domingo, outubro 29, 2006

Familiar

É-se familiar quando se diz a palavra sem cautela, porque se sente - porque se sabe - que o outro a reconhecerá como se sua.
Uma ou outra vez na vida encontramos um familiar - identificamo-lo - ao primeiro olhar. Há ali, ali, naquela pessoa, não um pouco de nós, mas precisamente o nosso segredo. Isto é: olhamos o familiar e sabemos que dele não poderemos ocultar a nossa intimíssima verdade, como seja um insuspeito vício pela fronteira da trangressão. Num palco social onde, por exemplo, essa pulsão interior é invisível para os outros, os dois familiares olham-se e sabem que são iguais; que circulam no mundo daquela sanidade, insuspeitos de conversarem no tom de todos com a cabeça posta na mesma transgressão. Não é preciso pronunciar um verbo. Basta olhar o nosso familiar, quando o encontramos.
Como se, mudos, os familiares dissessem:
- Tu também...?
- Claro que sinto.
- Eu sei que sim.
- Eu também sei. Que sentes.
Depois é um calor... é o calor.

sexta-feira, outubro 27, 2006

Parece-me ainda ontem esta tua despedida do que nunca foi

Meditação do Duque de Gandia sobre a morte de Isabel de Portugal

Nunca mais
A tua face será pura, limpa e viva
Nem o teu andar como onda fugitiva
Se poderá nos passos do tempo tecer.
E nunca mais darei ao tempo a minha vida.

Nunca mais servirei Senhor que possa morrer.
A luz da tarde mostra-me os destroços
Do teu ser. Em breve a podridão
Beberá os teus olhos e os teus ossos
Tomando a tua mão na sua mão.

Nunca mais amarei quem possa viver
Sempre.
Porque eu amei como se fossem eternos
A glória, a luz e o brilho do teu ser,
Amei-te em verdade e transparência
E nem sequer me resta a tua ausência,
És um rosto de nojo e negação
E eu fecho os olhos para não te ver.

Nunca mais servirei Senhor que possa morrer.

Sophia de Mello Breyner

Morada

Um quadrado branco,uma folha em branco: eis o espaço onde constrói uma morada.
- És tão nova, quantas foram as tuas moradas?
- Eu vivo num espaço com dois quadrados. E a minha morada, o meu lugar, é uma folha de papel.
- Não vens à superfície.
- Que te direi? Queres saber de Belém ou da rua lá para os lados de Campolide com prédios cegos e nome de escritor?
- Por exemplo, princesa. No mundo dos mortais, a morada é isso, ruas, como essa, a rua lá para os lados de Campolide com nome de escritor. Lembro-me de te queixares de ser rua de passagem, de não haver mercearia, ou vestígios que justificassem o nome naquela placa.
- Que interessa? Essa rua, uma morada? Às vezes atravesso-a e vejo o sítio onde vivi, vejo-me à janela e um vampiro a sugar-me o pescoço. A morada é onde sou. Essa rua é uma diluição.
- Vá, fala como gente normal. Diz-me: quantas foram as tuas moradas?
- Uma só.
- Do Torga foste para os lados da Junqueira, dali foste para o Restelo, rumaste a Alfama, regressaste a Belém, e agora estás nessa casa cheia de luz, cheia de quadros.
- Se conheces esse mapa sem sentidos, por que me questionas?
- Para te fazer falar. Andas silenciosa.
- Eu resido numa casa cheia de luz, eu vivo em dois quadrados almofadados, eu tenho uma morada que me faz perguntas carregadas de liberdade.
- De que falas, aluada?
- Da minha morada. De uma folha de papel que me faz ser. Falo de liberdade. Falo do que te falaria o escritor oprimido numa placa na rua errada.

quinta-feira, outubro 26, 2006

A tua voz

Como uma melodia
morna
a tua voz chegou.
Ouvia-a num grito
harmonioso
a tua voz,
uma integração
límpida, trasparente
o som a acalmar-me
os outros sons,
a tua voz, que me me chegou
por escrito.

