quarta-feira, dezembro 24, 2008

preferias não ter sofrido?

o que eu queria era derrubar as palavras todas e com elas a gramática, as figuras de estilo, eliminar os adjectivos, inventar tudo de novo, porque não há palavras para a palavra de sempre que é a palavra dor. o projecto falha e tenho de dizer que esta dor dói mais do que as outras porque engana com intrevalos que fazem acreditar na sua derrota, mas ela cai a pesar uma tonelada no sábado de manhã, e sem aviso volta-se ao princípio da doença e ouve-se uma voz que nos diz que isto é cíclico e a nossa voz interior chora por andar nisto que é cíclico há mais de cinco anos. preferias não ter sofrido? ouve-se essa pergunta e sabe-se que não, mas sabe-se também que sim, que quanto a esta dor cílica, que nos nasce na alma, preferíamos não ter sofrido, não sofrer, não ter nascido. fica um deserto de esperança, o optimismo está entalado numa centena de bulas esquecidas nas gavetas dos anos de luta escondida. vai-se trabalhar de manhã e chora-se à hora do almoço e de noite. é-se forte, sim. muito; então em dias como os de natal...

segunda-feira, dezembro 15, 2008

s.t.

atreve-se, sai do caixão devagarinho, navega para uma sala desconhecida, de peso sente apenas um leve rímel nos olhos, ouve uma história pesada, não esperava por isso, por aquela história, vinda daquela boca, consegue não chorar, enquanto se enterra no relato, porque sai da sua própria dor e entra numa dor anónima, embora agora sua, como sempre faz às dores, dobra-se no sofá, ouve, a história e a música que a anima para viver, ouve também o som do cinto que se desaperta, preciso de afecto, eu também, o copo de água é grande, como a história de dor que escuta, cada vez mais colada à sua pele, sobretudo quando há silêncio, a história continua atrás das suas orelhas, na sua cintura irrequieta, no grito que não abafa, nos lábios que teimam em não se fechar, ser de alguém por uma vez que seja, há muito tempo, pensa, há tanto tempo, preciso de peso, pensa, cola-te à dor que te não contei e entra, entra, entra, fazes depois uma pausa e não sabes que estou a chorar por dentro, que três dias antes, como o 3 do teu quadro, eu estava morta, era só isto que eu queria, ouvir e sentir a tua história e diluir a minha assim.

quarta-feira, dezembro 10, 2008

s. t.

agarra o braço da mãe com muita força e caminha pelas ruas de Praga. ampara braço e corpo dessa maneira, sem ter prazer em nada, numa visão que seja, uma solidão demasidao ruidosa, uma outra cidade, inventada, por dentro, com as suas esquinas a acabarem todas numa prancha para saltar: a morte. as copas das árvores abanam e assobiam a palavra morte ou o verbo morre, toma consciência da perna direita e da perna esquerda, aflige-se até chegar ao hotel, para então curvar-se toda no seu desejo de saltar e agarrar o corpo da sua mãe com muita força e confessar-lhe ao ouvido que em minuto algum daquele passeio fez outra coisa que não treinar a sua morte: não aguenta mais, mãe. há um homem ao telefone que lhe sopra a certeza de que isso passa, que só ela não vê que a dor medieval que sente é provisória, que de fora é fácil ter uma outra certeza que se chama vida. ela diz-lhe que a sua provisoriedade vem sendo eterna, que não aguenta o peso de uma folha outonal, um sorriso estrangeiro numa sala anónima, um restaurante que lhe roube a segurança do quarto escuro, a maquilhagem que a impede de chorar.
mãe, eu vivo no inferno.
por ti.

quarta-feira, dezembro 03, 2008

proximidade II

a tia afastada-próxima morreu, ouve. morreu, ouve. morreu, ouve. morreu, ouve, morreu, chora.
o verbo é um choque que não mata a pessoa, apenas nos atira para a última vez vimos a pessoa. morreu, ouve. morreu, ouve, morreu, lembra-se: no átrio do hospital a palavra que não disse àquela dignidade comida por um cancro feroz, rápido, e agora as palavras da filha que lhe chegam aos ouvidos: eu não quero viver sem a minha mãe. diria assim: eu não quero viver sem a minha mãe. com esse pensamento abraça a prima afastada-próxima. a morta deitada ainda parecia cansada, de tanto que sofreu; pô-la a andar no átrio do hospital e recordou-se de pensar: a próxima vez que te vir estarás deitada entre quatro velas. um cartão a clamar que God couldn´t be everywhere, therefore he made mothers. abraçou a mãe da tia afastada-próxima, que perdera o marido quinze dias antes, e que misteriosamente lhe dedicou desde sempre um amor intuitivo, uma fraqueza, como diz, e na sua dor imensa, a um centímetro do rosto da filha morta, agarrou no seu rosto, que estava firme, sem uma lágrima, por ela, e disse-lhe: Deus lhe dê forças, minha querida.
(como é que ela sabia?)
saíu dali a tropeçar nas lágrimas de três mulheres.