por uma cabeça assim como a nossa, a mesma transgressão, e a paz de se saber um espelho, e a paz de querer o repouso e o verbo naqueles braços: é isso, o amor?
ou: isso também é amor?
mesmo sem a imposição de dar nome a um bicho novo, não sei o que faça com os antigos.

sábado, dezembro 23, 2006

eclipse

- estou tão doente, minha querida. que é feito do negro dos meus cabelos?
o outro homem, na cadeira a metro e meio de distância opaca, olha a frase a cortar o ar do quarto e vinca com a sua dor todas as rugas que lhe mascaram as agressões.
- tu tens a beleza e a força da juventude e sim, vê-se bem a tua violência, não te darei o que esperarias de mim, uma ilegitimidade, os meus lábios nos teus, digo-te apenas que estou tão doente, minha querida, que me pesa o silêncio do telefone.
a mulher pousa a mão nos dedos dele, treme, como sempre, a não se atrever no gesto longo sem o medo de quebrar a rotina da solidão.
- arrisca-te, nesta violência, pior não ficas, conta-me todas as tuas mortes.
- essa tua crença nas palavras, que eu não tenho, estou tão doente, minha querida, essa tua crença na confissão, católica, eu não acredito em nada disso.
- o que queres de mim?
- que fiques aí, a ouvir, a dar-me proximidade; eu acredito no poder da proximidade, esquece a possibilidade de uma história, a minha vida tramada, estou tão doente, minha querida.
o outro homem lambe a mortalha e apaga-se do cenário, até ser chamado, um grito numa mão que lhe ampara as costas, a da mulher, que lhe inveja o corpo, o único que o outro não estranha.
- ajuda-me, diz.
seis janelas após o alcool a calar os argumentos; seis tumores sobre o mundo daquela sala: os olhos deles.
a segurança de se receber um corpo novo pela mão de um antigo.

quinta-feira, dezembro 21, 2006

Quietos: ele chegou

porque te vi, todos os outros, hoje, são uma ironia.
podia dizer-lhes:
- parem quietos, não percebem que não sou nada disto?
um beijo, o teu, o de ninguém, estou aqui, como sabes.
até ao teu próximo regresso.

quarta-feira, dezembro 20, 2006

os teus regressos

regressaste.
cansado, sempre, ausente desta pátria contenciosa, a tua voz, alguns minutos, a permitirem na minha voz uma pátria?
a geografia reduzida a poucos metros, mas os teus sons são tão estrangeiros nesta terra, por que sofres, por que ficas longe, tão longe, quando te aproximas?
irei ter contigo, a rotina nunca rotineira, a nossa calçada, o medo da tua morte, ou nada disso, o medo que morras sem diluires este peso?
talvez o rio, o travão do carro a travar-me, talvez a tua palavra a calar-me, talvez o teu silêncio a dizer tudo?
voltaremos, mais uma vez, a doer, a doer, a doer: os nossos passos?

domingo, dezembro 17, 2006

o tempo que resta ou o poço numa mulher

pedes-me que escreva sobre o poço que vês no sexo de uma mulher. escuto-te e sei do que falas, sei do que sentes. mas não posso escapar à minha madrugada, despertei inquieta, tão cedo, e revisitei o filme que sempre me faz pedir aos olhares cativos que experimentem, que experimentem, sair de outros poços que não este de que falamos e que ousem sentir as esquinas de corações de carne igual, em corpos que vivem nos quadros que são atirados para o que não merece acolhimento. o amor de dois homens, ali, no filme, o desejo de dois corpos masculinos, só um sabendo que o tem no abismo do tempo que lhe resta; estou em silêncio, começo a chorar, antes de ser pela morte anunciada, já pela solidão a que está sempre vetado quem ama fora das imagens que merecem a partilha abençoada de todos, começo a chorar por todos os tempos esgotados em amores vividos sem um gesto paterno, um sorriso materno, uma refeição familiar, e este filme sem cedência alguma, a dar espaço à ganância de dois corpos masculinos sempre indigna de imagem.
o tempo a esgotar-se e só uma avó sabe dele, escolhida para o anúncio por estar próxima também da morte - diz; mentira, escolhida por ter vivido também fora de uma moldura, a fugir do filho que lhe recordava todas as expressões do marido morto, a entregar a viuvez ao sexo inconsequente, uma puta, enfim; antes uma mulher a sobreviver, para quem tem olhos de gente, um poço misterioso a contar uma história, o sexo desta velha.
o morto em breve sempre a regressar-se à infância, sem espaços nessa voz muda, o outro eu a consolá-lo, os poços dele, as memórias, as metáforas que fez dos ensinamentos da infância; como tu, com os teus poços, o perigo deles, o mistério neles, a vertigem da morte, hoje, para ti, o sexo de uma mulher. como um poço, uma viagem certa, uma dependência, com avisos na inclinação, não se vá nele cair, ninguém nada no fundo de um poço, ninguém conhece o fundo de um poço, ninguém se salva no fundo de um poço, e todas as crianças espreitam os poços na tentação do mistério desse fundo escuro, como em adulto espreitas o sexo de uma mulher, sabendo bem que dele só conhecerás as franjas, por mais que o mistério de um útero inteiro te derrote, não saberias sobreviver nele, podem apenas os teus dedos e o teu sexo entrar e sair, espreitar a morte e regressar à vida, ou tocar a vida antes de um espaço mais longínquo de morte e voltar à ignorância do exterior.
talvez morra, numa praia, com a mão no meu sexo.

sexta-feira, dezembro 15, 2006

até tudo

eu seco o teu cabelo. eu limpo os cantos da tua boca. eu desato os nós desses dedos.
se quiseres, fico calado, a assistir ao teu silêncio, quietinho, com um copo de leite morno na mão, à espera que digas passa-mo cá, à espera que nada digas e que o leite arrefeça, como os teus pés, azuis de frios.
eu lavo as tuas axilas. eu perfumo a tua barriga. eu humedeço as tuas chagas com a minha língua.
se quiseres, fico deitado, como tu, a olhar o mesmo tecto, e não me permito movimento algum, apenas o da tua respiração, até que me digas chega-te para lá, até que mais alguém te seja desconfortável.
eu massajo os teus joelhos. eu lavo os teus dentes. eu limpo os teus ouvidos.
se quiseres, levanto esse corpo da cama e levo-o a passear pelo corredor, até que me digas estamos exaustos, até que me digas deixa-me partir.

segunda-feira, dezembro 11, 2006

desejo

volta sempre à tua porta. esse mistério antes dela, as agulhas a baterem no chão, a cronometrarem o seu desejo. olha-te e na primeira pausa já entrou no teu cérebro: a dizer sim, a dizer isso mesmo.

sábado, dezembro 09, 2006

perdes(-me) o medo

que bom saber que o meu corpo te integra. imagina tu que quando o faço, mais não quero que integrar o meu.
que amizade, esta?
um esplendor.

quinta-feira, dezembro 07, 2006

o tempo do medo

entre a casa e a secretária onde trabalha, há uma fila de carros. no meio, um espaço, o carro dela, ela, um intervalo, um sítio para se não evitar. são longos minutos de medo. chove, trava-se a fundo, a cor que obriga é redonda: um sinal de trânsito, um sinal de loucura, a chegar, enquanto o trânsito estagna, ali, no intervalo, ganha tempo, esse habitante ocasional. um veneno a desfigurar o trajecto que queria breve, que tem de ser breve, antes que doente, outra vez, que medo, que medo tem destas paragens.
chega, limpa a lágrima da resistência, sobrevive: e começa o dia.

quarta-feira, dezembro 06, 2006

mesmo que te doa

é a segunda vez que promete amar como não se ama; isto é: não te tentando.
amar é querer o bem do outro, diz a banal e cristã sabedoria. mas amar não é senão querer o outro, mesmo contra o outro, e ela aceita tentar não tentá-lo apenas para o não perder e não para o poupar.
(a tua dor é-me apenas uma ameaça)
vai andando.
com estas pernas.

sábado, dezembro 02, 2006

Ontem

nunca cumpre as noites de sexta e de sábado.
morre nessas noites.
como a burocracia.
uma tarde salva-lhe o silêncio.
a memória. sempre.
o seu corredor.

segunda-feira, novembro 27, 2006

onde ficou a tua voz?

está a chover, de repente, já voas, esse avião, de que falava ontem. está a chover, entendes?
onde ficou a tua voz?
está chover, de repente, um castigo, uma chicotada contínua na última memória do teu olhar.
onde ficou a tua voz?
está a chover, de repente, uma aflição, estou a entristecer, a envelhecer: estou a morrer.
onde ficou a tua voz?
está a chover, de repente, e tu sentado, num banco, esse avião, quem te ladeia?
volta, meu amor, está a chover, estou a morrer, fica, porque não sei, de repente, enquanto chove,
onde ficou a tua voz.

domingo, novembro 26, 2006

até que voltes

estás quase a apanhar o avião que te leva destas tuas interrupções; sei que não dura muito mais a tua vizinhança; sei porque começo a chorar subitamente, o coração acelera, está na hora: quando voltas?
estás quase a voltar para esse país frio e quando acontece o estares quase a voltar para esse país frio há uma faca que me apanha distraída, na alegria que dizes predominar-me, e que corta todas as arestas do meu sorriso, da minha tranquilidade, da minha vontade. é assim um terramoto num pormenor: estou a fumar um cigarro, confortável na minha sensualidade, e deixo de ouvir a voz que fuma comigo. resta-lhe apenas um calacanhar e nele vejo o peso, o espaço, a textura, o horror da tua ausência.