A cruz da ansiedade

Come as pontas dos dedos curtos com rigor. Dedo a dedo a sua ausência expressa-se toda no gesto da mutilação quase social. Só dela a percepção de uma pele arrancada ao canto profundo da unha; só dela o sabor do sangue que dói ali, num ponto tão situado.
O que se lhe dá a ver para além dos dedos é o seu medo: as mesas do almoço na sala abafada por vozes que se cruzam e geram uma cruzada contra ser uma possibilidade. O som dos talheres inicia a sua desconstrução, o que era impedido roendo os dedos; por substituição.
O que se lhe dá a ver é o barulho dos outros ser o seu silêncio. A morte é induzida do movimento em redor do espaço imediatamente após ao da sua roupa.
Respirar pesa progressivamente.
Pegar numa caneca de café é desafiar a gravidade imensa do seu terror, por isso fixa o olhar no café a arrefercer e quer, genuinamente, morrer.

Esta noite

Uma fotografia. Uma memória.
A memória é o assassino meticuloso do presente, escreve Rui Nunes.
Afasto a fotografia.
Agarro o poema.
Esta noite.
Tão apertada.

quarta-feira, outubro 25, 2006

Indução

O que faz uma pessoa. Os pormenores a ocultarem uma voz.
A minúcia cruel.
Vou decifrar esta mulher pelo verniz a descamar-se na ponta das suas unhas.

terça-feira, outubro 24, 2006

O telefonema

Eu estou só à espera. Eu só estou à espera. O telefonema. O sorriso que me acontece nele. Eu estou só à espera. E dói-me o olho direito. Um bom início de conversa. O sorriso específico. Eu estou à espera. Calmamente. Este não é um texto alucinado. Este não é um texto da angústia da espera. Mas eu estou à espera. Porque seria agradável. O sorriso que me provocas. Sempre. Que te vejo. Que te sinto por perto. Que te adivinho. Simples.
Eu estou à espera. Tenho os olhos muito secos. De mais. Só não estão secos quando choro. Chorar é-me uma vocação. Um bom meio de conversa. Saberes mais de mim. Esta curiosidade. Tua. Minha. Acerca um do outro. Nada que aflija. É simplesmente bonito. Bom. Doce. Estranho. Familiar sem o poder ser.
Eu estou só à espera. Eu só estou à espera, com os óculos na prateleira. Eu gostava muito. Não me custa nada escrever isto. Passar pelo que seja. Eu estou a sorrir, como faço sempre que te encontro. Escrevo que estou à espera que me telefones com o mesmo sorriso que te atiro quando entro na tua sala.

segunda-feira, outubro 23, 2006

Sintonia

Está para ali com ele, que não a ama; anda preso ao odor da outra, por isso não a agarra. Está para ali com ele, não porque o ame, mas porque não tem outro.

domingo, outubro 22, 2006

Enquanto me limpas II, a minha memória


Como a tua ilha

As janelas estão propositadamente fechadas. Vê-se assim o cinzento deste dia maldito a rodopiar em vento vindo sabe Deus de onde, um pássaro a atravessar o frio em esforço, as penas dele molhadas, a chuva oblíqua, o silêncio mortal do cenário para lá do vidro. Que feio, tudo, hoje, que pesado, nem as janelas encerradas e o fumo dos cigarros impedem o peso do dia, que pesa todo na cabeça, inflama a garganta, esmorece boas memórias, ataca o cobertor abandonado na cadeira de há uma semana. Que dia cheio de castigos, que dia não-dia, sem lareiras preparadas, que dia a paralisar-nos. Uma Escócia, de repente, uma ilha dela de que me falavas, onde o céu, como este, era só um, uma extensa nuvem, sem mutações, o cinzento uniforme, enorme, a colorir as águas, a cansar o olhar, a desnudar o mundo. Uma câmara não ardente, um frio de rachar, sem gota de sangue, esta manhã, meu amor, parece-me uma morgue, um laboratório sem espaço para sentir o que seja.
Talvez pudesses chegar e fechar as portadas, a visão do mundo, restaria o sintoma dele nas nossas gargantas, e apertar-me as horas todas deste anúncio bíblico.
Hoje é dia de antigo testamento.

