quarta-feira, maio 30, 2007

de manhã

levanta-se o medo da almofada e a besta assume a forma de meio crânio. é ali que pesa, é ali que insiste em enlouquecê-la quase, em bater-lhe quase, em matá-la quase. os gestos de sempre, de manhã, palavras gastas, os gestos de sempre, tomar banho, com medo, medo, medo, medo, palavras gastas, o ralo da banheira, já o escreveu, já o temeu, já se morreu ali, o carro, sempre o carro, palavras gastas, a música a ferver, hoje de manhã, fervia muito, cantava mais alto que os pregos a começarem no seu colo, a fazerem-na trepar-se por eles, até ao céu, perder o chão. não está a escorrer nada, nada, nada do que sente, este medo, estes pregos, a ferrugem deles seria boa, agora que pensa, esfregar-se toda nela, e sentir, que é como quem diz sentir-se, que é como quem diz salvar-se. todos os dias uma guerra, uma guerra com o medo como sangue, o desequilíbrio como inimigo, o desequilíbrio como ocupante, uma potência, uma guerra tão sofrida, pai, uma guerra tão violenta, mãe, e de manhã apetece muito desistir e dar o crânio ao inimigo, ou oferecê-lo a uma nova pátria, e depois de um longo e enlouquecido grito chorar, chorar e chorar no ombro que escuto com mais atenção.

terça-feira, maio 29, 2007

de noite

tinha o corpo muito curvado, com medo dos espaços que sobram entre as dobras do edredão. nesses espaços o ar arrefece com intenção e o silêncio dele pesa entre os joelhos, entre as axilas, entre o queixo e o ombro, entre ela e ela, um espaço a dizer o seu medo, ou um amontoado de espaços a dizerem que é ela que sobra, ou a dizerem que é ela que lhes sobra; uma dor assim apertada, a noite expande-se pastosa, maligna, por cima da curva que é o seu corpo a suster a respiração, a suster a aflição, a suster a duração limitada do seu equilíbrio; uma dor assim apertada, a pedir muito por uma voz, a pedir muito por um corpo, a pedir muito por uma expiração, a pedir muito por um amparo, antes que solto aquele demónio, aquele demónio feminino, que espreita ocasionalmente, está ali atrás da porta, está ali por cima da cama, está ali por entre as dobras do edredão; uma dor assim apertada, a noite é uma procissão sem velas, ou ela um corpo não velado, ou ela uns olhos a explodirem o grito de terror, ou ela uns dedos comidos na sua guerra meticulosa; uma dor assim apertada, chamada solidão, entre os joelhos e entre as dobras do edredão, o desequilíbrio a qualquer momento, num momento imenso, quando o telefone não toca, uma dor assim muito apertada, com a consistência do medo, com o preço de duas lágrimas, de duas longas lágrimas.

domingo, maio 20, 2007

Ouve-se Sempre a Distância Numa Voz (Rui Nunes)