quinta-feira, novembro 23, 2006

Aqui, ao longe

ao longe, o ruído contínuo do combóio não te leva. és esse som distante, mas audível, e que assim se estabiliza num estar paralelo a mim.
ao longe, o ruído contínuo do combóio não te leva. pouso as pálpebras na escuridão delas, com força, com peso: o ruído ganha proximidade, as faíscas que produzo nas retinas magoadas; assim o meu corpo os carris do combóio que te não leva. inisisto e pressiono mais as pálbebras; o ruído tem agora a forma da deformação do meu equilíbrio. estou a perder a postura, vou cair, tonta, e ser a forma do combóio do ruído em que me estás.
ao perto, de olhos fechados, o combóio não te leva, nem pára: está parado em movimento.
ao longe, uma mulher de olhos abertos ficou interrompida.
ao perto, o ruído do combóio faz-se sobre o meu corpo deitado a faiscar sem agressões.
e tu deslizas.

quarta-feira, novembro 22, 2006

Eis o amor

e leio o poema ao telefone. a tua voz arredonda-se e entra dentro de mim, fura-me a cabeça; partícula a partícula a tua voz corrói a ansiedade silenciosa do medo; partícula a partícula, a tua voz costura-me o tecido da ansiedade silenciosa da verdade: a paz de te sentir. um sorriso a escutar-te, os meus olhos tristes mesmo quando solto uma gargalhada, uma tristeza harmoniosa; eis o que faz do amor uma dor: eis o amor.
e leio o poema ao telefone. a tua voz tem intervalos, respiras, e eu inspiro o ar que expiras; um dia depois ainda o amacio na minha língua ou amacio a língua com o ar que expiras. não dói a vida que me escapa no homem que me visita dizendo que linda mãe darias. só tu me dóis, o amor é uma dor: eis o amor.
e leio o poema ao telefone, escorrego os dedos na janela embaciada quando termino, passo-os na tua cara distante e penso: abraça-me com força, não me mordas, como já te pedi, mas abraça-me com muita força, em silêncio, e deixa-me chorar convulsivamente este amor, abraça-me com muita força, em silêncio, é só isso, permite-me essa força: o meu futuro.

domingo, novembro 19, 2006

Este (teu) espaço

Ouço sempre este, este, este espaço na tua voz, o sítio onde não sou, onde não somos? Onde não somos. Ouvirás o mesmo espaço, não na minha voz, mas na tua, és tu que o crias, és tu que o queres, na minha voz ouvirás o que temes, o que teimas em temer. Nevoeiro, hoje, e mais um dia para percorrer sem saberes o que faço na tua emigração, por onde ando, por onde choro, por onde te ocupo. És o único amante que não tenho, és todos os que tenho não amando. Estou a doer. Estás a doer. Volta. Como se já tivesses sido. Agarra o dedo que limpa a grainha de laranja que se colou na tua pálpebra e beija-o com humidade. Os teus gestos secos compensados todos nessa voz que cria o espaço para me evadir no homem que chega e que se atreve, naturalmente. Tu nas formas todas que me visitam, durante as horas do espaço que a tua voz, tijolo a tijolo, demarcou para a minha vida.
Ouço sempre, sempre, este, este, este espaço na tua voz. Nevoeiro, hoje, e estás a doer-me difusamente. Vou gritar de fora para dentro, ou vou perder a harmonia da dor e furar o nevoeiro com um grito cheio de prazer. E de sangue. Depois, deito-me na cama que desconheces e vejo embriagada o tecto da tua infância cheio de varejeiras: merda, merda, merda, digo. Deita-te de uma vez por todas, cala-te no espaço onde falas e fala no espaço onde me matas.

sexta-feira, novembro 17, 2006

Para a Catarina

por um dia que fosse, vestiria a tua pele e tomaria a tua dor. esta impotência perante o peso dos anos que agora vês apedrejados sem aviso faz da tua imagem uma exortação.
ninguém te vê amparar a mágoa numa corcunda, essa que se forma nas pessoas comuns, eu olho-te e penso: como manuseias esse sorriso sofrido, como equilibras a coluna quando te condenam à força da gravidade que nos leva ao centro escuro do mundo? cada movimento do teu corpo desenha a história da tua história e a doença que predomina todas as doenças: a solidão. dói culposamente saber que andávamos lá, nos anos nos dias e nas horas em que sofrias calada. dói reconhecer que fomos espectadores imóveis. e sorris. hoje. hoje que te roubam o desígnio de uma vida, sorris para nós. quando te vejo, vejo o quanto sou pequena e o pouco que ainda fiz por um dia ser olhada como te olho. hoje és as minhas lágrimas. a tua dor é pesada, mas é também de uma beleza difícil de acolher: um espaço de luz há muito negado onde apareces a inspirar quem passa por ti.

quinta-feira, novembro 16, 2006

Para a L.

olha a menina de 11 anos: tem o corpo frágil, cresce com dificuldade, no olhar que pede em silêncio vai a dor por se sentir olhada como uma fraca. rejeita tudo o que pode ser rejeitado do mundo exterior, esse que lhe dita a condição de baixinha e de lenta, sobretudo de mais baixinha e de mais lenta do que os outros.
olha a menina de 11 anos: encontra-lhe em sombreado uma outra menina, presa naquela pele transparente, a menina que criou no seu mundo interior onde não há medida nem velocidade. o medo que pesa na criança dita-lhe um vocabulário invulgar, sofrido, porque contido. criança alguma diz, perante o presente que sonhou, que gostou bastante; criança alguma, atacada pelo colega que a esmaga quotidianamente se lhe refere como um menino chato; criança alguma projecta a dor que o padrão em redor lhe incute numa exigência ética de grau quase irreal, como que a querer que fracos os passos que dê sejam pelo menos fracos passos de menina boa.
Olha a menina com 11 anos e inicia-se o diálogo:
- que fazes?
- escrevo no meu diário.
- que escreves?
- os meus pensamentos e os problemas, também dos outros.
- preferes escrever a falar sobre o que sentes?
- sim. prefiro escrever a falar.
- por quê?
- porque às vezes os nossos pensamentos podem magoar as pessoas.

terça-feira, novembro 14, 2006

o que fazer amanhã com os meus ontens?


o que aqui nos assalta não é o medo. vértebra a vértebra se constrói uma hesitação. os azulejos brancos confirmam, insistem, na nudez de uma hesitação que nos assalta. a visão do chão que não existe mais nas casas de agora é a metáfora do enclave de quem se agarra toda numa vertigem: o que fazer amanhã com os meus ontens? o lugar onde pousa o corpo nu permitirá o som de um gotejar que vinca a banheira num fio amarelo. nenhum outro som, e o silêncio do tempo passado da geometria desta casa de banho. a janela fechada permite habitar para sempre a hesitação. uma das maçanetas está porém aberta: eis o futuro a obrigar uma resposta.

segunda-feira, novembro 13, 2006

liberdade breve

ter um segredo no teu ombro é-me hoje uma calma ansiosa. começaste num toque de cotovelo. libertada a besta que há em dois familiares, sais e não dizes grande coisa. dizes: eu não digo isso. e pensar que o apoio dos cotovelos foi a intimidade idêntica com as palavras. onde está hoje a palavra depois da vírgula? as tuas frases começam a morrer do fim para o início, lá onde sou um vocativo.
quem nos encontra é o nosso carrasco, mas nós oferecemo-nos a essas mortes, porque da prisão anterior ao encontro até ao lugar da decapitação há um breve passeio em liberdade.

terça-feira, novembro 07, 2006

Vê-me II

eu sei que vens cá hoje de noite. eu preciso que venhas cá hoje de noite. que me leias: que me vejas. que história tenho para contar se não a não-história que é conhecer-te inteiro numa intuição que desconheço? brinco com as palavras?
- você é uma provocadora.
- nem sempre.
há um mistério na tua presença que só encontra analogia numa melodia que ouvi pela primeira vez numa costa assustada por nevoeiro. límpida, no entanto, esta vontade, leve, de falar, de falar-te. não: de ouvir-te. como hoje:
(eu estava ali a ouvir-te acalmada pelo teu som não sei por quê, talvez porque me causes uma ansiedade que derrota a ansiedade dominante, a que magoa. eu estava ali a ouvir-te e questionei todos os teus gestos, decifrei cirurgicamente os teus não-gestos e perguntei: perguntas-te o que estou a pensar? perguntas-te o instinto que mato reclinada na cadeira? ou sabes que os teus olhos deviam-se perigosos para a tua boca? ou sabes que ao lado da imagem do espaço que ocupamos há uma outra que se vai criando sem acontecendo, onde um momento cala o pretexto de todos os verbos?)
não tenhas medo, penso. eu vivo de momentos, atrevo-me.
(sussurrasse uma mulher - hoje de cinzento - ao ouvido dele: não tenhas medo de mim. não me tires essa exclusividade)

segunda-feira, novembro 06, 2006

Nós

a identidade. mais um passo. uma explosão entre pessoas cruzadas na circunstância de uma sensibilidade. a comunicação quase chorada. porque se descobriu num grupo que há reflexos de cada um em cada um, eu nos teus olhos castanhos, tu na minha dor passada, nós frenéticos a corrermos nesta descoberta. um homem, uma mulher, outro homem, outro homem, nada importa, idades distantes, nada importa, nós, nós estamos aqui, nós estamos vivos, nós não sentimos aquele abismo sem um par, afinal faltava fazer do medo um verbo, dizermos eu também, e correr, correr como quiseremos para os braços uns dos outros, correndo nesses braços ao nosso próprio encontro.