sábado, outubro 21, 2006

Verdes anos

Que verdes anos, os nossos? O futuro tão desejado e agora que tal, que tal, começarmos a salpicar os verdes anos que temos, hoje, agora, o dia de ontem, ontem mesmo, hoje? Quais os verdes anos que tememos a morte? Abraça-me e espera quieto, não pela perda de qualquer colorido, mas por uma pacificação dos nossos temores. Estes verdes anos, não sei se andamos a dar por eles, de tanto temermos que se vão embora sem a vida-prometida-inteira. Um dia, um dia, hoje, sem metáforas, agora que ainda não bebemos café, agarra os teus verdes anos e desliza na linha de um eléctrico, diz: estou aqui.
Eu também tenho medo, medo concreto, medo abstracto, temor, de manhã, queres saber?, de manhã quando a água do chuveiro escorrega na minha cabeça, de olhos fechados, tenho medo de desvanecer, tenho medo de uma decomposição líquida que começa no interior do meu cérebro magoado. Ir pelo ralo em espírito, uns verdes anos terminados na banheira. Abraça-me agora, a tua doença e a minha, tão incomunicáveis no diagnóstico, tão unidas no efeito, o medo, a nostalgia magoada de verdes anos por inscrever.
Desliza comigo, eu vou tomar banho de olhos abertos, para não ir pelo ralo, tu vais renunciar à observação minuciosa da tua pele, e rumamos à maginal, como tantos verdes anos o fizeram, abraça-me, deixa-te amparar amparando-me, eu preciso de ti: os meus verdes anos, tu, os teus verdes anos.

quinta-feira, outubro 19, 2006

Enquanto me limpas

- Tenho duas moedas que guardei do troco do café que nos uniu uma vez na vida, na esplanada estrangeira, sem o barulho dos carros arredondados. Fugimos para uma pensão e aquilo foi uma gritaria.
- Escolhes assim umas memórias quando conversamos, uma coisa qualquer; essa tua ligeireza tão insinuada.
- Mudas-me as fraldas todos os dias e a fixação do teu olhar na minha humilhação precisa da esplanada onde o rumor era o da sedução.
- Essas pernas, um dia, que engraçado.
- Esta espera, estas pernas, este descontrolo: umas fraldas. Enquanto me limpas, podes enevoar a merda que vês e veres-me a engatar o estrangeiro, na esplanda onde não me detinha a pedinde a alargar os séculos da esquina.
- Tu gostas de provocar. De dar cabo da inocência que a malta associa à velhada, sobretudo a esta, posta aqui fora do mundo, com a voz a pronunciar a véspera e o corpo a pedir uma mantinha.
- Experimenta enfiar um dedo dentro de mim de olhos fechados, limpa-me primeiro, ainda estou a arder, verás: por dentro não há vestígios da minha mantinha.
- Velha doida.
- Gemia toda, havias de ver.
- Já estás limpinha, dorme.
- Queres-me boazinha, não é? Boa, nunca, que aos velhos só se aplicam diminutivos. Pois eu não faço como o resto da velhada. Não espero por dormir para me permitir o regresso ao que me der na cabeça. Odeio esta mantinha, esta mortalha. Não espero por dormir, entendes? Vão ver-me velha, velha, a babar-me toda, sem calar o direito da minha memória, o dia da esplanada, os meus atrevimentos, a minha não-inocência: nunca mudarás esta fralda como se não pudesse ser a tua, menina má, menininha.

quarta-feira, outubro 18, 2006

Epílogo

  1. Doze paus na vertical, um deles inclinado para um quadrado. Doze paus na vertical, todos os insectos foram mortos e agora a perturbação do estático. Doze paus na vertical,uma entrada qualquer a afastá-los, aquele dia, um dormir profundo, um dormir equivocado.
  2. Doze paus a deslizarem, cima, baixo, sem som, tu, ele, uma mãe que interrompe o quadrado, uma mulher a criar um triângulo.
  3. Uma ambulância. Doze luzes intermitentes e quatro mãos a ampararem a vida num quadrado.
  4. Doze paus na vertical, quatro ângulos a dobrarem-se, as minhas costas, um cravo sem aviso, uma cadeira de rodas, a mão a fechar o grito do medo, do desejo da mentira. Um balde de tinta pronto a ser atirado ao cenário.
  5. Um leve odor a sardinhas. O estendal cruel da vizinha, doze paus a pesarem nas telhas, uma casa a ruir para o centro do mundo, com a semente de uma doença eterna.
  6. Doze paus a acordarem o enfermo, quatro frases de reconhecimento, um abraço de perdão, as promessas de anjos caídos. O horror.
  7. A vida cravada em doze estacas, o dia seguinte chegado, umas cuecas quase emprestadas, o teu suor conversador.
  8. O disco de doze temas, a mudez de uma gaveta a fechar-se, o barulho de um quadro cheio de garfos.
  9. O dia sempre a pôr-se.
  10. Um cão a sentir por todos, o vento naquela noite a cegar-me as suspeitas.
  11. O fim a gasear-se numa aresta, o rolo novo não será doze fotografias, amanhã é feriado, a indiferença. Respirar devagar.
  12. Doze paus na vertical, um que cai azulado: o encontro que foi nosso Judas.