É a segunda vez que escrevo sobre um livro de Rui Nunes. Escrevi, a primeira, sobre o “A Boca na Cinza”, no Jornal de Notícias, explicando que não tenho pretensões de crítica literária, nem posso, explicando que falta, ou pode haver, o espaço do diálogo directo escritor/leitor, este último atirando-se ao texto, em resposta, na genuína intimidade que o escrito gera.
Escrever sobre este livro é, como sempre, escrever sobre o Autor, que nos marca pela verdade dura dos seus textos, textos escritos contra o medo, talvez o medo que se pressente tentado contra o escritor; sem sucesso. Haja tempo para ler este livro.
O Livro, então:
Esta é a soma, ou o percurso por todos os livros de Rui Nunes. Quem os conhece, termina a leitura com essa amargura: há aqui uma procissão pelas palavras da sua vida e nela se reconstrói uma vida, numa nova história, que é a mesma, a soma de todas, para dizer adeus, com o peso de todas, a dor a atravessar nestas linhas as outras a que se chamou Enredos, ou Grito, ou Álbum de Retratos, ou o Mensageiro Diferido, um legado de legados, e se se ouve sempre aquela distância, quem lê o livro com a voz dele não pode deixar de escutar o anúncio de um qualquer último suspiro.
O espectro do livro é um quarto, onde estão um homem e uma mulher, os únicos corpos que poderiam ter proximidade nesta história, o casulo aberto da história, o lugar onde o diálogo acontece, onde o esquecimento é soletrado no presente, o lugar onde as coisas aparentemente são reais, porque há cheiro, porque há sexo, o lugar onde a pele é molhada, mas o quarto é o ponto de partida para o percurso da memória pela história da sua vida, mesmo quando a história da sua vida é o olhar que pesa muito a pousar sobre as vidas outras, como a metáfora do abandono do nosso tempo, os ucranianos e croatas, as gentes dos subúrbios, os emigrantes a morrerem nas praias prometidas; não é importante, para o efeito, o olhar sim, eles todos, ou elas, as descrições são o que entra pelo quarto adentro, pelas paredes móveis deste quarto alucinado, a fazerem uma pessoa, o homem que está ali, posto naquela mulher, morto pelas suas histórias, que o não deixam ter a proximidade de alguém e por isso a descrição do frio das mãos tem o capítulo da perspectiva dele e o capítulo da perspectiva dela, e na distância de um capítulo pelo meio também se constrói a distância de duas vozes, é ele que obriga a essa distância, sem remédio, ele não se esqueceu da sua história, a sua história esqueceu-o e por isso diz: o meu tu é um desejo (p. 59).
Da memória há dois quadros que vão crescendo ao longo do livro, entrando e saindo do quarto, talvez os quadros que mais vincam a criança que se espreita pela janela feito homem. Duas histórias de abuso, um caçador e um padre, ou dois caçadores, afinal, caçadores de uma memória inocente: o que nos assalta com violência não é a criança a perder-se em dois crimes, é a perspectiva dessa criança: é a descrição minuciosa dessa perspectiva, porque a minúcia é o preço da dor, e por isso quando o caçador se aproxima do rapaz que sabia os nomes das árvores todas, que ia apenas no seu caminho para casa, a dor não é saber que a sua cabeça foi empurrada até um sexo, a dor é sobretudo ler que esse gesto é recordado com a visão exacta da poeira nos atacadores do caçador, com o olfacto presente da pólvora, com a textura ainda na pele da mão que começou nesse dia a matar-lhe a ternura. A ausência dessa ternura é um peso para a vida toda, para as paisagens que se escolhe sem escolher, pára-se onde falta a ternura. Por isso, quando se regressa à infância e se reinventa o pai, reinventa-se o pai com uma ternura que não teve lugar: invento, invento o meu pai e a sua ternura, carrego um gesto e a sua ternura, carrego um gesto que existiu de uma ternura que não lhe pertence (p. 90).
Custa muito soletrar estes episódios, ou os episódios são duros a soletrarem esta pessoa, e por isso eles vão crescendo, devagar, cheios de dor, parecem um terço e as suas contas, suspenso para descansarmos noutras distâncias. Entre nós e o outro há estas distâncias todas: a batina do padre a interromper a voz da mulher – é aqui a tua casa? -, os botões dessa batina ao som das perguntas: quantas vezes pecaste por pensamentos? Quantas por palavras? Quantas por obras? As perguntas a empurrarem a cabeça do rapaz, as perguntas empurram mais do que a mão, para baixo, e o homem que está no quarto com a mulher ainda sabe quantos botões tinha, e tem, aquela batina.
Deus também morre nestes episódios. Ou nunca houve um episódio que permitisse Deus. Este livro tem a memória carregada da memória da dor, da memória de dores continuadas, do pai doente muitos anos, a morte adiada é uma mortalha daquela infância, este homem que tem no tu um desejo está carregado de mortos, dos seus e dos mortos dos outros, os mortos herdados. A morte da avó é um quadro que se constrói a dar-nos a densidade da memória da morte, do que ela faz às pessoas que morrem, às pessoas que ficam – E aquilo acabou. A minha avó (p. 102).
Finalmente, as palavras: dir-se-ia que restam as palavras a uma pessoa cheia de memórias a interromperem o outro, para salvarem a sua proximidade possível, ou para explicarem essa impossibilidade, ou para se pedir perdão, mas cada palavra é também uma memória: é preciso ter medo de algumas palavras (p. 102), as palavras são também o rosto e a voz que a disse, um Hitler a conferi-lhe uma intenção, até essa palavra se tornar inofensiva, e voltar outra vez, a disfarçar o peso daquele rosto e daquela voz, daquela intenção, e crescer de repente com o terror de quem a disse em 1939, no dia em que morreram tantos, à conta da palavra, que agora reaparece numa boca nova. Por isso as palavras estão também cheias de distâncias, há palavras que são sempre murmúrios como outras são sempre imprecações (p. 103), e aqui uma luz imensa sobre este e todos os livros de Rui Nunes: a sua escrita insubordinada, o que ele faz com as palavras, a luta que se sente contra a opressão desta pátria de gramática, porque o que ele quererá, e consegue, é isto: perder as palavras, desorientá-las, destruí-las, desentendê-las, para recomeçar uma palavra que inicie a sua história nos meus lábios (p. 103).
Talvez se consiga com as palavras o que se não consegue com o outro. Nunca se vê o outro: o homem, no quarto, não vê a mulher, a mulher não vê o homem, vê-se sempre o outro perdido noutro qualquer, sem acesso a esse outro, com a raiva de o sentir naquele corpo ao lado. Por isso, a mulher diz, cheia de rancor: acorda, porque me sabe perdido em todos os sinais que te recompõem (p. 108). A história deste homem faz de quem lhe chega perto uma sombra, os fantasmas todos a procurarem na pele ou nos olhos que calhem um lugar para ressurgirem, só numa ficção poderia o homem levar o outro ao quarto e dizer “este é o meu fantasma”, para que uma história começasse ali para os dois ao mesmo tempo, quando ela o visse pela primeira vez, e assim não acontecesse com as pessoas o que acontece com as palavras.
O fim de vida, a velhice, só pode ser um quarto vazio cheio de nomes, salas vazias, e quando a mulher chama pelo seu nome, ninguém aparece, porque o tu nunca se cumpre.
Vou ler este livro o resto da minha vida.

