quarta-feira, dezembro 24, 2008

preferias não ter sofrido?

o que eu queria era derrubar as palavras todas e com elas a gramática, as figuras de estilo, eliminar os adjectivos, inventar tudo de novo, porque não há palavras para a palavra de sempre que é a palavra dor. o projecto falha e tenho de dizer que esta dor dói mais do que as outras porque engana com intrevalos que fazem acreditar na sua derrota, mas ela cai a pesar uma tonelada no sábado de manhã, e sem aviso volta-se ao princípio da doença e ouve-se uma voz que nos diz que isto é cíclico e a nossa voz interior chora por andar nisto que é cíclico há mais de cinco anos. preferias não ter sofrido? ouve-se essa pergunta e sabe-se que não, mas sabe-se também que sim, que quanto a esta dor cílica, que nos nasce na alma, preferíamos não ter sofrido, não sofrer, não ter nascido. fica um deserto de esperança, o optimismo está entalado numa centena de bulas esquecidas nas gavetas dos anos de luta escondida. vai-se trabalhar de manhã e chora-se à hora do almoço e de noite. é-se forte, sim. muito; então em dias como os de natal...

segunda-feira, dezembro 15, 2008

s.t.

atreve-se, sai do caixão devagarinho, navega para uma sala desconhecida, de peso sente apenas um leve rímel nos olhos, ouve uma história pesada, não esperava por isso, por aquela história, vinda daquela boca, consegue não chorar, enquanto se enterra no relato, porque sai da sua própria dor e entra numa dor anónima, embora agora sua, como sempre faz às dores, dobra-se no sofá, ouve, a história e a música que a anima para viver, ouve também o som do cinto que se desaperta, preciso de afecto, eu também, o copo de água é grande, como a história de dor que escuta, cada vez mais colada à sua pele, sobretudo quando há silêncio, a história continua atrás das suas orelhas, na sua cintura irrequieta, no grito que não abafa, nos lábios que teimam em não se fechar, ser de alguém por uma vez que seja, há muito tempo, pensa, há tanto tempo, preciso de peso, pensa, cola-te à dor que te não contei e entra, entra, entra, fazes depois uma pausa e não sabes que estou a chorar por dentro, que três dias antes, como o 3 do teu quadro, eu estava morta, era só isto que eu queria, ouvir e sentir a tua história e diluir a minha assim.

quarta-feira, dezembro 10, 2008

s. t.

agarra o braço da mãe com muita força e caminha pelas ruas de Praga. ampara braço e corpo dessa maneira, sem ter prazer em nada, numa visão que seja, uma solidão demasidao ruidosa, uma outra cidade, inventada, por dentro, com as suas esquinas a acabarem todas numa prancha para saltar: a morte. as copas das árvores abanam e assobiam a palavra morte ou o verbo morre, toma consciência da perna direita e da perna esquerda, aflige-se até chegar ao hotel, para então curvar-se toda no seu desejo de saltar e agarrar o corpo da sua mãe com muita força e confessar-lhe ao ouvido que em minuto algum daquele passeio fez outra coisa que não treinar a sua morte: não aguenta mais, mãe. há um homem ao telefone que lhe sopra a certeza de que isso passa, que só ela não vê que a dor medieval que sente é provisória, que de fora é fácil ter uma outra certeza que se chama vida. ela diz-lhe que a sua provisoriedade vem sendo eterna, que não aguenta o peso de uma folha outonal, um sorriso estrangeiro numa sala anónima, um restaurante que lhe roube a segurança do quarto escuro, a maquilhagem que a impede de chorar.
mãe, eu vivo no inferno.
por ti.

quarta-feira, dezembro 03, 2008

proximidade II

a tia afastada-próxima morreu, ouve. morreu, ouve. morreu, ouve. morreu, ouve, morreu, chora.
o verbo é um choque que não mata a pessoa, apenas nos atira para a última vez vimos a pessoa. morreu, ouve. morreu, ouve, morreu, lembra-se: no átrio do hospital a palavra que não disse àquela dignidade comida por um cancro feroz, rápido, e agora as palavras da filha que lhe chegam aos ouvidos: eu não quero viver sem a minha mãe. diria assim: eu não quero viver sem a minha mãe. com esse pensamento abraça a prima afastada-próxima. a morta deitada ainda parecia cansada, de tanto que sofreu; pô-la a andar no átrio do hospital e recordou-se de pensar: a próxima vez que te vir estarás deitada entre quatro velas. um cartão a clamar que God couldn´t be everywhere, therefore he made mothers. abraçou a mãe da tia afastada-próxima, que perdera o marido quinze dias antes, e que misteriosamente lhe dedicou desde sempre um amor intuitivo, uma fraqueza, como diz, e na sua dor imensa, a um centímetro do rosto da filha morta, agarrou no seu rosto, que estava firme, sem uma lágrima, por ela, e disse-lhe: Deus lhe dê forças, minha querida.
(como é que ela sabia?)
saíu dali a tropeçar nas lágrimas de três mulheres.