Voltaste

De novo esses olhos aqui a darem carne à minha sonolência.

segunda-feira, outubro 16, 2006

O que fizeram de nós


Nada sei de Deus,
pouco percebo dos livros obscuros onde se escreve sobre quem nunca nos apareceu.
Sei de ser criança e de perceber o desejo; antever o futuro,
sei de ser criança e de Deus me calar em alegorias incompreensíveis a minha alegria.
Nada sei do Demónio. Ou: sei de Deus pelo Demónio.
Querer Deus podia ser: não querer o Demónio.
Sei que não haveria Demónio sem Deus,
Sei dos Ministros de Deus que sufocaram o nosso corpo
pelo medo do pecado,
do diabo
esse secretário de estado.

domingo, outubro 15, 2006

Salve-se quem puder

Não há surpresa nesta posse doente de pessoas sobre pessoas. Os casais. Os atrelados. Os casados. Os donos-um-do-outro. A pesquisa da vidinha que sobra do horário comum. Quando chega a crise. O desamor. O ter de haver culpa nisso. O telefone confiscado. Os bolsos revistados. As carteiras reviradas. Os odores reconhecidos. Cães e cadelas a mijar à volta do poste: a relação. Não há surpresa nesta posse. Nesta asusência de sentido do outro. A liberdade reduzida a desvalor. O compromisso elevado a sacrifício. A propriedade. O amor forçado. Os avisos. Os mal-amados farejantes. A dignidade de quem vê o casamento em crise encosta-se a um poste com saia curta. Não há surpresa nesta dominação.
Respeitar a escolha, como? Pois não é o nosso Deus quem salva compromissos condenando à morte o próprio filho?

sábado, outubro 14, 2006

LUA (Zé Lourenço)


Eis o poema repousado. Letras nenhumas moviam uma pele, um sentir, como aqui, esta tela que me chegou, que me mudou. Para sempre. Olho-te: obrigas-me a aligeirar os passos, a silenciar os vizinhos, a pousar o copo de café. Agarras-me com a força da tua luz multiforme, e eu a regredir nela, a avançar nela, sou, agora, diante da minha lua, uma súbita leveza. Estou a chorar, sem poemas, sem prosa, sem música. O silêncio desmedido desta tela gera-me ao contrário, entro-lhe toda pela cabeça, sobram-me as pernas, sem dor alguma, e volto a sair, leve, leve. Sento-me noutro ângulo e a luz da janela descobre-lhe uma sombra que se oferece como uma absolvição. O poder desta tela é imenso: o sombreado acastanhado é a minha franja de infância, recordada aqui com novidade. Trepo por um pinheiro, sem nostalgia, estou a sorrir, e vejo o dia a despedir-se do mundo, Deus a apagar o seu nome, como já se escreveu, e os meus joelhos sujos da correria, e o mundo todo lá de cima, do último ramo, uma paz. Esse ramo, esta sombra, estou a flutuar, este negro que não oprime, antes projecta a justiça enorme da lua que se não põe de manhã. O futuro destemido. A minha esperança. Uma palavra nova no meu vocabulário. Um quadro que salva. Eu a vê-lo, ele a habitar-me. Os relevos no centro dele, a nossa vida relevada, as trajectórias desta alma? Uma tela cheia de justiça, e por isso nela as trajectórias acolhidas de todas as almas que para ali olham. Parar. Subir com esta tela. Chorar o seu único peso: a beleza. Chorar por quem tem nas mãos a arte de inspirar para sempre o outro a não se escapar. Eis o papel da minha lua. Diz-me: não te escapes. Para sempre, na parede onde suspende, a verdade acontece sem que ninguém a pronuncie. Para sempre, na parede onde sobe quieta, o silêncio poupa todos os tumultos. Para sempre, na parede, uma prisão absolutamente livre.

quinta-feira, outubro 12, 2006

Como uma vela, este menino



Como uma vela. Que não se apaga. Mas vai morrendo.

É sempre o olhar que termina a história a dizer-nos: já não dói.

A vida que poderia ter sido no olhar.

A vida que lhe calhou no corpo onde já só circula um fraco fôlego.

O nosso desconforto. A dor, mais nossa do que dele,

que nos perdoa.