sexta-feira, novembro 03, 2006

eu anoiteço de manhã

é de manhã que começa a anoitecer. finalmente. ou: eu anoiteço de manhã? é de manhã que o silêncio apaga a luz e não de noite, quando o terreno de uma gritaria de imagens com movimento novo se prepara todo numa almofada. duas pessoas suspensas na tábua posta à altura de uma nuvem e o alentejo lá em baixo, a nossa amiga a chamar por nós, que não saltamos, porque a água não tem profundidade. tu, sem medo, explicas isso mesmo e moves o corpo para o limite da nossa tábua, sempre sorrindo. não há vento, nem calor, eu tenho medo. e ela está a chamar por nós.
é de manhã que começa a anoitecer. só de manhã. o silêncio que acolhe o medo do dia sonoro, sonoro, sonoro, de toda a minha noite. ou: eu anoiteço de manhã? nos ossos há elásticos imperceptíveis que os prendem à viagem adormecida, daí a dor no caminhar, a resposta diferida à interpelação casual. é que eu anoiteço de manhã. condenada a dar resposta ao que se me impõe como sendo dia, sem silêncio.
uma força imensa puxa-me a memória para aquela tábua; essa força, de dia, chama-se febre.

domingo, outubro 29, 2006

Familiar

É-se familiar quando se diz a palavra sem cautela, porque se sente - porque se sabe - que o outro a reconhecerá como se sua.
Uma ou outra vez na vida encontramos um familiar - identificamo-lo - ao primeiro olhar. Há ali, ali, naquela pessoa, não um pouco de nós, mas precisamente o nosso segredo. Isto é: olhamos o familiar e sabemos que dele não poderemos ocultar a nossa intimíssima verdade, como seja um insuspeito vício pela fronteira da trangressão. Num palco social onde, por exemplo, essa pulsão interior é invisível para os outros, os dois familiares olham-se e sabem que são iguais; que circulam no mundo daquela sanidade, insuspeitos de conversarem no tom de todos com a cabeça posta na mesma transgressão. Não é preciso pronunciar um verbo. Basta olhar o nosso familiar, quando o encontramos.
Como se, mudos, os familiares dissessem:
- Tu também...?
- Claro que sinto.
- Eu sei que sim.
- Eu também sei. Que sentes.
Depois é um calor... é o calor.

sexta-feira, outubro 27, 2006

Parece-me ainda ontem esta tua despedida do que nunca foi

Meditação do Duque de Gandia sobre a morte de Isabel de Portugal

Nunca mais
A tua face será pura, limpa e viva
Nem o teu andar como onda fugitiva
Se poderá nos passos do tempo tecer.
E nunca mais darei ao tempo a minha vida.

Nunca mais servirei Senhor que possa morrer.
A luz da tarde mostra-me os destroços
Do teu ser. Em breve a podridão
Beberá os teus olhos e os teus ossos
Tomando a tua mão na sua mão.

Nunca mais amarei quem possa viver
Sempre.
Porque eu amei como se fossem eternos
A glória, a luz e o brilho do teu ser,
Amei-te em verdade e transparência
E nem sequer me resta a tua ausência,
És um rosto de nojo e negação
E eu fecho os olhos para não te ver.

Nunca mais servirei Senhor que possa morrer.

Sophia de Mello Breyner

Morada

Um quadrado branco,uma folha em branco: eis o espaço onde constrói uma morada.
- És tão nova, quantas foram as tuas moradas?
- Eu vivo num espaço com dois quadrados. E a minha morada, o meu lugar, é uma folha de papel.
- Não vens à superfície.
- Que te direi? Queres saber de Belém ou da rua lá para os lados de Campolide com prédios cegos e nome de escritor?
- Por exemplo, princesa. No mundo dos mortais, a morada é isso, ruas, como essa, a rua lá para os lados de Campolide com nome de escritor. Lembro-me de te queixares de ser rua de passagem, de não haver mercearia, ou vestígios que justificassem o nome naquela placa.
- Que interessa? Essa rua, uma morada? Às vezes atravesso-a e vejo o sítio onde vivi, vejo-me à janela e um vampiro a sugar-me o pescoço. A morada é onde sou. Essa rua é uma diluição.
- Vá, fala como gente normal. Diz-me: quantas foram as tuas moradas?
- Uma só.
- Do Torga foste para os lados da Junqueira, dali foste para o Restelo, rumaste a Alfama, regressaste a Belém, e agora estás nessa casa cheia de luz, cheia de quadros.
- Se conheces esse mapa sem sentidos, por que me questionas?
- Para te fazer falar. Andas silenciosa.
- Eu resido numa casa cheia de luz, eu vivo em dois quadrados almofadados, eu tenho uma morada que me faz perguntas carregadas de liberdade.
- De que falas, aluada?
- Da minha morada. De uma folha de papel que me faz ser. Falo de liberdade. Falo do que te falaria o escritor oprimido numa placa na rua errada.

quinta-feira, outubro 26, 2006

A tua voz

Como uma melodia
morna
a tua voz chegou.
Ouvia-a num grito
harmonioso
a tua voz,
uma integração
límpida, trasparente
o som a acalmar-me
os outros sons,
a tua voz, que me me chegou
por escrito.

A cruz da ansiedade

Come as pontas dos dedos curtos com rigor. Dedo a dedo a sua ausência expressa-se toda no gesto da mutilação quase social. Só dela a percepção de uma pele arrancada ao canto profundo da unha; só dela o sabor do sangue que dói ali, num ponto tão situado.
O que se lhe dá a ver para além dos dedos é o seu medo: as mesas do almoço na sala abafada por vozes que se cruzam e geram uma cruzada contra ser uma possibilidade. O som dos talheres inicia a sua desconstrução, o que era impedido roendo os dedos; por substituição.
O que se lhe dá a ver é o barulho dos outros ser o seu silêncio. A morte é induzida do movimento em redor do espaço imediatamente após ao da sua roupa.
Respirar pesa progressivamente.
Pegar numa caneca de café é desafiar a gravidade imensa do seu terror, por isso fixa o olhar no café a arrefercer e quer, genuinamente, morrer.

Esta noite

Uma fotografia. Uma memória.
A memória é o assassino meticuloso do presente, escreve Rui Nunes.
Afasto a fotografia.
Agarro o poema.
Esta noite.
Tão apertada.

quarta-feira, outubro 25, 2006

Indução

O que faz uma pessoa. Os pormenores a ocultarem uma voz.
A minúcia cruel.
Vou decifrar esta mulher pelo verniz a descamar-se na ponta das suas unhas.

terça-feira, outubro 24, 2006

O telefonema

Eu estou só à espera. Eu só estou à espera. O telefonema. O sorriso que me acontece nele. Eu estou só à espera. E dói-me o olho direito. Um bom início de conversa. O sorriso específico. Eu estou à espera. Calmamente. Este não é um texto alucinado. Este não é um texto da angústia da espera. Mas eu estou à espera. Porque seria agradável. O sorriso que me provocas. Sempre. Que te vejo. Que te sinto por perto. Que te adivinho. Simples.
Eu estou à espera. Tenho os olhos muito secos. De mais. Só não estão secos quando choro. Chorar é-me uma vocação. Um bom meio de conversa. Saberes mais de mim. Esta curiosidade. Tua. Minha. Acerca um do outro. Nada que aflija. É simplesmente bonito. Bom. Doce. Estranho. Familiar sem o poder ser.
Eu estou só à espera. Eu só estou à espera, com os óculos na prateleira. Eu gostava muito. Não me custa nada escrever isto. Passar pelo que seja. Eu estou a sorrir, como faço sempre que te encontro. Escrevo que estou à espera que me telefones com o mesmo sorriso que te atiro quando entro na tua sala.

segunda-feira, outubro 23, 2006

Sintonia

Está para ali com ele, que não a ama; anda preso ao odor da outra, por isso não a agarra. Está para ali com ele, não porque o ame, mas porque não tem outro.

domingo, outubro 22, 2006

Enquanto me limpas II, a minha memória


Como a tua ilha

As janelas estão propositadamente fechadas. Vê-se assim o cinzento deste dia maldito a rodopiar em vento vindo sabe Deus de onde, um pássaro a atravessar o frio em esforço, as penas dele molhadas, a chuva oblíqua, o silêncio mortal do cenário para lá do vidro. Que feio, tudo, hoje, que pesado, nem as janelas encerradas e o fumo dos cigarros impedem o peso do dia, que pesa todo na cabeça, inflama a garganta, esmorece boas memórias, ataca o cobertor abandonado na cadeira de há uma semana. Que dia cheio de castigos, que dia não-dia, sem lareiras preparadas, que dia a paralisar-nos. Uma Escócia, de repente, uma ilha dela de que me falavas, onde o céu, como este, era só um, uma extensa nuvem, sem mutações, o cinzento uniforme, enorme, a colorir as águas, a cansar o olhar, a desnudar o mundo. Uma câmara não ardente, um frio de rachar, sem gota de sangue, esta manhã, meu amor, parece-me uma morgue, um laboratório sem espaço para sentir o que seja.
Talvez pudesses chegar e fechar as portadas, a visão do mundo, restaria o sintoma dele nas nossas gargantas, e apertar-me as horas todas deste anúncio bíblico.
Hoje é dia de antigo testamento.