quinta-feira, novembro 27, 2008

I found peace about you

I found peace about you.
para ela não há qualquer racionalidade que a obrigue a sentar-se nas circunstâncias que ditam essa meditação que resulta na frase que escutou: I found peace about you. a impossibilidade de uma vida, de uns anos, de um ano, de uns meses, que importa?, ela vive a emoção daquela emoção, o desenho de uma boca que lhe fez um só corpo, aquele daquela cozinha que não é a mesma passados estes meses, assim como o corpo é outro depois do milagre do Tejo e do Danúbio a fazerem uma cozinha, ela não quer meditar e render-se a uma amizade com esse capítulo em que as unhas faziam sangue de raiva da distância, quando se encontravam e se amavam, em que os dentes não se preveniam a juntar o Tejo e o Danúbio, ela não quer dizer-lhe I did the same. porque ela não é assim, não cuida do futuro, entraria nos dois aviões para chegar do Tejo ao Danúbio, até que uma fatalidade a impedisse, e se no entretanto a vida lhe sobrasse atrapalhada e comida de ansiedade, tanto lhe faria, porque nos intervalos correria a guerra que sabe viver, a construir um corpo, uma cama, um sofá, uma cozinha. a traduzir poemas entre o Tejo e o Danúbio e a abrir a luz para te ver escorrendo nas costas um outro rio, aquele fio de sangue que era o meu grito.

domingo, novembro 23, 2008

proximidade

no átrio do hospital, a familiar curvada sobre o filho e a filha, cinquenta e poucos anos, a lamber o chão com os pés. à pergunta da mãe da observante respondeu com um sorriso comido pelo cancro, que lhe não comeu a bondade, mas que lhe escreveu a palavra cansaço em todos os gestos e que fez do seu corpo um grito de dor. viu-a quase morta a encontrar, curvada sobre o fiho e a filha, um banco.
a rapariga que observa não dirige uma palavra àquela dignidade; esconde os exames médicos que acabara de receber e sorri para a tia afastada-próxima.

segunda-feira, novembro 17, 2008

para a frente

uma mesa em brasileiro.
- anda para a frente, garota, foi ela; não foi você que fez aquilo.
(uma mesa em brasileiro muito redonda, confinada, pronta para ela dizer estou encurralada)
mas antes:
- é isso. é isso mesmo, não disse.
(olhou-(o)).
sentiu as costelas vivas na cadeira e ficou a ouvir o rapaz alegre e sábio, ela respirava contra a cadeira e estudava aquele sorriso corajoso, as suas costelas desenhavam uma vida ao contrário.
- é isso. é isso mesmo, não repetia.
- que vista linda.
- é.
- vamos?
- i m e d i a t a m e n t e, que o meu corpo não é só costelas.

terça-feira, novembro 04, 2008

s.t.

Constituição da República Portuguesa comentada, os últimos meses de Salazar, o Público, o Diário de Notícias, um site para conversar que não abre, um cinzeiro sujo, a colega em frente, o relógio, quatro relógios, um telefone a tocar, esta a sua mesa, nada que chegue para ocupar a cabeça, para desocupar a cabeça, dela, hoje uma menina faz treze anos, num minuto dirá a sorrir parabéns, meu amor, hoje também chegará a noite e o sono, para não dar pelo tempo por oito horas, aflita porque amanhã a mesa terá a Constituição da República Portuguesa comentada, os últimos meses de Salazar, o Público, o Diário de Notícias, um site para conversar que não abre, um cinzeiro sujo, a colega em frente, o relógio, quatro relógios, um telefone a tocar, nada que chegue para ocupar a cabeça, para desocupar a cabeça, dela, a sua inimiga indegolável, dia para dia maior o mapa da ocupação, teme dar-se por vencida, dorme de tarde enganando os relógios, acorda para jantar e há pessoas. dependências. está viva.

quinta-feira, outubro 30, 2008

inconsistência

dar a nossa a vida a quem pergunta por ela
(eu perguntei por ela sem grande sentir)
explicar a nossa dor a quem se deu o gesto
(eu ouvia mas mas mudava a frequência da rádio ao mesmo tempo)
esperar que o telefone toque como naquela semana parecida com esta
( )
doer ter feito um desenho com as mãos com tanto jeito
doer ter dado conta da nossa dor
doer ter pensado que a dor doía no outro
ocupado
a escapar-se
entender o silêncio
e depois:
viver o silêncio

domingo, outubro 26, 2008

Inferno

pensava que conhecia o inferno, mas estes anos todos andou pelo purgatório. sabe o que é um ataque, sabe o que é quase morrer, mas o seu corpo estava sempre encostado a qualquer coisa, e nunca cegava. era atirada sem piedade contra paredes cobertas de espinhos, mas as paredes são condição de espaço, e por isso ela estava ali e via dali.
- estou péssima: eis o anúncio do início da semana
- é uma fase, isso passa.
chegam os três dias temidos e entra num não-lugar; tudo é dor e chamamento para morrer imediatamente, antevendo os cerimoniais em todos os seus sons, em todas as cores dos tecidos deles. não há esquinas, não há paredes, não há onde amparar o corpo para ganhar perspectiva e cega-se. há, o que é violentíssimo, gravidade, mas não cai num qualquer chão, não choca com nada, quando a dor insuportável a faz circular a alta velocidade e lhe dita morre imediatamente. não há qualquer apoio, ponto de chegada ou ponto de partida.
(a dor em infinita vertigem).
grita mãe, mãe, mãe, esmurrando a cabeça, até a mãe aparecer. ao fundo, o olhar seguro do homem que veio de avião em seu auxílio. não chega. chora muito alto, agarra-se à barriga da mãe e quer muito entrar lá dentro para começar tudo de novo.