Ninguém tem a coragem do deserto

Lê: ninguém tem a coragem do deserto.
Procama essa coragem, mais: proclama essa vontade. Mas ningém tem a coragem do deserto. Inspira na recordação do não-deserto, sublinha a frase do presente: eu preciso de estar sozinha. Eis a mentira a ecoar em todas as mesas onde se senta. Porque ninguém tem a coragem do deserto. Nem ela, que se encolhe toda na segurança da não-partilha do seu espaço, crescendo a par da aparente escolha o espaço enorme de uma ausência: começa a chorar. Porque ninguém tem a coragem do deserto. O retrato trémulo de uma vida a comunicar nos olhos que lhe calharam na mesa de hoje. Um exemplo. Uma pessoa. Apaga depois o retrato e pensa: no dia em que o tivesse ao lado precisaria do silêncio que hoje me afoga. A insatisfação. O desígnio pendular. A noite em branco. A rotina da meia-cama. Nesta, com verdade, uma paz. No choro ocasional, um abandono. De alguém. Uma escolha: o deserto. Mas ninguém tem a coragem do deserto. Uma escolha manipulada. O deserto com ficções de não-deserto pelo meio: corpos que falam quase como que amados. Porque ninguém tem a coragem do deserto.

quarta-feira, outubro 11, 2006

Amarras

Doente de sono, agora, escrevendo, de pálpebras cansadas, empurradas por pensamentos excessivos, e recuso dormir, luto contra essa rapidez, insisto na sobrevivência da criatividade, ando a escrever de mais?
Hoje, ali na esquina, de novo o vagabundo dobrado como uma vírgula, as calças sujas, as mãos a impedirem uma pessoa nelas. Hoje, na curva da baixa, o homem de sempre, vestido de silêncio, mascardo com um sorriso estático, de mão estendida para o acaso, com a careca flagelada pelo sol, agora molhada pelo Outono. Tanto sono, uma dor de cabeça a avisar a hora de desistir, de morrer nesta carência do mundo em cada um, de nós em todos, de todos na mulher que agarra a criança subnutrida nos sinais de trânsito das Forças Armadas. De onde contempla a paisagem a mulher que me abranda sempre pelas onze horas? É ela, agora, que me tortura acordada, os três jovens com boa mesada que encostam o carro à frente do meu e a atiram para fora, com a saia pelos joelhos, a cara suja de todos eles, ela para ali caída, na rua de casas com jardim, e naquele momento o seu jardim é o tufo de ervas daninhas onde aterra para a sua longínqua condição. Vejo o carro com os três jovens satisfeitos, livres do seu entulho, a arrancar para um bar qualquer, onde se falará da puta que se atrapalhava toda em tantos sexos. Preciso de dormir, mas castigo a coragem de amanhã seguir na mesma rua com este adiamento do alheamento. Os ciganos cantam, descalços, à minha janela. Estão alegres. Ao longe, a mulher roçada por ninguém bate as agulhas na calçada.
Cristo, atrás da minha cadeira, insiste em não descer da cruz.

terça-feira, outubro 10, 2006

Telefonema toda

- Você anda inspirada.

(tu andas a inspirar-me)

- Você ultrapassa a superfície do ecrã com a sua escrita: eis o seu poder.

(tu és um comunicador misterioso. eu quero muito que me sintas)

- Eu quero saber se você anda bem.

(só isso? eu preciso de derrotar moínhos no teu olhar, que te descrevo, que te confesso)

- Você é gentil.

(eu sou atenta. tu tens possibilidades por cumprir?)

- Quando é que eu a vejo?

(eu quero dizer: hoje mesmo. é verdade que vives imageticamente uma outra circunstância? emigras a tua realidade e pões-te num cenário de outras escolhas? que olhar esse tão maior do que a vida que cumpres?)

- Eu telefono. Você tem uma enorme sensibilidade.

(eu nunca me vi bonita. eu cresci feia. lá estou eu, como naquele dia, a falar sem a hesitação do medo)

- Tenho a certeza de que já a convenceram da sua beleza.

(há vozes raras a dizerem "que bonita" que me convencem a pele toda e estendem essa beleza a uma menina que era feia. é um mistério: a tua voz, no amparo do teu olhar, tem essa raridade)

O mistério dos afectos imediatos. Os espelhos. Os silêncios pacificadores. Os pudores da aproximação. A negação da generalidade e da abstracção: a revogação da norma.
O nosso caso.