sábado, outubro 21, 2006

Verdes anos

Que verdes anos, os nossos? O futuro tão desejado e agora que tal, que tal, começarmos a salpicar os verdes anos que temos, hoje, agora, o dia de ontem, ontem mesmo, hoje? Quais os verdes anos que tememos a morte? Abraça-me e espera quieto, não pela perda de qualquer colorido, mas por uma pacificação dos nossos temores. Estes verdes anos, não sei se andamos a dar por eles, de tanto temermos que se vão embora sem a vida-prometida-inteira. Um dia, um dia, hoje, sem metáforas, agora que ainda não bebemos café, agarra os teus verdes anos e desliza na linha de um eléctrico, diz: estou aqui.
Eu também tenho medo, medo concreto, medo abstracto, temor, de manhã, queres saber?, de manhã quando a água do chuveiro escorrega na minha cabeça, de olhos fechados, tenho medo de desvanecer, tenho medo de uma decomposição líquida que começa no interior do meu cérebro magoado. Ir pelo ralo em espírito, uns verdes anos terminados na banheira. Abraça-me agora, a tua doença e a minha, tão incomunicáveis no diagnóstico, tão unidas no efeito, o medo, a nostalgia magoada de verdes anos por inscrever.
Desliza comigo, eu vou tomar banho de olhos abertos, para não ir pelo ralo, tu vais renunciar à observação minuciosa da tua pele, e rumamos à maginal, como tantos verdes anos o fizeram, abraça-me, deixa-te amparar amparando-me, eu preciso de ti: os meus verdes anos, tu, os teus verdes anos.

quinta-feira, outubro 19, 2006

Enquanto me limpas

- Tenho duas moedas que guardei do troco do café que nos uniu uma vez na vida, na esplanada estrangeira, sem o barulho dos carros arredondados. Fugimos para uma pensão e aquilo foi uma gritaria.
- Escolhes assim umas memórias quando conversamos, uma coisa qualquer; essa tua ligeireza tão insinuada.
- Mudas-me as fraldas todos os dias e a fixação do teu olhar na minha humilhação precisa da esplanada onde o rumor era o da sedução.
- Essas pernas, um dia, que engraçado.
- Esta espera, estas pernas, este descontrolo: umas fraldas. Enquanto me limpas, podes enevoar a merda que vês e veres-me a engatar o estrangeiro, na esplanda onde não me detinha a pedinde a alargar os séculos da esquina.
- Tu gostas de provocar. De dar cabo da inocência que a malta associa à velhada, sobretudo a esta, posta aqui fora do mundo, com a voz a pronunciar a véspera e o corpo a pedir uma mantinha.
- Experimenta enfiar um dedo dentro de mim de olhos fechados, limpa-me primeiro, ainda estou a arder, verás: por dentro não há vestígios da minha mantinha.
- Velha doida.
- Gemia toda, havias de ver.
- Já estás limpinha, dorme.
- Queres-me boazinha, não é? Boa, nunca, que aos velhos só se aplicam diminutivos. Pois eu não faço como o resto da velhada. Não espero por dormir para me permitir o regresso ao que me der na cabeça. Odeio esta mantinha, esta mortalha. Não espero por dormir, entendes? Vão ver-me velha, velha, a babar-me toda, sem calar o direito da minha memória, o dia da esplanada, os meus atrevimentos, a minha não-inocência: nunca mudarás esta fralda como se não pudesse ser a tua, menina má, menininha.

quarta-feira, outubro 18, 2006

Epílogo

  1. Doze paus na vertical, um deles inclinado para um quadrado. Doze paus na vertical, todos os insectos foram mortos e agora a perturbação do estático. Doze paus na vertical,uma entrada qualquer a afastá-los, aquele dia, um dormir profundo, um dormir equivocado.
  2. Doze paus a deslizarem, cima, baixo, sem som, tu, ele, uma mãe que interrompe o quadrado, uma mulher a criar um triângulo.
  3. Uma ambulância. Doze luzes intermitentes e quatro mãos a ampararem a vida num quadrado.
  4. Doze paus na vertical, quatro ângulos a dobrarem-se, as minhas costas, um cravo sem aviso, uma cadeira de rodas, a mão a fechar o grito do medo, do desejo da mentira. Um balde de tinta pronto a ser atirado ao cenário.
  5. Um leve odor a sardinhas. O estendal cruel da vizinha, doze paus a pesarem nas telhas, uma casa a ruir para o centro do mundo, com a semente de uma doença eterna.
  6. Doze paus a acordarem o enfermo, quatro frases de reconhecimento, um abraço de perdão, as promessas de anjos caídos. O horror.
  7. A vida cravada em doze estacas, o dia seguinte chegado, umas cuecas quase emprestadas, o teu suor conversador.
  8. O disco de doze temas, a mudez de uma gaveta a fechar-se, o barulho de um quadro cheio de garfos.
  9. O dia sempre a pôr-se.
  10. Um cão a sentir por todos, o vento naquela noite a cegar-me as suspeitas.
  11. O fim a gasear-se numa aresta, o rolo novo não será doze fotografias, amanhã é feriado, a indiferença. Respirar devagar.
  12. Doze paus na vertical, um que cai azulado: o encontro que foi nosso Judas.

Voltaste

De novo esses olhos aqui a darem carne à minha sonolência.

segunda-feira, outubro 16, 2006

O que fizeram de nós


Nada sei de Deus,
pouco percebo dos livros obscuros onde se escreve sobre quem nunca nos apareceu.
Sei de ser criança e de perceber o desejo; antever o futuro,
sei de ser criança e de Deus me calar em alegorias incompreensíveis a minha alegria.
Nada sei do Demónio. Ou: sei de Deus pelo Demónio.
Querer Deus podia ser: não querer o Demónio.
Sei que não haveria Demónio sem Deus,
Sei dos Ministros de Deus que sufocaram o nosso corpo
pelo medo do pecado,
do diabo
esse secretário de estado.

domingo, outubro 15, 2006

Salve-se quem puder

Não há surpresa nesta posse doente de pessoas sobre pessoas. Os casais. Os atrelados. Os casados. Os donos-um-do-outro. A pesquisa da vidinha que sobra do horário comum. Quando chega a crise. O desamor. O ter de haver culpa nisso. O telefone confiscado. Os bolsos revistados. As carteiras reviradas. Os odores reconhecidos. Cães e cadelas a mijar à volta do poste: a relação. Não há surpresa nesta posse. Nesta asusência de sentido do outro. A liberdade reduzida a desvalor. O compromisso elevado a sacrifício. A propriedade. O amor forçado. Os avisos. Os mal-amados farejantes. A dignidade de quem vê o casamento em crise encosta-se a um poste com saia curta. Não há surpresa nesta dominação.
Respeitar a escolha, como? Pois não é o nosso Deus quem salva compromissos condenando à morte o próprio filho?

sábado, outubro 14, 2006

LUA (Zé Lourenço)


Eis o poema repousado. Letras nenhumas moviam uma pele, um sentir, como aqui, esta tela que me chegou, que me mudou. Para sempre. Olho-te: obrigas-me a aligeirar os passos, a silenciar os vizinhos, a pousar o copo de café. Agarras-me com a força da tua luz multiforme, e eu a regredir nela, a avançar nela, sou, agora, diante da minha lua, uma súbita leveza. Estou a chorar, sem poemas, sem prosa, sem música. O silêncio desmedido desta tela gera-me ao contrário, entro-lhe toda pela cabeça, sobram-me as pernas, sem dor alguma, e volto a sair, leve, leve. Sento-me noutro ângulo e a luz da janela descobre-lhe uma sombra que se oferece como uma absolvição. O poder desta tela é imenso: o sombreado acastanhado é a minha franja de infância, recordada aqui com novidade. Trepo por um pinheiro, sem nostalgia, estou a sorrir, e vejo o dia a despedir-se do mundo, Deus a apagar o seu nome, como já se escreveu, e os meus joelhos sujos da correria, e o mundo todo lá de cima, do último ramo, uma paz. Esse ramo, esta sombra, estou a flutuar, este negro que não oprime, antes projecta a justiça enorme da lua que se não põe de manhã. O futuro destemido. A minha esperança. Uma palavra nova no meu vocabulário. Um quadro que salva. Eu a vê-lo, ele a habitar-me. Os relevos no centro dele, a nossa vida relevada, as trajectórias desta alma? Uma tela cheia de justiça, e por isso nela as trajectórias acolhidas de todas as almas que para ali olham. Parar. Subir com esta tela. Chorar o seu único peso: a beleza. Chorar por quem tem nas mãos a arte de inspirar para sempre o outro a não se escapar. Eis o papel da minha lua. Diz-me: não te escapes. Para sempre, na parede onde suspende, a verdade acontece sem que ninguém a pronuncie. Para sempre, na parede onde sobe quieta, o silêncio poupa todos os tumultos. Para sempre, na parede, uma prisão absolutamente livre.

quinta-feira, outubro 12, 2006

Como uma vela, este menino



Como uma vela. Que não se apaga. Mas vai morrendo.

É sempre o olhar que termina a história a dizer-nos: já não dói.

A vida que poderia ter sido no olhar.

A vida que lhe calhou no corpo onde já só circula um fraco fôlego.

O nosso desconforto. A dor, mais nossa do que dele,

que nos perdoa.