domingo, outubro 19, 2008

domingo só

chegou a única mensagem que não lhe traz nada senão a morte. o dia começou azul fresco numa praia onde ao longe as gaivotas não ameaçadas a deixaram dormir em vez de morrer. às cinco da tarde já viu um filme enrolada numa manta a recordar-se de como a temperatura mudou entre o meio-dia e aquela hora: começa a pensar e a fumar. está descalça e o coração acelera sem aviso. o silêncio é tão espesso que as lágrimas correm de fora para dentro. lembra-se do princípio dos três dias que matam as semanas e não sente calor. lembra-se da única mensagem que não lhe traz nada senão a morte. à hora do almoço sorria com um amigo e uma voz interior perguntava-lhe se pensava mais na morte ou se pensava mais na velhice. quando chegar a velha os vizinhos terão paz. mas a sua voz sussura-lhe que não verá num espelho uma velha. não recebe a carta que lhe daria talvez uma semana de vida. não recebe a mensagem que lhe daria talvez uma hora de alegria. chegou a única mensagem que não lhe traz nada senão a morte. morde a língua para fingir que quebra o cimento do silêncio. quando era pequena, havia a missa das sete. agora bebe um copo à mesma hora. de manhã, bem vistas as coisas, já estava enjoada. secou-se após o banho a ver a sua amiga morta mesmo antes de rumar à praia. fazia o creme circular à volta dos olhos e via aqueles olhos verdes. hidratava a boca seca e ouvia a boca da amiga morta falar da certeza da vida eterna. então perguntou-se nua se a amiga morta ainda a amaria integralmente, agora que podia ver tudo o que por cá fazia. esse pensamento foi o roupão a cobri-la da tristeza que cresceu em silêncio pelo dia fora. quase seis da tarde e a dor, ou o vazio, que são sinónimos, é enorme.

sexta-feira, outubro 17, 2008

Sonhos IV

cada Sábado um instante, mas depois uma facada, enche-se de sangue, as palavras estão gastas, são muitos séculos e muitas pessoas a utilizarem palavras, por isso é com muito ódio que se força a dizer que depois do sangue vem o tal cansaço e a raíz da ansiedade semanal, mais um frasquinho de veneno para a soma dos instantantes inúteis, como este homem, que lhe ataca os vícios como um soco nos rins e que está de perfil. ela olha-o e vê quatro olhos na sua face. dois onde devem estar e mais dois um pouco mais abaixo e o homem fala como se ter quatro olhos fosse normal, mas ele tem mesmo quatro olhos, e talvez ao acordar ela se dê conta que aquele peixe gigante que a sangra como nenhum outro tem sempre duas intenções, e daí o horror de quatro olhos; casa sábado um instante e o sangue dá nestes sonhos. deita-se no divã e perguntam-lhe pelo seu poder. a música soa sempre muita alta, ela tem, sim, muito poder, mas depois vem uma facada, enche-se de sangue, sonha com um rosto com quatro olhos, atira as pessoas pela janela, faz de todos os rituais o retrato da sua tese sobre os afectos e vai à sua vida, com a raíz da ansiedade semanal bem semeada.
bebe muita água.

quinta-feira, outubro 16, 2008

"talvez a ternura nos salve"

um dia ela estava como uma balão por soprar e o escritor escreveu-lhe talvez a ternura nos salve. ela explica-lhe que são quase dois mil dias de balão por soprar, essa coisa de já não amar mas de ter a imagem tão certa do que foi isso, mesmo que lhe digam talvez ficciones o passado, tanto faz, são quase dois mil dias de balão por soprar, e lá atrás havia um poema de manhã, sempre, ou muitas vezes, colado no espelho da casa de banho. de noite havia um veludo escurecido pelo tempo, não era só genética, umas costas que olhava depois de adormecidas para falar com elas e dizer-lhes tão-só obrigada. são quase dois mil dias de balão por soprar, mas talvez a ternura nos salve, de certeza que a ternura nos salva, diria, porque as pernas sabem do ofício de andar, não desistem. são quase dois mil dias, são, mas a ternura talvez nos salve, por exemplo numas mãos que deslizam a construir a palavra ternura numa pessoa que nos diz como estás? é muito.