Pessoas Só

Simpaticamente, têm-me perguntado pelo livro que publiquei há dois anos, o qual, ao que parece, já não se encontra por aí. Confesso que não tenho qualquer exemplar comigo, razão pela qual não posso oferecer uns quantos a uns quantos. Fica aqui, de qualquer maneira, uma forma possível de encontrar o Pessoas Só.

Como poucos podem amar

Falei com uma mulher e pensei em todas nela situadas, idas ou adiadas. Sou eu, num acordar mais à frente, essa mulher?
E eu sei que esta mulher esperararia por ele, para sempre, na véspera de morrer.

segunda-feira, outubro 09, 2006

Ser.

Ser, outra vez, pelo outro: ser.
(Re)ver aqui por dentro noutras mãos.
Desvendar uma ocultação na boca em frente.
Abraçar quem nos (re)integra numa paz magoada.
Sorrir. Acordar. Sorrir.
Não tremer.
Não temer.

sábado, outubro 07, 2006

Pausa: para quê esta escrita?

Por quê escrever? Para quê? Ou: para quê publicar assinando o nome real? Impõe-se uma pausa para tentar compreender - e pedir o mesmo a quem lê - a insistência numa prosa assente na verdade e por isso perturbadora, corrosiva, às vezes com traços de castigo. A escrita que é uma verdade é sempre sobre quem escreve, mesmo quando ficciona o vagabundo que morre numa masturbação, a empregada de balcão que perdeu o sonho de ser alguém à conta de um ferro nas costas, uma mulher comida pela guerra, a solidão sexual: todos os cenários de observação são escolhidos por identificação e, nessa medida, são extensões de quem escreve. É essa a condição de alguma escrita, da única que me interessa, a que quando descreve um morto, nesse momento, é também uma autodescrição. É, em suma, verdade.
Escreve-se, em primeiro lugar, por vocação. Há, organicamente, um chamamento. Irrecusável. Não se pode declinar a escrita como se não pode suster a respiração por três minutos. Não escrever é, ontologicamente, um abandono de si próprio. Depois, quem escreve precisa, por alguma razão, de comunicar. É neste ponto que a escrita se depara com a contingência da publicação e nela com a da exposição. O escritor, por definição, comunica, fala para alguém, precisa de alguém, quer alguém: o leitor. É de certa forma, talvez com arrogância, um incompreendido. Ou pode ser. A escrita por cumprir é como um pecado por confessar. Dói em crescendo até encontrar o remédio de um lugar onde se expor ao julgamento. Até encontrar o outro. Espera-se, neste tipo de escrita, não só o consolo de alguém que lê e compreende a alma de quem escreveu, como se espera, noutro plano, que o que se escreveu console alguém que se sentia estrangeiro até àquela descrição. Quem escreve pode não ter realmente perdido a alma num momento tão cru como o de uma pessoa se transformar em silêncio depois de lhe dar cabo do corpo, mas é verdade que cabe no seu sentir a possibilidade de integrar esse tipo de dor e de a descrever normalizando-a, impedindo que um anónimo que dê com o texto se vete ao horror de se considerar indígena. A vontade insaciável desta escrita é sempre, por isso, descrever qualquer estado de alma com a sombra da exclusão, convidando-o à humanidade da companhia de outros que são vizinhos, que lhe poderiam dizer: eu sei o que estás a sentir. Esta é uma razão para se publicar: é a razão assente na função, errada ou não, que se atribui a uma escrita. É a segunda razão, ligada à anterior, a da comunicação, que inverte a solidão inevitável de quem sente todos os dias um mundo de descrições silenciosas por acrescentar. Por isso, jamais bastaria escrever e rasgar de seguida, ou ocultar, os textos, como quem se alivia de uma dor, um copo que fosse, uma linha de coca, a escrita não é isso, a escrita é palavra, a palavra tem interlocutor.
Resta saber por que não usar outro nome, por que não temer a exposição, as interpretações que sempre se farão associadas ao nome real de quem escreve. Há muitos escritores que usam um nome falso e nele escondem a pessoa que são. Há outros, porém, que não conseguem. Mais: que não podem. Não se esconde atrás de um nome falso quem não traça uma divisão, por mais ínfima que seja, entre a sua escrita e o seu ser; sobretudo quem tem uma escrita violentamente envolta no drama da identidade. Uma prosa aflita com a identidade sob um nome falso seria uma condenação.
Em cada linha que escrevo avanço um passo nessa descoberta e só o posso fazer com o nome que posto no fim de um texto recorda-me da palavra que aflige tanta gente: eu.