quarta-feira, maio 16, 2007

Página 20 do jornal de hoje:a solidão a fazer notícia

A Palmira vive longe de nós. Palmira, nesta história, é um nome a traduzir outros nomes, sobretudo a solidão, a solidão pode ser o seu nome próprio.
A Palmira passou muitos anos triste por não ter marido, por não ter uma casinha, como as irmãs, como as amigas, como deve ser, por não ter os seus filhos, como manda a condição. A Palmira descobriu tardiamente o viúvo e os filhos dele, um calor que a faz emigrar para uma outra terra, no mesmo país esquecido, longe de nós.
O marido morreu há 19 anos, os filhos dele são dele, e por isso partiram, como o pai viúvo da mãe, morto há 19 anos. A solidão da vida da Palmira tinha um espaço, esse antes de encontrar a porta, o viúvo e os filhos dele, e quando se cruza uma porta assim, tem-se por seguro que nunca mais se regressará ao espaço onde se é uma mulher sozinha, sem gosto ou causa para aquecer a comida, a comida que para ser de uma casa deve ser feita e aquecida várias vezes.
A Palmira regressa à dor de ser uma irmã, não mais a mulher do senhor Joaquim, e as pessoas, muito poucas, que lhe sobram começam a morrer. Pensa na chegada da sua sua hora, um dia em que não haverá quem se lembre dela, uma mulher calada, hoje posta num terreno longe de nós, de onde sai aos sábados para comprar pão e fruta, um silêncio invisível seis dias por semana, e por isso conta no futuro com quem conta no presente, ela, ela apenas. Compra uma campa num terreno seu, no cemitério, inscreve o que um seu sobrevivente deveria inscrever, ou desejar: à memória de Palmira. Paz à sua alma.
Tarda em morrer. Vai tratando da sua campa, onde se vê mais à fente, morta, como agora, uma fotografia oval. Limpa a pedra de mármore e traz flores para a Palmira a pedir paz.
Pode ser que assim não se esqueça dela. Pelo menos ela.