terça-feira, outubro 14, 2008

A não perder

Ver: alguns dos quadros do Zé Lourenço que vão amanhã a exposição na Sociedade de Geografia de Lisboa na Rua das Portas de Santo Antão às 16h30

segunda-feira, outubro 13, 2008

Mudança

Ela às vezes olha para o lençol e diz-se assim: que cansaço. Ela às vezes apaga aquele cansaço com uma noite a sorrir. Nessa noite a sorrir não está só, como estava na noite do lençol com quatro meias perdidas, por ali. Que cansaço. Nessa noite, a sorrir, encosta a cabeça numa cintura que tem mais de trezentos dias e ampara no colo a cabeça com um cabelo que já foi mais curto, mais comprido, mais curto, mais comprido. Respira devagar e a ansiedade da memória da véspera vê-a derreter-se num gelado que não comeu, porque ela às vezes olha para o lençol e diz-se assim: que cansaço. Há um perfil que não sabe que tem o perfil que lhe empresta o olhar dela, vira-o de frente e atira-o para trezentos dias antes, numa cadeira um em frente ao outro, apenas para recordar um olhar que foi tão sorvedor que fez de mãos, ali, numa sala ao lado -lembras-te?Respira um pouco mais depressa e depois entrega-se ao silêncio, com a boca muito seca, por isso é que respirou por instantes mais depressa, é que ela à vezes olha para o lençol e diz-se assim: que cansada.

quarta-feira, outubro 08, 2008

Belgrado II

nós, sempre na linha da frente
há mais de quatro séculos nisto - é assim, é por isso, que é assim que nos vêem
dizes
in time of roses drink my wine, Dragan
os poemas teus em cima da mesa do pai morto
tinhas dezanove anos e soavam todos a garganta de velhos
falas, falas, falas, dás uma aula de literatura sérvia a um grupo de alunos croatas
e os alunos foram repudiados pelas suas famílias - o ódio, tanto ódio, e soa a guitarra
we should stop this and listen to your fado, Isabel
nós combatemos sempre na linha da frente, entendes? - e soa a tua guitarra
in time of roses drink my wine, Dragan
pode nem sempre ter sido como disseram que foi, é isso?
não choras
não gritas
curvas-te todo numa guitarra- vamos?
vou falar-te dos meus poemas sobre mortes acidentais
elas todas têm um sentido, mas aqui não se fala de mortes acidentais
vou falar-te da morte de um dentista
não choras
não gritas
mordes os lábios, mordes mais de quatro séculos na linha da frente
e eu digo: põe esse peso sobre mim
eu aguento

quarta-feira, outubro 01, 2008

volta, antes que me ponha a rezar, volta, antes que me ajoelhe, ali onde não gosto, volta com a energia dos meus vinte anos perdidos em projectos enganados, volta, por favor volta, pára de morrer, minha querida, volta, volta, volta, amanhã, quem sabe, não desistas, não desistas, mas isto dói, mas isto dói, mas isto dói, não caias, não caias, amanhã, juro-te, amanhã, nessa cara um sorriso, eu não aguento até amanhã, eu não vivo até amanhã, pensa nos furos que tens nas orelhas, pensa no número que calças, pensa nos centímetros da tua cintura, podes ir chorando assim, assim, assim, assim, isso, isso, isso, volta, volta, por favor volta-me!

terça-feira, setembro 30, 2008

sou eu

bombas, armas, bombas, estilhaços, tiros, um tiro não certeiro, um tiro, o corpo atirado para o canto do sofá, bombas, armas, bombas, estilhaços, um grito a fazer de cogumelo atómico, às vezes um alívio, pode ser um brigadeiro, uma linha de sangue a percorrer-me as costas, passa por lá as mãos e dá-me um dedo a lamber as memórias, bombas, armas, bombas, estilhaços, tiros, o corpo dobrado na ponta do sofá, os nervos à flor da pele, tenho medo de todas as linhas brancas, bombas, armas, bombas, estilhaços, tiros, tenho medo de todos os fumos ilícitos, bombas, bombas, bombas, não tenho medo do momento em que me levas, tiros, tiros, tiros, tenho sempre medo de amanhã, um tiro certeiro, não me chupes lágrimas antecipadas, pode ser um brigadeiro, armas e bombas, bombas e armas, o meu cabelo no chão e uma barata que passa, bombas, uma bomba, um estilhaço, um corpo suado no chão, sou eu.

domingo, setembro 28, 2008

Exposição de pintura de Zé lourenço


No dia 15 de Outubro, pelas 16h30, na Sociedade de Geografia de Lisboa, inicia-se a exposição de pintura de Zé Lourenço, que decorrerá até dia 19. É imperdível. Tem de se ir cedo, porque em cada dia encerra às 18h. Coube-me escrever umas palavras sobre os quadros em questão e são as seguintes:


A Cidade Regressada
Isabel Moreira

O conjunto de quadros em questão, feitos em técnica mista acrílicos e óleos sobre tela, subordina-se ao tema A cidade regressada. Concretizando, há, em todos eles, uma predomínio do observador próximo dos ângulos, das cores, das fissuras, das geometrias do urbano, aqui e ali assumindo-se aquele como voyeurista de espaços interiores, que por sua vez são eles mesmos interiores de outros – o que aprofunda um olhar quase impossível no quotidiano urbano –, até as tonalidades da proximidade do olhar se poderem perder no limite do céu, que é também o limite natural do urbano respirável.
As fronteiras dos elementos arquitectónicos têm uma analogia perceptível com a complexidade do pensamento, também ele labiríntico e multicolor. É nesta perspectiva analógica que o olhar sobre os quadros é de sobrevoo, isto é, como que o espectador é convidado a perder a gravidade e a planar sobre as imagens, como acontece com o quadro em que uma lua transparece num céu de edifícios em vez de um céu de nada.
Num certo sentido, os quadros poderiam estar deitados no chão e o espectador deitado sobre os mesmos a uma curta distância sem o peso da gravidade. Esta, a gravidade, só não salva - pela força analógica dos espaços cruzados, quadrados, aflitos, uns dentro dos outros - a vida interior de cada um, que se projecta de imediato para cada uma das telas, e nelas se perde, porque a vida de cada um é, como aquelas linhas, intrincada, infinitamente sujeita a aprisionamentos imprevistos e labirínticos.
Numa palavra, ainda que sem gravidade, quem vê estes quadros, se não cai, não pode não se ver neles mergulhado, fazendo retrospectivas e prospectivas da sua própria vida pensada.
Há, pois, aqui uma tese. A cidade regressada é o urbano visto pelo olhar interior, que sendo complexo é ele também urbano e assim (des)configura uma nova forma de ser cidade.

