terça-feira, julho 24, 2007

Belgrado

E depois há uma música
Que é sempre a mesma
Que são muitas outras
Que é sempre a mesma
Que eras sempre tu
E depois disseste-me com a voz nas pálpebras:
Eu não tenho esses séculos de fronteiras
Eu não tenho a paz de saber das minhas memórias
Eu não sou eu até que me não doa a casa magoada do meu tio
E a grávida morta porque morta antes a mulher do assassino
E por isso dizias-me, sem uma lágrima na voz:
Isto é só isto é a dor da identidade;de que falas, Isabel?

E depois agarravas uma viola e era uma outra voz
Que era sempre a mesma
Que eram muitas outras
Que era muito tua
E o som da tua voz inutilizava o significado das palavras
Que não entendo
E que me dizia tudo
Um tiro de raízes ciganas, pelo meio de todas muçulmanas, croatas, albanesas
E as tuas, isso que projectava a pergunta: de que falas, Isabel?
Os olhos cerrados de um sérvio a recuar aos sons
Que eram tantos
Que eram muitos outros
Que terão sido sempre aqueles
Cantados antes que gritados
Ou chorados
Ou sangrados
De que falas, Dragan?
E tu a dizeres: eu preciso de tempo
E que fosse a partir de um sítio com o nome de lugar novo
E assim a dizeres-me, de viola na mão, que precisas de viver
Com a paz muito sofrida da palavra eu

domingo, julho 15, 2007

angústia

O Céu não é humano
Bohumil Hrabal (Uma solidão demasiado ruidosa)
O mundo tem o tamanho da angústia
(na nossa mesa, ontem, perdi-me dele)
acordei às cinco da manhã
entre a nossa mesa de ontem
(onde me dói sempre menos o medo
onde me dói cada vez mais a mesa)
e uma troca de mensagens ousadas
saindo um pouco nelas
vindo-me depois delas
num espasmo de medo, de desequilíbrio
O mundo tem o tamanho da angústia
hoje diria, meia nua, meia louca:
O céu não é humano
e pediria de volta a puta da mesa
para te recordar nela o livro que te ofereci
O mundo tem o tamanho da angústia
e hoje estou nem mais nem menos
os sacanas enraivecidos, os sinais de trânsito
atiraram-me para uma berma
e eu disse-te: vem visitar-me, como se de partida
vou morrer
– grito, na minha Avenida de Berna
e o sangue corre dentro disto
com força, com pressa, com maldade
um veneno
O mundo tem o tamanho da angústia
O céu não é humano
a angústia dói, corrói, infecta, inflama
sou medopositiva, angustiadopositivia
escorro este demónio atrás dos óculos escuros
hoje acordei às cinco da manhã
e o gajo que me excitava toda
parece que afinal não
o dia amanheceu com uma desilusão banal
muito invulgar, nesta cabeça por um fio
a angústia tem o tamanho do mundo
o céu não pode ser humano
e hoje não há orgasmo que me safe

sábado, julho 07, 2007

20 anos

Para o meu irmão João

Olhei-a na cadeira lá ao fundo, esperando a sua vez de fazer exame
Caracóis desordenados, olhos aflitos com um tempo absurdo:
Vinte minutos
Uma tragédia, a sua ópera: vinte minutos
Saber se depois deles as mensagens serão de vitória ou de derrota
Chora-se muito naqueles corredores
E eu tenho saudades de me vestir assim
Decomponho as pregas de todas as roupas de vinte anos
Por dentro, corações, pulmões, vértebras, fígados
E o sangue no meio deles, tudo a mexer
A sobreviver
Para o mesmo terror: vinte minutos
A merda do exame que chumba outra perspectiva
Chamar, neste dia, ao mundo prova oral
E tremer, tremer, tremer
Odeio isto
Amo isto
Sou isto
Já não sou isto
Envelheci
De noite, um rapaz de vinte anos bebe os vinte minutos vitoriosos
A sua última ópera de sangue: chegou ao fim
Sussurro entre duas lágrimas: chegaste ao início
Tem a pele muito macia, este rapaz
Os olhos quase tristes, de tão vazios de fechaduras
Cruéis, amáveis, por não terem a penumbra dos meus
Deles têm o castanho límpido de há oito anos
Quando enterrei os meus últimos vinte minutos
E parti a conquistar o mundo e a vida
Com um diploma suado na mão
E um saco de energia e esperanças nas costas
De noite, um rapaz de vinte anos olha uma mulher
De vinte anos
Dá-lhe a sua vida por viver
Que é dar-lhe um corredor todo, onde ele mesmo um dia será outro
Ou não
Tem vinte anos este rapaz que de noite entra pelos meus ouvidos
Com os sons dos amigos a gesticularem e a rirem em seu redor
A nossa casa menos eterna
Os nossos pais, de repente
Pareceu-me
A chamarem por nós
Mais uma vez: só me dói o que é verdade
Tenho saudades da minha infância
E depois tenho saudades de doer muito a espera
Pelos meus vinte minutos de horror
De me vestir assim, como a rapariga na cadeira lá ao fundo
E depois tenho saudades do saco que levava às costas
Quando me anoiteceu o dia, como ontem, ao meu irmão

segunda-feira, julho 02, 2007

Luto

É excessivo o cerimonial em torno da morte, dizia.

(Velório, missa de corpo presente, funeral, missa do sétimo dia, missa do mês, visitas a casa, choro social, dor colectiva, pancadas a percorrerem um teatro de flagelação)


Um dia, a morte pesou-me como nunca e também aí me pareceu excessiva a marcha lenta em redor daquele corpo, ou daquele acontecimento.

(No entanto, nesses dias é permitido e esperado que se chore de pleno direito, sem espaço para mais nada, o nosso rosto é um espaço exclusivo da dor da perda, dos beijos de consolo, das mãos dos amigos que por ali passam, que compreendem, que se afundam connosco na tragédia do adeus que se adia nas cerimónias inventadas para isso mesmo, entendes?)

Depois de encerrado o capítulo do coração aberto aos amigos próximos e distantes, vem a tragédia do regresso à vida habitual.

(É uma tragédia, porque se vive com o rosto posto na saúde e o coração enterrado na aflição)

Pouco a pouco, é esperado de nós que voltemos a sorrir sem a sombra daquela morte que nos atirou para uma cama a soluçar, porque já passou o dia, a semana e o mês em que o choro tem lugar para ser abraçado, ou para antes disso ser comunicado, ou para antes disso ser esperado, ou para antes disso ser normal. As perguntas acerca de como vai o nosso coração sem ela começam a espaçar, porque cumprimos o devido.

(sorrimos, trabalhamos, bebemos, fumamos, fodemos, somos, em suma, pessoas devolvidas ao mundo dos outros)

Mas, na verdade, há a hora em que chegamos a casa.
(Passado o tempo em que deixa de ser razoável que se pergunte por ti, ou passado o tempo em que a pergunta por ti é uma raridade que espera uma resposta feliz e antes descobre uns olhos a explodirem a dor quotidianamente disfarçada, passado esse tempo, o espaço chama-se silêncio, ou duplicidade, e a verdadeira dor, ou solidão, então começa)