Ninguém tem a coragem do deserto

Lê: ninguém tem a coragem do deserto.
Procama essa coragem, mais: proclama essa vontade. Mas ningém tem a coragem do deserto. Inspira na recordação do não-deserto, sublinha a frase do presente: eu preciso de estar sozinha. Eis a mentira a ecoar em todas as mesas onde se senta. Porque ninguém tem a coragem do deserto. Nem ela, que se encolhe toda na segurança da não-partilha do seu espaço, crescendo a par da aparente escolha o espaço enorme de uma ausência: começa a chorar. Porque ninguém tem a coragem do deserto. O retrato trémulo de uma vida a comunicar nos olhos que lhe calharam na mesa de hoje. Um exemplo. Uma pessoa. Apaga depois o retrato e pensa: no dia em que o tivesse ao lado precisaria do silêncio que hoje me afoga. A insatisfação. O desígnio pendular. A noite em branco. A rotina da meia-cama. Nesta, com verdade, uma paz. No choro ocasional, um abandono. De alguém. Uma escolha: o deserto. Mas ninguém tem a coragem do deserto. Uma escolha manipulada. O deserto com ficções de não-deserto pelo meio: corpos que falam quase como que amados. Porque ninguém tem a coragem do deserto.

quarta-feira, outubro 11, 2006

Amarras

Doente de sono, agora, escrevendo, de pálpebras cansadas, empurradas por pensamentos excessivos, e recuso dormir, luto contra essa rapidez, insisto na sobrevivência da criatividade, ando a escrever de mais?
Hoje, ali na esquina, de novo o vagabundo dobrado como uma vírgula, as calças sujas, as mãos a impedirem uma pessoa nelas. Hoje, na curva da baixa, o homem de sempre, vestido de silêncio, mascardo com um sorriso estático, de mão estendida para o acaso, com a careca flagelada pelo sol, agora molhada pelo Outono. Tanto sono, uma dor de cabeça a avisar a hora de desistir, de morrer nesta carência do mundo em cada um, de nós em todos, de todos na mulher que agarra a criança subnutrida nos sinais de trânsito das Forças Armadas. De onde contempla a paisagem a mulher que me abranda sempre pelas onze horas? É ela, agora, que me tortura acordada, os três jovens com boa mesada que encostam o carro à frente do meu e a atiram para fora, com a saia pelos joelhos, a cara suja de todos eles, ela para ali caída, na rua de casas com jardim, e naquele momento o seu jardim é o tufo de ervas daninhas onde aterra para a sua longínqua condição. Vejo o carro com os três jovens satisfeitos, livres do seu entulho, a arrancar para um bar qualquer, onde se falará da puta que se atrapalhava toda em tantos sexos. Preciso de dormir, mas castigo a coragem de amanhã seguir na mesma rua com este adiamento do alheamento. Os ciganos cantam, descalços, à minha janela. Estão alegres. Ao longe, a mulher roçada por ninguém bate as agulhas na calçada.
Cristo, atrás da minha cadeira, insiste em não descer da cruz.

terça-feira, outubro 10, 2006

Telefonema toda

- Você anda inspirada.

(tu andas a inspirar-me)

- Você ultrapassa a superfície do ecrã com a sua escrita: eis o seu poder.

(tu és um comunicador misterioso. eu quero muito que me sintas)

- Eu quero saber se você anda bem.

(só isso? eu preciso de derrotar moínhos no teu olhar, que te descrevo, que te confesso)

- Você é gentil.

(eu sou atenta. tu tens possibilidades por cumprir?)

- Quando é que eu a vejo?

(eu quero dizer: hoje mesmo. é verdade que vives imageticamente uma outra circunstância? emigras a tua realidade e pões-te num cenário de outras escolhas? que olhar esse tão maior do que a vida que cumpres?)

- Eu telefono. Você tem uma enorme sensibilidade.

(eu nunca me vi bonita. eu cresci feia. lá estou eu, como naquele dia, a falar sem a hesitação do medo)

- Tenho a certeza de que já a convenceram da sua beleza.

(há vozes raras a dizerem "que bonita" que me convencem a pele toda e estendem essa beleza a uma menina que era feia. é um mistério: a tua voz, no amparo do teu olhar, tem essa raridade)

O mistério dos afectos imediatos. Os espelhos. Os silêncios pacificadores. Os pudores da aproximação. A negação da generalidade e da abstracção: a revogação da norma.
O nosso caso.

Pessoas Só

Simpaticamente, têm-me perguntado pelo livro que publiquei há dois anos, o qual, ao que parece, já não se encontra por aí. Confesso que não tenho qualquer exemplar comigo, razão pela qual não posso oferecer uns quantos a uns quantos. Fica aqui, de qualquer maneira, uma forma possível de encontrar o Pessoas Só.

Como poucos podem amar

Falei com uma mulher e pensei em todas nela situadas, idas ou adiadas. Sou eu, num acordar mais à frente, essa mulher?
E eu sei que esta mulher esperararia por ele, para sempre, na véspera de morrer.

segunda-feira, outubro 09, 2006

Ser.

Ser, outra vez, pelo outro: ser.
(Re)ver aqui por dentro noutras mãos.
Desvendar uma ocultação na boca em frente.
Abraçar quem nos (re)integra numa paz magoada.
Sorrir. Acordar. Sorrir.
Não tremer.
Não temer.

sábado, outubro 07, 2006

Pausa: para quê esta escrita?

Por quê escrever? Para quê? Ou: para quê publicar assinando o nome real? Impõe-se uma pausa para tentar compreender - e pedir o mesmo a quem lê - a insistência numa prosa assente na verdade e por isso perturbadora, corrosiva, às vezes com traços de castigo. A escrita que é uma verdade é sempre sobre quem escreve, mesmo quando ficciona o vagabundo que morre numa masturbação, a empregada de balcão que perdeu o sonho de ser alguém à conta de um ferro nas costas, uma mulher comida pela guerra, a solidão sexual: todos os cenários de observação são escolhidos por identificação e, nessa medida, são extensões de quem escreve. É essa a condição de alguma escrita, da única que me interessa, a que quando descreve um morto, nesse momento, é também uma autodescrição. É, em suma, verdade.
Escreve-se, em primeiro lugar, por vocação. Há, organicamente, um chamamento. Irrecusável. Não se pode declinar a escrita como se não pode suster a respiração por três minutos. Não escrever é, ontologicamente, um abandono de si próprio. Depois, quem escreve precisa, por alguma razão, de comunicar. É neste ponto que a escrita se depara com a contingência da publicação e nela com a da exposição. O escritor, por definição, comunica, fala para alguém, precisa de alguém, quer alguém: o leitor. É de certa forma, talvez com arrogância, um incompreendido. Ou pode ser. A escrita por cumprir é como um pecado por confessar. Dói em crescendo até encontrar o remédio de um lugar onde se expor ao julgamento. Até encontrar o outro. Espera-se, neste tipo de escrita, não só o consolo de alguém que lê e compreende a alma de quem escreveu, como se espera, noutro plano, que o que se escreveu console alguém que se sentia estrangeiro até àquela descrição. Quem escreve pode não ter realmente perdido a alma num momento tão cru como o de uma pessoa se transformar em silêncio depois de lhe dar cabo do corpo, mas é verdade que cabe no seu sentir a possibilidade de integrar esse tipo de dor e de a descrever normalizando-a, impedindo que um anónimo que dê com o texto se vete ao horror de se considerar indígena. A vontade insaciável desta escrita é sempre, por isso, descrever qualquer estado de alma com a sombra da exclusão, convidando-o à humanidade da companhia de outros que são vizinhos, que lhe poderiam dizer: eu sei o que estás a sentir. Esta é uma razão para se publicar: é a razão assente na função, errada ou não, que se atribui a uma escrita. É a segunda razão, ligada à anterior, a da comunicação, que inverte a solidão inevitável de quem sente todos os dias um mundo de descrições silenciosas por acrescentar. Por isso, jamais bastaria escrever e rasgar de seguida, ou ocultar, os textos, como quem se alivia de uma dor, um copo que fosse, uma linha de coca, a escrita não é isso, a escrita é palavra, a palavra tem interlocutor.
Resta saber por que não usar outro nome, por que não temer a exposição, as interpretações que sempre se farão associadas ao nome real de quem escreve. Há muitos escritores que usam um nome falso e nele escondem a pessoa que são. Há outros, porém, que não conseguem. Mais: que não podem. Não se esconde atrás de um nome falso quem não traça uma divisão, por mais ínfima que seja, entre a sua escrita e o seu ser; sobretudo quem tem uma escrita violentamente envolta no drama da identidade. Uma prosa aflita com a identidade sob um nome falso seria uma condenação.
Em cada linha que escrevo avanço um passo nessa descoberta e só o posso fazer com o nome que posto no fim de um texto recorda-me da palavra que aflige tanta gente: eu.

À tua procura

Com a cabeça a explodir por uma dor bíblica, é maior a dor imagética, cai inteira num papel e escreve: tu.
Hoje em todos os semáforos eras o homem do lado; ela revirava a cabeça, uma e outra vez, e o teu cabelo hoje, nos semáforos, foi de todas as cores. Só os teus olhos são sempre estáveis, ali onde ela queimou uma superficie. E tu, onde andas, pergunta; Lisboa enorme e só te sabe em dois lugares. Talvez sejas quem lhe diz desculpe, amanhã, num café qualquer, e a obriga a chegar a cadeira para a frente para passar atrás. Ou talvez agora mesmo tenhas parado no semáforo onde há quinze minutos ela te viu noutro corpo.
Ou a sala, hoje, é o deserto depois do deserto ainda, porque aproveitaste o feriado e estás fora do mapa de Lisboa.

sexta-feira, outubro 06, 2006

Darfur II

O marido. Os filhos. Dois netos. A casa. A pequena plantação. O cenário da sua vida.
As perdas sem voz e o enterro delas pelos olhos.
Hoje, e talvez para sempre, ficar quieta, obedecer ao que seja, sem intenção, seguir uma fila.
Chorar quieta. Recordar quieta. Nada mais ouvir. Ter fome quieta. Não a sentir.
Doer quieta. A incompreensão.

quinta-feira, outubro 05, 2006

Lola


Vou pela rua desocupada dos cidadãos honestos, noites escura, procuro gente sem horários, gente sem casa para chegar, gente sem um molho de chaves a traduzir uma vida remediada.
Vou pela rua, assim, de olhos bem abertos, quieta nos meus sons, à espera que alguém me escolha, tenho sede de ouvir, de sair do espaço nove às cinco, onde Lisboa não tem este sangue, ou esta pena, ou esta ausência de Deus sem a desculpa de Ele não ter espaço para aparecer. O vazio de tudo, dos pecados da modernidade, e mesmo assim Deus sem aparecer, em alguma esquina, ou talvez ande ali, de saia curta, com a barba mal disfarçada.