sábado, setembro 20, 2008

fim

encontra-me lá em baixo sem camisa que é como quem diz sem espererança e força-me a tirar o resto de mim para cima de uma mesa ao sabor do meu gin de sempre assim de repente sem pontos nem vírgulas mata-me no fim das escadas contra a parede dos meus sonhos sem pontos nem vírgulas fura-me a pele com a ponta do teu charuto diz-me ao ouvido com a tua insensibilidade fingida cheiras a frango agarra-me o cabelo num gesto todo até eu duvidar que amanhã ainda o tenho e duvida tu da minha certeza de que te estou a dizer adeus assim no fim de umas escadas contra a parede dos meus sonhos sem pontos nem vírgulas sem camisa dói-me o pingar de alcool nas pernas encontra-me cá em baixo a abrir os olhos para uma história com mais chicotadas do que palavras assim sem pontos nem vírgulas vou cair antes de morrermos para te recordar do sangue e da humidade bebe bebe bebe dizes e dizias vou rebolar nos teus braços picados antes de morrermos sem camisa que é como quem diz sem esperança amanhã eu acordo sozinha o sol já morreu ou já te queimou o rosto que antes de cair em cinzas no último degrau esboça um sorriso ao meu grito quando me furas a pele com o teu velho charuto hoje não me moves as pernas hoje encontra-me lá em baixo sem camisa porque sem esperança faz um pouco de ontem e assim sem pontos nem vírgulas inala-me e sai

quarta-feira, setembro 17, 2008

tem o futuro no passado e no entanto está quase morta pela liquidez do amanhã. os projectos a escorrerem entre os dedos como sangue de um corte nas sua extremidades, antes mesmo de terem o corpo que é a palavra projectos. às vezes um telefonema recorta-lhe um sorriso, às vezes o bater da música do engate salva-lhe um choro apátrida. nunca a consistência de uma mesma mão na nuca a dizer estou aqui contigo, nunca o plural.
da sua janela sai uma prancha branca muito estreita e nela um convite ventoso: um salto para o passado.

sexta-feira, setembro 12, 2008

matar o sangue que nos une a quem nos mata

matar o sangue que nos une a quem nos esmaga. eis a aflição de hoje, a de sempre inacabada, aqui pelos poros a sofrer de novo e outra vez o seu parto com dor. abre as pernas a mãe de tanta dor e a sala agita-se com a gritaria infernal do sangue que um dia vai ser um corpo a pedir: matar o sangue que nos une a quem nos esmaga. sair do ventre a bracejar numa sala cheia de água e não de ar, anos a fio sem respirar, ontem a pensar: talvez morrer a dizer: fiquem com os meus restos e não se atrevam a um suspiro rezado sob o meu corpo. a sala agita-se na gritaria recordada e o sangue espalha-se de baixo para cima até ao tecto, para cair em linhas tortas num mapa de maus presságios, uma criança esventrada por palavras a vida toda a dizer um dia: matar o sangue que nos une a quem nos esmaga. adormecer numa cama enorme, enrolada no corpo desconhecido pela vizinha arrogante, chorar sangue como a sua virgem e matar quem nos matou a fechar as pernas da mãe para uma saída cheia de dor, para percorrer a vida a dizer a palavra dor, uma e outra vez, com a pele mesmo em cima do sangue, que é o mesmo do polvo que nos mata.

terça-feira, setembro 09, 2008

anonimato

no silêncio do anonimato aparecem os novos aspirantes a déspotas.
eles estão por aí.
Kapos.

quarta-feira, setembro 03, 2008

Sonhos III

Tenho cem anos e estou viva.
Tenho 100 anos e estou viva.
Tenho exactamente cem anos e respiro a pensar: ele ainda bate, ele ainda bate, ele ainda bate.
Tenho 100 anos e sobrevivi a todos os ataques e respiro a proximidade da morte sentindo-me viva.
Tenho cem anos e por isso sei que finalmente vou morrer a qualquer momento, mas: ele ainda bate, ele ainda bate, ele ainda bate.
Tenho exactamente 100 anos e os meus órgãos desafiam um passado que se abreviou e não encontro um espelho que me explique este salto para o fim.
Finalmente estou velha, tenho 100, tenho cem anos, penso: vou morrer a qualquer momento, é hoje, estou livre, não me lembro de nada da minha vida, paciência, estou livre, ele ainda bate, ele ainda bate, ele ainda bate.
A minha morte interrompe-se abruptamente por um rosto acamado, de perfil, onde me dói o verbo amar.
A minha mãe ainda está viva.