domingo, maio 13, 2007

Ontem não consegui arrancar-te da minha mão

Ontem não consegui arrancar-te da minha mão
Noventa dias idos, visitei o silêncio onde ficou o teu corpo
Um lugar apenas
Muito só, tu, sem nome a avisar uma pessoa, a clamar uma fogueira
Ontem não consegui arrancar-te da minha mão
Uma palavra escrita, a tua mão, pela minha, a assinar este papel
Dir-te-ia agora o nome do poeta que escreve: a mão a assinar este papel
Queria apenas que tivesses sentido o peso da tua mão
A impressão dela num papel
Queria apenas que tivesses telefonado, como nunca fazias
Até ser eu a adivinhar que chegava aquela dor, aquela dor
que descobre sítios inesperados nos ossos
Ou uma outra voz a avisar por ti, queria muito abraçar-te
Noventa dias antes de ontem
Para voltar a abraçar-te hoje, que te soletro cheia de medo
Cheia de medo de te perder
Sem a tua voz a recordar-me dela

quarta-feira, maio 09, 2007

a noite com árvores na boca (Mário Cesariny)

como no verso, a noite com árvores na boca. a casa a entrar pelos teus olhos iluminados na fotografia tua, muito viva, o verde aflito com o sol e com a lâmpada que te avisa da minha entrada. como no verso, a noite com árvores na boca, os teus olhos a reconhecerem o choro dos meus, hoje vindos de outros, muito aflitos, sossegados, quase, até que na boca, pelos olhos cativa, se desenha a frase da minha emigração. como no verso, a noite com árvores na boca, vou chorar, meu amor: estás a chorar, minha querida: cheia de árvores na boca, estou tão cansada, estou tão cansada, estou tão cansada. falasses comigo para dizeres: o teu cansaço é a tua tristeza, eu a responder que a minha tristeza é o meu cansaço, e os olhos de onde venho também iludem com o poder imenso das palavras, o poder intenso das palavras, o poder mortal das palavras: uma frase, a frase, aquela frase, sabes?: sei, dizes, e eu, minha querida vejo uma superfície nas pessoas que é a aceitação desta história toda, até que essa superfície me diz: não existo, mas vais conseguir e um dia vou ver-te de longe, porque de perto não consigo. como no verso, a noite com árvores na boca, o ar que circula contra o meu equilíbrio, este peso a ser soletrado por uma voz tão doce, minha querida, que me não beija, a voz, ninguém me beija, e no silêncio cheio do espaço de um carro projecto-me para trás, lá onde tudo era a dobrar, até entrar em casa e explodir a chorar, nos teus olhos muito verdes, vinda de outros muito azuis, cheia de árvores na boca, a dizer-te, a querer dizer-te que estou tão cansada, tão cansada, tão triste, eu estou tão cansada.

terça-feira, maio 08, 2007

Grito

A única secção do jornal sobre a qual poderia escrever oferece a Diana, lindíssima, a dar aos olhos interessados o fio dental onde se vai pondo os dedos suados; a Andreia, brasileira, com um busto 40, exótica na nacionalidade, coisa boa para o provinciano que as bate todas em português; a caboverdiana mulata clara, que saberá, na sua triste condição, que apetece a muita carteira comer uma coisa dessas; a Alice, que atende para os lados do Campo Grande, afirmando-se pequenina e de seios grandes; a derrotada ex-modelo de “23 a”, a poupar três letras no anúncio; a Marisa com um rabinho pura tentação, pronta para apanhar as bofetadas e os trocos; a gordinha, discreta no superlativo, porque há gente para tudo; a Raquel de Oeiras; ou a senhora portuguesa, a única que oferece a cara como amostra, e ali uma respiração contida, muito contida.
A única secção do jornal sobre a qual poderia escrever recorda-me que a escrita não pode ser apenas bonita, sob pena de ser uma mentira inútil e recorda-me que um dia escrevi a vontade de fazer explodir atomicamente as paisagens que engasgam esta ansiedade de descrever, de descrever a doença, que é sempre a mesma, a solidão silenciosa de tantas condições, e leio mais à frente acerca dos lucros do jornal com estes anúncios e digo: os lucros dos jornais com estas pessoas.
Este é um belo texto?