- Outra vez por aqui?
- Trouxe-lhe as cuecas de renda, como prometi.
- E um pão?
- O mesmo de ontem. Tem esse novo arranhão, Lola.
- Não queria pagar, o cabrão. Nem queria gostar. Queria sentir-me um monstro, e não a ele. Com este par e esta coisa por desaparecer. Isto é uma solidão desgraçada. E sai-me do pêlo. Que difícil ser gaja.
- Pois eu agradeço-lhe.
- O quê, maluca, tu que falas com estranhos de noite?
- Querer tanto ser mulher. Há muitas distâncias minhas que são isso apenas: ser mulher. De manhã lido mal com a condição; de noite, melhor.
- És intelectual, não és, maluquinha?
- Não. Sou viciada em descrições. E penso sem arrumação, uma violência.

Atrás do balcão

- Deite-se. Ainda está muito branquinha.
- Aquele senhor simpático é seu marido?
- É o meu segundo marido.
- Gosto muito do seu segundo marido.
- Eu só não gosto de estar para aqui a servir cafés. Roubaram-me a minha arte aos trinta anos. Enfiaram-me um ferro na coluna.
- Qual era a sua arte?
- Eu era jardineira. Eu era jardineira. Eu era jardineira. Eu era jardineira...
- Que doença essa que a prende a um balcão?
- Chama-se artrite reumatóide. Dói. Mas sou feliz com o meu segundo marido.
- Tantas vidas por contar nestes corredores a correr, não é? Agora, atrás do balcão, será sempre a jardineira. Nunca mais será outra coisa. Para mim, é uma jardineira atrás do balcão.
- Vivi vinte anos com um alcoólico, uma cruz, só depois me libertei, agora sou feliz com o meu João. Vinte anos. Foram vinte anos. Vamos? Está melhorzinha.
- Vou. Olhe..
- Diga.
- Eu sei como é. Essa cruz. Mas não por vinte anos. Um dia explique-me a paz do seu olhar.
- Tem de se andar em frente.
- Vamos.

terça-feira, outubro 03, 2006

Vê-me

Eu sei que vens cá hoje de noite.
Eu sei que pensas num vestido branco e na densidade dele e na mudez depois da porta se fechar para entrar outra pessoa. Ou: eu quero que penses neste ser que te falou sem medo do peso da ansiedade. Ou: eu preciso que penses neste ser que te quis todo pelos olhos.
O entardecer de hoje tem o peso de não seres quem fantasiei, como fantasiei, pronto para a vertigem de uma história qualquer. Esta.

(Eis a história:
uma mulher cansada de histórias chega a um cenário que marcou com antecedência à conta de um olhar de meses antes. Não sabe nada sobre quem sustenta aquele olhar. Sabe apenas que lhe sabe bem estar ali sentada e desejar tudo nele. Sem saber nada dele. Quem avistou o demónio no corpo que lhe era doméstico agita-se toda na empatia de um estrangeiro)

O que me fere é reconheceres-me. É saber, sem saber nada de ti, que estarias bem a beber um copo e a perder a cabeça nestas costas.
(A alegria arquivada volta a arranhar-lhe as pálpebras quando não existe o tentáculo da sua história e alguém, uma pessoa só, diz: que bonita. Excita-se melodiosamente se a frase vai exigida pelo olhar cativo)
A tarde parece-me manhã porque a frase fatal sobre a tua vida interrompeu-me a fantasia.
(Isso é a vida: ter dela e nela dores feitas tumores que exigem a vocação da pele, do imeditado, a sede de episódios destemidos, sem sombras acossadas, como hoje, ela, ele, para ali sentados, na salinha da consulta, sem saberem nada um do outro, apenas que sabia bem estar ali e que saberia bem saber mais, como ela ter ido ali parar num raio de memória quando o carro cruzou aquela esquina)
As perdas antigas doeram muito. As pequenas perdas de agora atiram-me para o canto da solidão que me descobriste nos olhos. São simulações de uma vida. Desta. Da que podia ser. Aqui. Agora. Como nunca foi. Como nunca é. Como eu posso ser. O que eu tenho para mostrar. A minha casa. Este silêncio. Por um dia. Um jantar. Hoje: sem te conhecer de lado algum, contar-te a minha vida e beijar-te enquanto tudo. Um vida nisso. Um texto depois.
(ponto final. sorriso.gostou do texto. espera que ele goste. espera que a agarre. um dia.)

segunda-feira, outubro 02, 2006

Darfur I ou outros mapas


Que sinos dobram por este mapa a crescer contra o seu olhar?

Reclamação

Que vírus este, aparece e reaparece, ando sempre a medir a febre, vivo na fronteira dos trinta e sete, curo a garganta, sinto-o na cabeça, ataco a nova dor, tenho uma pequena hemorragia, telefono ao médico da especialidade, faço análises, volta a febre, estou sempre cansada, tenho sono, alergias, muitas, não sei a quê, a papel, por exemplo, tenho herpes, rinite, à conta desta tomo muitos anti-inflamatórios, tenho dores de estômago, a ansiedade é causa ou efeito, já não sei, tenho medo, de tudo e de nada, tenho a mania das doenças, dizem, ou diz quem não anda sempre com febre, à mínima coisa, uma merdinha que seja, um pingo de água na cabeça, um almoço ao sol, uma reunião com ar condicionado, lá vem a febre, e o cansaço, e os anti-inflamatórios, e o medo, e a ansiedade, e o queixume, o meu, que se lixe, as análises sempre normais, e eu ando sempre cansada, de mais, sem análises que me valham, eu estou sempre zangada com o meu cansaço, eu nunca tenho a energia no corpo que a minha cabeça exige, eu acho que sofro de fadiga crónica, que peso nas pernas, que efeito secundário, que ritual esclavagista, a pílula, que ovários exigentes, eu ando sempre com uma febrinha, eu tenho sempre bom aspecto.
(Teresa P. e M., eu preciso de ganhar coragem para te falar sobre isto - eu sofro tanto que neste texto já escrevi "eu" perto de dez vezes - , sobre esta certeza que tenho de que os meus tecidos são uma porcaria. Eu preciso que me expliques por que é que uma pessoa que se trata bem anda sempre doentinha. Eu preciso mesmo que encontres uma forma de me fazerem exames de uma ponta à outra - talvez sob o pretexto de ser clinicamente irrecusável estudar um corpo jovem sempre febril sem razão aparente - e só depois de nada ser identificado - incluindo a fadiga crónica - poderei ficar fascinada com o poder da minha ansiedade. E condenada).

sexta-feira, setembro 29, 2006

Este mapa II


(Talvez )
Quando parar de pensar, alguém olhe por este mapa e conte a história dele.
(Talvez)
Seja verdade que a dormir sou mais eterna que acordada.
(Talvez)
Os dedos à noite não estejam a olhar por mim, mas a olhar para mim.
(Talvez)
Sejam diurnos os mapas cobrados nos sonhos e nem na morte vencidos.
(Talvez)
Não haja terror igual ao de uma cirurgia póstuma da nudez.

quinta-feira, setembro 28, 2006

Na nossa mesa

Ontem viu um sonho com menos dez quilos. Um mês depois, no local de encontro, lá estava quem sobrevive por acaso de encontro para encontro.
Seria bom ver o seu andar, antes daquela hora, a descer a calçada? E ver o que é a rotina que antecipa o trancar da porta do seu encontro?
Olhou o homem, o nome, a pessoa, sorriu: silêncio. Induz devagar um abraço a quem se inclina por vocação apenas para um beijo.
É aqui que começa mais uma noite de diálogo, primeiro com duas palavras por minuto, cortadas pela respiração do seu cansaço, depois vencedora, apaziguadora de todas as dores. Uma hora depois, estão soltas as nossas gargalhadas, e nem a inevitável conversa sobre a doença do meu sonho com menos dez quilos as interrompem. Naquela mesa, não há fim de noite, não há o próximo mês sem notícias, não há espaço para o espaço da notícia fatal.
De manhã, já não estou à mesa, já posso chorar. Ao mesmo tempo, a força da intemporalidade daquela mesa dá-me a resposta: o que nos salva é não te ver e nada saber de ti até àquela hora.