À tua procura

Com a cabeça a explodir por uma dor bíblica, é maior a dor imagética, cai inteira num papel e escreve: tu.
Hoje em todos os semáforos eras o homem do lado; ela revirava a cabeça, uma e outra vez, e o teu cabelo hoje, nos semáforos, foi de todas as cores. Só os teus olhos são sempre estáveis, ali onde ela queimou uma superficie. E tu, onde andas, pergunta; Lisboa enorme e só te sabe em dois lugares. Talvez sejas quem lhe diz desculpe, amanhã, num café qualquer, e a obriga a chegar a cadeira para a frente para passar atrás. Ou talvez agora mesmo tenhas parado no semáforo onde há quinze minutos ela te viu noutro corpo.
Ou a sala, hoje, é o deserto depois do deserto ainda, porque aproveitaste o feriado e estás fora do mapa de Lisboa.

sexta-feira, outubro 06, 2006

Darfur II

O marido. Os filhos. Dois netos. A casa. A pequena plantação. O cenário da sua vida.
As perdas sem voz e o enterro delas pelos olhos.
Hoje, e talvez para sempre, ficar quieta, obedecer ao que seja, sem intenção, seguir uma fila.
Chorar quieta. Recordar quieta. Nada mais ouvir. Ter fome quieta. Não a sentir.
Doer quieta. A incompreensão.

quinta-feira, outubro 05, 2006

Lola


Vou pela rua desocupada dos cidadãos honestos, noites escura, procuro gente sem horários, gente sem casa para chegar, gente sem um molho de chaves a traduzir uma vida remediada.
Vou pela rua, assim, de olhos bem abertos, quieta nos meus sons, à espera que alguém me escolha, tenho sede de ouvir, de sair do espaço nove às cinco, onde Lisboa não tem este sangue, ou esta pena, ou esta ausência de Deus sem a desculpa de Ele não ter espaço para aparecer. O vazio de tudo, dos pecados da modernidade, e mesmo assim Deus sem aparecer, em alguma esquina, ou talvez ande ali, de saia curta, com a barba mal disfarçada.

- Outra vez por aqui?
- Trouxe-lhe as cuecas de renda, como prometi.
- E um pão?
- O mesmo de ontem. Tem esse novo arranhão, Lola.
- Não queria pagar, o cabrão. Nem queria gostar. Queria sentir-me um monstro, e não a ele. Com este par e esta coisa por desaparecer. Isto é uma solidão desgraçada. E sai-me do pêlo. Que difícil ser gaja.
- Pois eu agradeço-lhe.
- O quê, maluca, tu que falas com estranhos de noite?
- Querer tanto ser mulher. Há muitas distâncias minhas que são isso apenas: ser mulher. De manhã lido mal com a condição; de noite, melhor.
- És intelectual, não és, maluquinha?
- Não. Sou viciada em descrições. E penso sem arrumação, uma violência.

Atrás do balcão

- Deite-se. Ainda está muito branquinha.
- Aquele senhor simpático é seu marido?
- É o meu segundo marido.
- Gosto muito do seu segundo marido.
- Eu só não gosto de estar para aqui a servir cafés. Roubaram-me a minha arte aos trinta anos. Enfiaram-me um ferro na coluna.
- Qual era a sua arte?
- Eu era jardineira. Eu era jardineira. Eu era jardineira. Eu era jardineira...
- Que doença essa que a prende a um balcão?
- Chama-se artrite reumatóide. Dói. Mas sou feliz com o meu segundo marido.
- Tantas vidas por contar nestes corredores a correr, não é? Agora, atrás do balcão, será sempre a jardineira. Nunca mais será outra coisa. Para mim, é uma jardineira atrás do balcão.
- Vivi vinte anos com um alcoólico, uma cruz, só depois me libertei, agora sou feliz com o meu João. Vinte anos. Foram vinte anos. Vamos? Está melhorzinha.
- Vou. Olhe..
- Diga.
- Eu sei como é. Essa cruz. Mas não por vinte anos. Um dia explique-me a paz do seu olhar.
- Tem de se andar em frente.
- Vamos.

terça-feira, outubro 03, 2006

Vê-me

Eu sei que vens cá hoje de noite.
Eu sei que pensas num vestido branco e na densidade dele e na mudez depois da porta se fechar para entrar outra pessoa. Ou: eu quero que penses neste ser que te falou sem medo do peso da ansiedade. Ou: eu preciso que penses neste ser que te quis todo pelos olhos.
O entardecer de hoje tem o peso de não seres quem fantasiei, como fantasiei, pronto para a vertigem de uma história qualquer. Esta.