segunda-feira, setembro 01, 2008

tela de dores

trinta e cinco agulhas entram-lhe pelo corpo adormecido na doença; pela doença. de costas, como que adormece num musical sem dores de recordações e de projecções; pelo meio uma irmã aflita; pelo meio um sono que não vinha há muito tempo. agita as pernas não feridas e adormece e acorda corroída de vontades, a dizer: talvez então viver.
deita-se na tela do seu pintor e começa um quadro do seu corpo reanimado. deitam-se, pintor e uma mulher nus, lado a lado, na tela enorme, e as cicatrizes de ambos fazem os cabelos de um só homem com sexo de mulher. cresce a tela com corpos misturados até um só, ela rebola, rebola, grita: pinta-me, pinta-me, e vai atrirando gin para cima de mim, eis-me nesta tela. ele estende-se nela, passa por ela, estreita-lhe as ancas e diz-lhe: aqui morreste, sabes? oferece-lhe o pincel trincado e pingado para um auto-retrato e ela chupa-o e assume a tinta como vinho e confessa que as trinta e cinco agulhas deram forma ao início das suas pernas por dentro: explode a chorar. explodem a chorar. abraçam-se em tinta preta. ela deita-se nas costas do pintor e pressiona o coração dele contra a tela: aqui mataram-te, ou é aqui que te matas, diz-lhe. deitam-se de lado, um contra o outro, dão os lábios molhados de alcool um ao outro, respiram lentamente cobertos de tinta vermelha a descontar passados e vão parando de chorar até só se ouvir a pintura de um uníssono gemido.
fica quieta, ouve.
olha para isto, suspira.

domingo, agosto 24, 2008

Stefan Zweig explica que Goethe tinha medo da música. Fico por aqui.
Embriagada pela música não posso ter medo, apesar de comprender muito bem aquele medo a que se refere o escritor. É que eu já estou, já sou tomada pela incapacidade de prender a razão a certos cuidados preventivos, para que a prosa, a poesia me não mate um dia.
(pausa)
Que linha tão ténue viu hoje no mistério da estrada de Sintra. Parou em todas as fontes. Morreu em todas elas e disse-se: está para muio breve o fechar de olhos sem pesadelos.
Que linha tão ténue.
Que luta tão dura.
Que grito tão opaco.
E disse-se: está para muito breve o meu fechar de olhos.
MÚSICA MUITO ALTA PARA NÃO CAIR SENÃO NELA.

quarta-feira, agosto 20, 2008

chover palavras, enquanto o demónio a consome
para sempre
chover palavras, para combater o monstro, aqui
para sempre
chover palavras, corrompida pelo demónio, a chover
para sempre
chorar o demónio interior, a chover, a chorar palavras
para sempre

terça-feira, julho 29, 2008

Desilusão

Ela pecou sempre por idealizar o outro. Por isso o outro sempre lhe surgiu como cumpridor e leal. Ela projecta-se no outro e faz do outro o que em si é o peso deste juiz interior e que lhe dita não trair, não mentir. Não faltar para com o outro. Eis a história da sua relação com o outro.
O outro não é o eco do nosso projecto interior. Quase nunca. Quando se marca em episódios essa evidência há uma queda na realidade que se chama desilusão e que sangra muito. A cabeça gira, mata-se em memórias de frases ditas, episódios vividos intensamente, pelos vistos só por um outro, e as costas pregam-se no chão, mas à frente do nosso corpo.
Ela lembra-se de há sete anos atrás, esse número maldito e por estes dias invocado: agora tudo é límpido. Os amigos silenciosos nunca foram amigos, nunca telefonaram, nunca apareceram, tudo esqueceram, porque não eram o outro. Recorda o dia em que prestou uma prova difícil e em que olhava para trás à procura de algum dos outros para ver se se via e neles a sua identidade: não estava lá ela nos outros; não estava lá ninguém.
Ficou apenas uma promessa, uma palavra de honra, silenciada e quebrada. Pelo outro inexistente. Lembra-se do N. e pensa: ironize, ironize.
É evidente que chora. É evidente que se chora.

quinta-feira, julho 10, 2008

Sonhos II

Um amor vindo de longe interrompe-se por um amor vindo de uma distância um pouco menos distante. Dilui-se a imagem do primeiro e arranha a pele dos braços para inverter a diluição. Não consegue e por isso recorre ao vício de um terceiro homem, pedindo: beija-me para que todos se afastem e com eles o medo de morrer amando. Ao fundo, uma andorinha desenha a sua vida no céu negro e azul, sem uma nuvem branca que acuda a sua desesperança. O amor antigo ressurge e tem um nome. Começa a chorar e encosta os braços ensanguentados nas costas que conhecia tão bem, tão bem, e diz: ajuda-me a amar sem medo. Ou: beija-me para que o vício do terceiro homem se dilua e com ele o medo de nunca emergir do pântano que é um pânico e que se chama morte lenta nos braços de ninguém. Começa a chorar e encosta os braços ensanguentados nas costas que reconhece tão bem, tão bem, e diz: eu.