quarta-feira, setembro 27, 2006

Corpotexto

Talvez o paradigma do desgosto seja uma unha encravada no pé.
-Há muito corpo nos teus textos. É mau sinal.
- Ando mais ou menos. Ando mal. Ando muito mal.
- Tem cuidado contigo. O que andas a fazer?
- Eu aqui não tenho medo.
Há muito corpo, por aqui. Se é nele que tudo se exprime, que fazer? Não escrever? Hoje? Mudar de tema? E se hoje abrisses esta janela e visses um texto sobre o mar? Teria de ser uma outra janela, talvez uma janela da Sofia, há nas dela poemas de sobra sobre o mar; por aqui será sempre a pele, o corpo, a história dele, a minha história, a nossa vida, a de toda a gente. O corpo, do cabelo ao sexo, é a morada de todas as descrições; não sei por quê, sei que é no fígado que me dói a criança que morre dentro de um saco de plástico.
Este meu corpo absorvente, uma esponja do mundo; este meu corpo que precisa de sentir de mais para lhe fugir tanta memória colectiva.

segunda-feira, setembro 25, 2006

Desencontro

-Sou EU, entendes?
- O que andas a fazer?
Nós estamos perdidas, eu vim aqui dizer-te isto, a esta hora, depois de acordar no cenário da tua casa, no rumor do teu filho a rodopiar pela sala igual à da nossa avó. Eu vim aqui dizer-te que estamos perdidas, como devemos estar, que a nossa conversa foi uma violência, porque foi o retrato de duas cadeiras vazias e a esperança da força de uma infância a fazer correr qualquer coisa: o nosso desencontro. Estamos perdidas nisso de podermos falar da mesma coisa, sentir a mesma coisa, integrar a outra quando a sua voz decompõe a matéria em desalento.
- De que falas?
Eu ando sempre atrás da infância, por isso andas sempre colada à minha pele, a esta que agora se gasta, para ti inutilmente, para mim melhor que nada, eu ando sempre atrás da infância, lá onde era pequenina, de franja, onde não doía, onde éramos iguais. Eu corro atrás de ti, como há dois dias, por um telefone, e o telefone, há dois dias, era a rampa dos jardins da nossa infância, por isso quando te ligo a gritar SOCORRO, tenho o impulso de quem diz COITO e bate na árvore onde se contava até cem no jogo das escondidas. Mas nesse jogo, tarde ou cedo, lá aparecias; no telefonema, não respondes, não podes, como na outra vez, como em episódios que doem tanto que estão estranhamente inscritos em três textos. Estás sempre retratada nos meus regressos, nas minhas solidões, nos meus desejos impossíveis de que tudo volte a ter a dinâmica da infância.
- Desculpa?
- Não. Sou eu. Eu tenho de pedir desculpa, porque esta vida que seguiu oposta ao nosso plano de há vinte anos faz-me simular a nossa antiga simbiose à hora de agora e não aceitar que estradas tão diferentes não vão dar a terrenos comunicáveis.
Resta-me amar-te pelo que significas, sempre, pelo amor que me tens, que é dos que se tem porque se tem; resta-me evitar passar-te à frente dos olhos os episódios de uma vida que as tuas cortinas não acolhem. Resta-me encontrar-te nos Natais e nos almoços onde moldura alguma nos agride. Nunca mais poderei arriscar correr para a árvore a gritar socorro e ouvir-te dizer ligo já e depois o abandono; nunca mais poderei falar olhando-te no olhar e ver nele uma parede; nunca mais poderei esquecer que nós, como fomos, estamos perdidas.
A minha vida permite compreender a tua. É fácil. E cruel.

domingo, setembro 24, 2006

Este mapa

Volto a mim no único sítio em que sou uma paz. Escrevo. Silêncio. Respira-se com alguma dor, com uma má memória fácil de ter sido evitada, das que desaparecem como passageiros enganados no comboio que vai para o campo. Hoje o meu corpo é um mapa. Reflicto nele e no que lhe aconteceu. Da observação vem o silêncio comprometido, há qualquer coisa que me impele para a não-comunicação. Sou este mapa de histórias e queria pedir perdão por algumas, sobretudo pelas mais pequenas, pelas que, sem nome, pesam de mais. Há uma vertigem nesta manhã que parece avisar-me de qualquer mudança. Não sei o que me diga. Não encontro o choro como conforto, hoje, apenas o silêncio e a não-comunicação. A minha vida? É isso que uma pedra que dói neste mapa parece perguntar? A minha vida? Nunca mais é o mandamento que a sala vazia pronuncia. Não faças isso, diz um morto numa moldura. Afinal, não uma lágrima, mas uma humidade nos meus olhos. É o não-abraço desse morto, é o não-beijo do vivo que não conheço, que não chega. E por aqui tanta pele, tanto amor por devolver. Estou com sono, um sono medicado, que me não dá porta para sair daqui. Por isso chega alguém, que tem a delicadeza de gostar de mim, e passa as mãos no meu cabelo com a harmonia oposta à agressão da véspera e eu adormeço para a recuperação. Amanhã. O futuro. Ou o destino. E este mapa que tratei mal. A minha vida. A minha incógnita. A minha pele. O que vou permitindo. Os meus amigos. A minha alegria. Os meus sorrisos em câmara lenta. Eu. E este lugar escondido onde não sou assim: a minha casa.

quinta-feira, setembro 21, 2006

Como Deus: desce daí.



Desce daí. Não tenhas medo. Não tenhas medo do teu medo. Não tenhas medo do medo dos outros. Não tenhas medo do medo de Deus (nos outros). À imagem e semelhança de Deus, recorda-te. És tão marginal como Ele, como eu, como a tua mãe. À imagem e semelhança de Deus, recordas-te? Desce daí. Não tenhas medo. Se Deus não é bissexual, por falta de interlocutor, é, porque estás aí e eu aqui, pelo menos bissexuado.

4 mulheres e um tapete

Quatro mulheres sentadas num tapete, vidas ritmadas em tempos diferentes, franjas comuns, no entanto, e ontem a similitude, ou a empatia, desta e daquela dor estava na gargalhada, nas gargalhadas comuns, tão femininas, tão ganhas. As quatro mulheres ao telefone com o pintor que acordou para a loucura delas, talvez o único homem que pudesse rir como se ri quem se vinga das dores em episódios inesperados. Foi tanta a nossa liberdade naquele telefonema (não foi, meu amor?). O telefone a rodar de mão em mão (parecia um charro e tu o efeito dele).
O que diria Cristo daquele encontro inesperado de mulheres num tapete? Pareciam Martas, ou Marias (irmãs de Lázaro), ou Madalenas. Dois mil anos depois.

terça-feira, setembro 19, 2006

Fracções de um mito

Está sempre à procura de fracções de quem não encontra em quem vai encontrando. Há um rosto que tem calor, sem um pensamento que o ampare; há uma inteligência que a fascina, sem a ternura que a aquece; há o dom para escrever, sem o carácter que se quer no poeta dos poemas. Vai amando um ser ideal em fracções dele descontinuadas, loiras, morenas, carecas, às vezes com mau hálito. No meio de um lençol, pode esquecer uma frase absurda se está a criar uma parte vital do seu mito. Passa depois o tempo e com ele vem a visão real do feito e diz que horror ao que quando vivia dizia que lindo. Tanta gente, meu deus do céu, tanta gente, até quem se aflige todo na sua imaturidade. Basta um cenário, basta o clima da ficção, basta uma distância que permita fazê-lo sublime e cai num enredo inadmissível porque sabe bem por uns dias parecer que se está a viver alguma coisa digna de um filme. Do seu filme. Atura tudo: quem declama Pessoa e beija mal; quem é todo emoção e escreve jeito com g; quem fala de forma quase inédita do amor pela namorada para acabar a pedir o seu corpo perdendo a alma; quem na hora de verdade simplesmente cheira mal. Tanta gente, tanta gente, meu deus do céu. Tantas fracções do homem que procura e tanto custo, tanto cuspo. Tanta gente, tanta gente, e este lugar-comum de saber que anda à procura do pai.

domingo, setembro 17, 2006

Olha-me(nos)


Eu acordo a chorar, em silêncio profundo. Em silêncio profundo. Acordo a chorar com a noite como única memória recente. Nada mais para me afligir; a noite de ontem, apenas, mas tão envolta na sua ausência, a minha noite perdida sem amor, sem braços que amparem a carne que envelhece e que tu esqueces e eu, eu acordo a chorar, em silêncio profundo, em silêncio profundo. Dobro-me toda nas minhas dores que são todas a dor de te não ter, todos eles foram não seres tu, ninguém te ocupou, e ainda há corpos por chegar, eu sei, eu choro em silêncio profundo, em silêncio tão profundo a solidão que sou em todos que não tu e todas as minhas dores de hoje são memórias boas que me flagelam e que não posso expulsar expulsando-me. Eu acordo a chorar no teu silêncio profundo, o tempo passou só em ti, eu estou aqui, no mesmo ponto, onde me situaste, eu estou a sofrer agarrada ao meu corpo que é onde te tenho e a sofrer sorrindo porque recordo-nos. Então, sou a minha dor. Eu não posso seguir em frente, como dizem todas as vozes que são exteriores ao nosso mundo para ti perdido, eu sei que era para ser o que não foi, eu e só eu experimento a revivência gestual de tudo, eu acordo a chorar passem as vidas que passarem, em silêncio profundo, e dentro de mim uma gritaria de sons, um mármore de caminhos nossos, eu não posso partir e puxo pela dor que é puxar por ti. Por isso, digo, calada, magoa-me ficando, assim os anos que fiz de ti o meu ar são verdade, eu tenho de acordar a chorar para o resto da minha vida e magoar-me em todos os corpos que me surjam, porque eu sei, por mais que tu não saibas, que eras tu. És tu, e se me ficas como um tumor é assim que te quero, é assim que te posso, é assim que te choro, em silêncio profundo, em silêncio profundo.

sábado, setembro 16, 2006

Submissão

Brincar com com o corpo; manipulá-lo; tapar uma narina e inspirar fundo com a outra; apertar os dedos até a mão tremer sem intenção; comprimir a barriga e castigar os intestinos; roçar o calcanhar no chão até esquecer a perna dele; trincar um lábio e provar-nos por dentro; morder a língua e calar palavras; fechar os olhos com a força que nos condena à tontura; engolir nada a arranhar a garganta; encostar os joelhos um no outro com violência; sentir as nádegas; inspirar de mais e ficar aflito; não usar as mãos em nada disto; vencer o corpo que é nosso; esticar os braços para doer amanhã; suster a respiração por um minuto; e ser vencido.
Respirar.

quarta-feira, setembro 13, 2006

Z.L.