(Eis a história:
uma mulher cansada de histórias chega a um cenário que marcou com antecedência à conta de um olhar de meses antes. Não sabe nada sobre quem sustenta aquele olhar. Sabe apenas que lhe sabe bem estar ali sentada e desejar tudo nele. Sem saber nada dele. Quem avistou o demónio no corpo que lhe era doméstico agita-se toda na empatia de um estrangeiro)

O que me fere é reconheceres-me. É saber, sem saber nada de ti, que estarias bem a beber um copo e a perder a cabeça nestas costas.
(A alegria arquivada volta a arranhar-lhe as pálpebras quando não existe o tentáculo da sua história e alguém, uma pessoa só, diz: que bonita. Excita-se melodiosamente se a frase vai exigida pelo olhar cativo)
A tarde parece-me manhã porque a frase fatal sobre a tua vida interrompeu-me a fantasia.
(Isso é a vida: ter dela e nela dores feitas tumores que exigem a vocação da pele, do imeditado, a sede de episódios destemidos, sem sombras acossadas, como hoje, ela, ele, para ali sentados, na salinha da consulta, sem saberem nada um do outro, apenas que sabia bem estar ali e que saberia bem saber mais, como ela ter ido ali parar num raio de memória quando o carro cruzou aquela esquina)
As perdas antigas doeram muito. As pequenas perdas de agora atiram-me para o canto da solidão que me descobriste nos olhos. São simulações de uma vida. Desta. Da que podia ser. Aqui. Agora. Como nunca foi. Como nunca é. Como eu posso ser. O que eu tenho para mostrar. A minha casa. Este silêncio. Por um dia. Um jantar. Hoje: sem te conhecer de lado algum, contar-te a minha vida e beijar-te enquanto tudo. Um vida nisso. Um texto depois.
(ponto final. sorriso.gostou do texto. espera que ele goste. espera que a agarre. um dia.)

segunda-feira, outubro 02, 2006

Darfur I ou outros mapas


Que sinos dobram por este mapa a crescer contra o seu olhar?

Reclamação

Que vírus este, aparece e reaparece, ando sempre a medir a febre, vivo na fronteira dos trinta e sete, curo a garganta, sinto-o na cabeça, ataco a nova dor, tenho uma pequena hemorragia, telefono ao médico da especialidade, faço análises, volta a febre, estou sempre cansada, tenho sono, alergias, muitas, não sei a quê, a papel, por exemplo, tenho herpes, rinite, à conta desta tomo muitos anti-inflamatórios, tenho dores de estômago, a ansiedade é causa ou efeito, já não sei, tenho medo, de tudo e de nada, tenho a mania das doenças, dizem, ou diz quem não anda sempre com febre, à mínima coisa, uma merdinha que seja, um pingo de água na cabeça, um almoço ao sol, uma reunião com ar condicionado, lá vem a febre, e o cansaço, e os anti-inflamatórios, e o medo, e a ansiedade, e o queixume, o meu, que se lixe, as análises sempre normais, e eu ando sempre cansada, de mais, sem análises que me valham, eu estou sempre zangada com o meu cansaço, eu nunca tenho a energia no corpo que a minha cabeça exige, eu acho que sofro de fadiga crónica, que peso nas pernas, que efeito secundário, que ritual esclavagista, a pílula, que ovários exigentes, eu ando sempre com uma febrinha, eu tenho sempre bom aspecto.
(Teresa P. e M., eu preciso de ganhar coragem para te falar sobre isto - eu sofro tanto que neste texto já escrevi "eu" perto de dez vezes - , sobre esta certeza que tenho de que os meus tecidos são uma porcaria. Eu preciso que me expliques por que é que uma pessoa que se trata bem anda sempre doentinha. Eu preciso mesmo que encontres uma forma de me fazerem exames de uma ponta à outra - talvez sob o pretexto de ser clinicamente irrecusável estudar um corpo jovem sempre febril sem razão aparente - e só depois de nada ser identificado - incluindo a fadiga crónica - poderei ficar fascinada com o poder da minha ansiedade. E condenada).