sábado, maio 05, 2007

Naquele quarto escuro II

O que interessa é que há sempre rosas.
Sempre ouviu da boca de quem usava a sua a mesma frase: o que interessa é que há sempre rosas. Os dias passavam vistos tão de longe que o seu corpo magro ia pelo ar, como uma sombra côncava, para trás, para trás, para trás, enquanto o dia corria, lá fora, distante, longe de si, do seu ser uma pessoa.
O que interessa é que há sempre rosas, dizia-lhe a boca que fechava a noite com a tranca do medo e que caminhava até aos seus lençóis abafando a rua algures e o rasto dos eléctricos do bairro. O dia era uma vida árdua, lenta, demaisado lenta , sem promessa de outra vida, pior, com a certeza de uma mesma morte que sempre se repetia.

- Pousa a boneca.
- Está frio.
- Chega-te ao pé do tio, linda.
- Está muito frio e eu tenho medo.
- Eu não te faço mal.
- Hoje posso não imitar aquela cassete de vídeo?
- Linda, sabes que o tio precisa. Dá cá a mão.
- Eu tenho medo.
- Não chores. Não sejas piegas. Eu não te faço mal.
- Mas ISSO dói!

Apenas para os outros habitantes da casa amarelo gasto a manhã nasce subitamente. Cheira a leite quente com café. Os passos nas escadas são de quem quer que seja até serem os dele, porque esses batem no soalho como batem nas tábuas do quarto de todas as vésperas.

Olha pela porta quase aberta da cozinha:

- Passa-me o pão.
- O que tens?
- Nada, querida.
- Andas distante. Não me recordo da última que demos.
- Não me incomodes. Sabes bem que a enfermaria anda num alvoroço. Um homem não anda sempre de pau feito.
- Estás cada vez mais vulgar. O meu desejo por ti derrete como esta manteiga ao calor.
- E tu estás cada vez mais velha.
- A minha idade não avança sozinha, sabes?
- Pois sinto-me uma criança. Assim como a Mariana. Olha a pequena ali a espreitar atrás da porta.
- Vem cá, Mariana.

(Bom dia).

A dor é a dor do segredo. O segredo projecta-se no lugar exacto onde fixa o olhar aguado de oito anos envelhecidos. Por exemplo: a Mariana fixa os quadrados pretos e brancos do chão da cozinha e espalha a sua memória naquela geometria.

Todos os dias.

Mas não hoje, porque a Mariana morreu de manhã.

quinta-feira, maio 03, 2007

Naquele quarto escuro I

- Despe-te, não tenhas medo.
- Despeço-me?
- Não. Despe-te, fofinha.
- Está muito frio e os meus pés estão azuis, não vês?
- Eu estou quentinho, linda.
- Tens a barba da cor da do meu avô.
- Tenho a barba da cor da do pai natal.
- Não quero.
- Queres.
- Dói.
- Já passa.

quarta-feira, maio 02, 2007

Côncava

Assusta muito conhecer uma pessoa.
Assusta muito que nos conheçam.
Assusta muito que nos assaltem.
Assusta muito a intimidade: a primeira indignação
Chama-se intimidade.
E assusta muito
Os gestos imperfeitos a ganharem uma forma.
Assusta muito recordarem-nos de uma memória curta
Para ter por igual, por idêntico, por normal
O que nesse dia nos atiram, de repente, num gesto perfeito
Com uma forma que tem um nome:
Intimidade
E que assusta muito: dar como sempre
O corpo antes da cabeça, ou da alma,
Do que se queira chamar a isso
A isso que dizemos eu
A que o outro chama de tu
Essa palavra quase impossível
Assusta muito que se escureça a distância
Entre um corpo muito veloz nas curvas
E um tu a que se chega por uma estrada longa
E nessa escuridão sai um gesto perfeito
Com a forma da intimidade
Antes de existir um eu ou um tu
E por isso assusta tanto
Assusta, assalta, ataca
E mata o gesto muito imperfeito
Que ia a caminho, no seu caminho
Da intimidade outra,
Que é esta mais à frente
E que assusta muito.
E que assuta tanto.