Dava-te a pele toda como tela,

(sobre nós, um espaço de tamanho exacto, sem chuva, feito de luz)

Dava-te, sorrindo, a minha energia,

(eu ficava para ali estendida, descansada, finalmente, feita apenas para ser a tua tela)

Dava-te o meu sangue,

(sopravas pelo meu corpo vazio o ar do Alentejo e davas-me a forma exacta da tua doçura)

Dava-te a minha vida,

(mas tu devolvias-me, com um dos teus gestos, a vida que me calhou e que é tanto em ti)

Eternidade

Nós somos os que chegamos depois, dizia a filha da mulher superior que ontem terminou a sua vida. Cinco meses foi o tempo da sua doença, da sua espera em silêncio comunicante. Olhei para a filha que citava o filósofo e vi a sua eternidade perdida.
Agarrei a mão da minha mãe.
Ainda sou eterna.

terça-feira, setembro 12, 2006

7 anos depois

7 anos depois, vi-te e descobri que nunca estive atrás das grades. Era eu, afinal, como agora, o olhar do lado de fora.
É assim que te (re)vejo.

segunda-feira, setembro 11, 2006

Retrospectiva

O tempo desmente os quadros que eram perfeitos. Encontro só agora as manchas que calam a pronunciação:
- era perfeito.
Quando os sábados deslizavam nos nossos aconteceres domésticos, pensando bem, vendo bem, não me assaltavas o corpo sem medo.
- não era perfeito.

Não quero ser

Não quero ser a mulher de oitenta anos que se debruça toda no balcão da farmácia amparando a surdez e as varizes. Não quero perguntar aos gritos pela pomada que começa por "f" ao Senhor João e não saber que uma fila se agiganta na minha corcunda sem piedade do seu próprio futuro. Não quero perder o controlo da cera que espreita e ironiza a surdez, pior, que faz pensar: que nojo. Não quero ser a causa da impaciência de quem anda ao ritmo que quer, de quem arfa e se queixa de velha que não sai dali,

AQUELA CHATA.
Não quero ser uma mulher de trinta anos que também suspirou impaciente, em vez de sorrir perante o único ser amável naquela multidão de velhos adiados que se chama Senhor João.
Hoje a pele serve-me mal.

Melancolia

Às vezes, apetece tremer toda em soluços, apenas por ouvir uma voz de alguém ao telefone por quem não se chegou a sentir o que seja, nada.
(amor)
Mas a soma das dores aproveita todas as alforrias e a voz do homem que nunca tocou no seu joelho dói-lhe de um ouvido ao outro, como todos os destinos desviados. Devo estar doida, pensa
(sem o dizer ao espelho),
mas a terra que abranda o seu sangue chama-se melancolia e ela até de ninguém tem saudades.

quarta-feira, setembro 06, 2006

84 anos

Às vezes pareces-me pronto a explodir. Mesmo quando sorris, mexes sempre os dois polegares como quem neles circula o que pensas estar por cumprir. Olho para ti sempre que almoçamos e penso que é no teu olhar que nunca sou estrangeira, porque na distância de 54 anos há a proximidade que nunca encontrei nos não-homens da minha vida. Homens que na minha escrita chamo de lobos, porque me magoaram como feras. E lá estás, a fazer circular o mistério da tua ansiedade que é a minha entre os dedos que subitamente são os do teu pai. Há sempre dor no teu sorriso, como há sempre aflição na minha calma.
Aprendi a sabedoria de dizer esta sou eu, sem medo, e queria que soubesses e sentisses que sou tão feliz na nossa ansiedade partilhada como o era após o jantar sentada no teu colo com a tua gravata gravada na minha face. Não há tempos díspares, portanto, entre nós, como um dia escrevi; há antes uma intensa proximidade, calhando apenas que eu falo mais porque conto com a tua prudência e porque sinto que te faz bem o choque emocional feito em verbo.
Sempre que nos sentamos a almoçar, observo-te reclamando toda a tua vida. Pareces-me pronto a explodir, digo. Mas quero explicar que é esse teu estado limite que te torna um ser com o rosto de que não prescindo à minha secretária. Escreves sobre o humanismo e a esperança que é sempre uma criança que nasce, mas no concreto da tua pele não foges, porque não podes, ao pessimismo que te assombra a visão do que esteve para ser e o acaso não permitiu ou do que simplesmente surge preto por mais que um poeta clame por claridade. É essa contradição remoída nos teus dedos que amo. Que faz de ti uma pessoa muito antes de seres um intelectual. E sei que a dor que te não permite veres a evidência da luz que foi, é e será sempre a tua vida sangra de uma ferida que se chama exigência. Hoje gostava que soubesses que sofro dessa ferida, dessa exigência violenta que me não deixa descontrair e reconhecer o que faço, jamais, como muito bom, mas apenas, aqui e ali, como o que pude fazer.
Não trocava a minha ansiedade e a dor dela pela calma feliz que tem o preço da não-reflexão. O mesmo é dizer que gosto de ti sempre pronto a explodir.

terça-feira, setembro 05, 2006

O terror da luz

-Que fazes aqui, cambaleante?
- Manuseio o meu cansaço. Emigro, de pé, a fadiga do meu cérebro para os meus joelhos.
- Que palavra essa que não soletras?
- Já não chego à claridade?
- Pareces esmagada pelo terror da luz. Ele é o terror da luz?
- Não. O mundo ser povoado deles é esse terror.
- Tens as costas cheias de palavras por cumprir. Falas?
- Passou o tempo. As palavras eram para um ouvinte que fazia sentido porque as ecoava. Agora ando assim, como sempre me acontece, quando o verbo não se solta. As palavras geram uma corcunda e acabam por escorrer pelas minhas costas.
- Como uma cruz. O que fazes com os dedos?
- Recordo o meu avô. Recordo a claridade nele sem zonas de incerteza.

segunda-feira, setembro 04, 2006

Fuga

Debaixo de um sol honesto e perante um rio sem segredos, um homem aflito começou a correr em direcçção a um carro. Corria sem parar, dizendo que vinha já. O carro arrancou com asma no motor. Pensou quem viu que o estranho homem fugia de um terramoto, ou da certeza de uma morte.
Fugia afinal de uma conversa na qual teria de olhar em frente.

Interrupção

O rapaz sentado na esquina da minha rua é suburbano. Acontece-lhe a noite, e o dia não se ocupa do seu corpo. Ele é um detrito da noite. Murmura sempre a mesma frase - por que fiz aquilo, pá? -, e poucos sabem que fala do dia em que não deu conta de que as asas da filha eram mentira e de que ela não podia livrar-se do cheiro a mijo do quarto alugado saindo pela janela.
O rapaz sentado na esquina onde a noite às vezes tem tremores dobra-se todo como uma vírgula,
(e eu penso és uma interrupção?)
suportando a arfar o peso da seringa. Passei por ele e descobri que tem olhos azuis, nnguém diria, não há azul no sujo. Penso em estender-lhe a mão ou falar, gesto ou palavra, nada. Ando a condenar o silêncio e aqui tenho geada na garganta enquanto ele tenta em vão, de olhos revirados, bater uma punheta, morto perante as risadas de três crianças-demónios que lhe apontam o dedo e mostram a língua.

(O demónio, hoje, é uma criança de dedo espetado e língua de fora)

Um dia vou conseguir fazer explodir atomicamente estas paisagens.

sexta-feira, setembro 01, 2006

Pela sua voz

Quem tira as forças das memórias espera que quem desenha algumas aparentemente boas não as trate com azeite quente. A ansiedade corta-lhe o coração verticalmente e a dor tem essa direcção. Telefona à voz que ouve com mais atenção. Não é só a palavra que busca mas o consolo daquele respirar que entra no ouvido que há três dias era usado apenas para a exitar. Ouve:

- Ironize.

A ansiedade amarra-se no tórax. Diz:

- Vou deixar de respirar.

Deixa-se acalmar pela sabedoria da voz que ouve com mais atenção. O coração reconhece. Fuma na doença adiada a voz que insiste:

- Não tenha medo. É esse medo que os seus lobos querem que tenha.

Começa a respirar e a sentir. Sobretudo a sentir.

As ancas voltam ao lugar.

quarta-feira, agosto 30, 2006

Alguém

Hoje, entre algumas folhas de espinafres molhadas de mostarda e de mel, nasceu uma pessoa. Cresceu-lhe difusamente um rosto, com densidade, até ter a forma exacta da bondade. Que é transparente.

segunda-feira, agosto 28, 2006

Um

A dor da ansiedade encontrou uma barreira qualquer. Ainda não lhe dei um nome. Mas aquela dor, hoje, não tomou conta dos meus movimentos. Dilui-se e, derretida, pingou-me a saia. Dói menos. Estou a respirar.