quinta-feira, julho 03, 2008

Sonhos I

Uma cápsula por pessoa. Sete anos no seu interior para acordar numa ilha para um jogo.
Estaremos vivos, ouve-se.
Acorda e diz: tenho quarenta anos.
Ao mesmo tempo alguém que nunca a lê risca algumas palavras do seu livro. A caneta é vermelha. O jogo começou e sem dar por isso chega ao fim. Três pessoas a expulsarem-se mutuamente. Pensa: quem morreu, entretanto? Uma voz: o Pedro, o teu pai e sim, ela.
Escreve uma mensagem a um médico e pergunta se sete anos justificam outro tratamento.
O medo não morreu.

quarta-feira, junho 25, 2008

Mais Direito que me interessa: Consequências do Artigo de Opinião "O Ministério Púdico" de Fernanda Câncio

A Fernanda Câncio publicou um artigo onde denunciou o silenciamento a que o meu parecer sobre o casamento entre pessoas do mesmo sexo e o do Luís Duarte D'Almeida foram vetados pela Revista do Ministério Público. Está aqui. Entretanto, houve um esclarecimento da Revista do Ministério Público, tal como o a Fernanda Câncio dá conta, no qual se trancreve um mail que me foi enviado. Está aqui. Por seu turno, a Fernanda Cânciojá recebeu um mail de um membro da redacção da RMP dizendo que votou contra a não publicação dos pareceres e que considerava a proibição legal de casamento entre pessoas do mesmo sexo inconstitucional.
A resposta da RMP é pouco séria, omite dados fundamentais e obriga a esclarecimento rápido. Foi o que fiz nos cinco dias, assim:
Em primeiro lugar, enquanto autora, entre três, do livro apresentado, o meu profundo agradecimento à Fernando Câncio. Ele é duplo, já que para além desta apresentação, com coragem, denunciou o “Ministério Púdico”. Não posso deixar de reagir ao esclarecimento prestado pelo Dr. Rui do Carmo, director da revista, no link que a Fernanda disponibiliza. Vou por pontos.
1. O Dr. Rui do Carmo (DRC) só me respondeu - como transcreve - por insistência minha após semanas de silêncio, quando a proposta de publicação já tinha sido feita.
2. Na proposta tinha sido explicado que só nos interessaria publicar os pareceres tal como estavam apresentados, pois as opiniões contrárias já estavam publicadas e o contraditório, em Portugal, estava por fazer, precisamente, publicando-se, pela primeira vez, esta posição, e permitindo o debate na sociedade enquanto estava a decorrer o julgamento no Tribunal Constitucional, como aconteceria em qualquer país civilizado.
3. Por isso, a resposta, que só chega, repito, por inistência minha, é hipócrita, finge que não leu a proposta inicial - aliás, o DRC já sabia de início que nº da RMP que nos interessaria já estava indisponível, pelo que, talvez com gosto, nos fez perder tempo - e sugere, atropelando a liberdade de expressão e científica dos autores, que transformemos pareceres em futuras críticas de jurisprudência. É como pedir a um pintor que tranforme um quadro numa cadeira.
4. Houve, pois, silenciamento da defesa da inconstitucionalidade da solução legislativa actual.
5. O critério avançado pela Revista do MP de que publicaria os nossos pareceres, mais à frente, cobardemente, após a decisão do TC, desde que acompanhados de posições contrárias é, como à data foi transmitido ao DRC, curioso e inédito: estamos atentos para ver se de futuro a RMP mantém o critério. Sempre que, por exemplo, se publicar um artigo sobre o princípio democrático, terá de se publicar, imagina-se, ao mesmo tempo, um atrigo sobre o princípio autoritário.

sábado, junho 21, 2008

Entrevista com Pedro Rolo Duarte

Obrigada ao Pedro Rolo Duarte que me permitiu, em entrevista na Antena 1 que será transmitida amanhã às 11h, falar, para além do Consolação e dos meus livos, do livro sobre o casamento entre pessoas do mesmo sexo. A entrevista pode ser ouvida
aqui

quinta-feira, junho 12, 2008

Convite

APRESENTAÇÃO DA OBRA O CASAMENTO ENTRE PESSOAS DO MESMO SEXO

Os Autores, Carlos Pamplona Côrte-Real, Isabel Moreira, Luís Duarte d`Almeida, e a Almedina têm o prazer de convidar V.ª Ex.ª para a apresentação da obra O Casamento entre Pessoas do Mesmo Sexo.

A apresentação realizar-se-á na segunda-feira, dia 16 de Junho de 2008, pelas 18h00m, na Livraria Almedina, Atrium Saldanha, Loja 71, em Lisboa.

