quarta-feira, outubro 11, 2006

Amarras

Doente de sono, agora, escrevendo, de pálpebras cansadas, empurradas por pensamentos excessivos, e recuso dormir, luto contra essa rapidez, insisto na sobrevivência da criatividade, ando a escrever de mais?
Hoje, ali na esquina, de novo o vagabundo dobrado como uma vírgula, as calças sujas, as mãos a impedirem uma pessoa nelas. Hoje, na curva da baixa, o homem de sempre, vestido de silêncio, mascardo com um sorriso estático, de mão estendida para o acaso, com a careca flagelada pelo sol, agora molhada pelo Outono. Tanto sono, uma dor de cabeça a avisar a hora de desistir, de morrer nesta carência do mundo em cada um, de nós em todos, de todos na mulher que agarra a criança subnutrida nos sinais de trânsito das Forças Armadas. De onde contempla a paisagem a mulher que me abranda sempre pelas onze horas? É ela, agora, que me tortura acordada, os três jovens com boa mesada que encostam o carro à frente do meu e a atiram para fora, com a saia pelos joelhos, a cara suja de todos eles, ela para ali caída, na rua de casas com jardim, e naquele momento o seu jardim é o tufo de ervas daninhas onde aterra para a sua longínqua condição. Vejo o carro com os três jovens satisfeitos, livres do seu entulho, a arrancar para um bar qualquer, onde se falará da puta que se atrapalhava toda em tantos sexos. Preciso de dormir, mas castigo a coragem de amanhã seguir na mesma rua com este adiamento do alheamento. Os ciganos cantam, descalços, à minha janela. Estão alegres. Ao longe, a mulher roçada por ninguém bate as agulhas na calçada.
Cristo, atrás da minha cadeira, insiste em não descer da cruz.

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