A obra será apresentada pela Doutora Fernanda Câncio.

terça-feira, maio 06, 2008

a criança magrinha aperta-se no seu corpo,
devolve-lhe a proximidade e pensa:
o afecto dói-me.

quarta-feira, abril 23, 2008

ouve o bater da porta de casa atrás de si,
passa a mão pela cabeça do cão e pensa:
afecto.

quinta-feira, abril 10, 2008

andar, andar, andar. ela está, no entanto,
sempre no mesmo lugar.
felizmente não tem flores - que odeia - em casa.
onde está sempre, há muito ruído e tanto silêncio
que não chega.
nem cai.
por uma jarra que fossse.
a sua.

domingo, abril 06, 2008

Regresso

Hoy como Ayer
Mañana como Hoy

Gustavo A. Bécquer



Ela a querer muito as condições de um regresso.
Como hoje, um acaso.
Anda a lutar contra o tempo com o próprio tempo.
Dói em segredo como a dor de uns pais de sorriso triste.
Dias raros, sem amparo, um pretexto: voltou, trémula.
Atreveu-se. Uma voz, um acaso a dizer-lhe que regresse.
É sempre uma pessoa que a morre; é sempre uma pessoa
Que a perdoa.
Regressa, então.
Lutando contra o tempo com o próprio tempo.
Os dias sem amparos são unidades de tempo.
E talvez um dia um desconhecido a faça parar de tremer
Ou agradeça o seu tremer
Ou entenda o seu tremer
Diria: eu não te estranho.
O luto está feito e ela sabe que hoje é ontem e que
Amanhã é hoje.
Dói. Mas vive-se.

segunda-feira, janeiro 28, 2008

Até um dia

Obrigada a todos os que me lêem.
A contradição é enorme, mas sendo isto o espaço mais público do momento, este vem sendo o meu espaço mais íntimo. Eu escrevo aqui para não perder o que escrevo; o mesmo é dizer para não me perder. Fui a última pessoa da minha geração (que conheço) a perceber o que é um computador e a conseguir aceder à net. Antigamente, escrevia compulsivamente e perdia os escritos pelos cantos. Esta coisa a que chamei de consolação permitiu-me armazenar no espaço o que poderia vir a ser um livro, bocados de um livro, vários livros, páginas de um livro, sem perder, sem deitar fora, sem me perder, porque só me interessa escrever sobre a aprendizagem da dor (disso sabem os poucos que lêem o que escrevo em papel) e por isso não posso parar de escrever, enfim, já escrevi muito sobre isso. Este espaço é, portanto, o meu armário. Não me ocorreu, para concretizar esta sensação de armário, numa pequena entrevista a uma revista semanal, aproveitar para dizer que tenho um blog. Durante meia hora de conversa em que se falou do meu livro e do meu amor pela literatura, não me veio à cabeça o Consolação. Não esperava que este viesse a ser lido por tanta gente. É muita gente considerando os textos em causa. Eu só soletro dor. E a vida das pessoas está cheia de dor. E a dor pesa. E mesmo assim há quem não repouse a dor e passe por aqui. Com gosto. Tantas vezes com coragem.
Obrigada a todos os que me lêem. É uma espécie de amor que existe na minha vida: chama-se intimidade e é muito forte. É uma consolação.
Neste momento, preciso de parar. Preciso de silêncio. Preciso de respirar. Preciso de escrever por dentro. Não sei quando volto. Esta necessidade de um retiro pode durar duas, três, quatro semanas, mais tempo, tanto faz. Mas ainda que apenas uma pessoa me lesse aqui, habituada a uma certa regularidade, não poderia ir embora sem um texto de verdade a dizer obrigada e a querer muito as condições de um regresso.
Até um dia.
Isabel

sábado, janeiro 26, 2008

Assim

Stronger than me
(Amy Winehouse)

Os sábados são assim
Stronger than me
Ela percorre um corpo devagarinho, cheia de dor, a dela, é uma dor com um epicentro aqui, aqui, enquanto se lembra de um refogado inútil, enquanto se lembra de um pastel de nata que ofereceu à indiferença; não é isso a sua dor, é isso que agudiza a sua dor.
Os sábados são assim
Stronger than me
Enrosca-se no banco de trás do carro e tranca a sua dor numa outra dor: uns olhos a dizerem nada, os seus olhos a dizerem por dois, a sua língua com a devoção de duas, as suas mãos a valerem quatro, uma dor, stronger than me, um dicionário a gritar-lhe a palavra que teme, aquela lá de trás que só se descobre assente em nós depois de mortos por dentro.
Os sábados são assim
Stronger than me
E ocorre-lhe citar a Anna Akhmátova de forma reles, como aquela gaja que disse de uma maneira muito precisa, num poema, assim:

Vinte e um. Segunda-feira. É noite.
No escuro uns contornos de cidade
Algum vagabundo escreveu que na terra pode haver amor

Por tédio ou preguiça todos acreditaram e assim vivem
Esperam encontros, temem a deus
E cantam canções de amor.

Mas a outros revela-se o enigma,
e o silêncio repousará sobre eles …
Descobri isto por acaso
e desde esse momento sinto-me mal

Isto passa, isto passa, isto passa. Stronger than me durante duas horas e meia
De horror,
Tu, de repente, N. Havias de lhe explicar numa mesinha, seja, por que vem ela tomando o lugar dos passarinhos que visitavam as nossas toalhas, a pedirem migalhas. Ela está ali no cantinho da mesa com asas quebradiças a sorrir para uma migalhinha dourada, e às tantas deita-se e a palavra que teme habita-a com tanta força que não se solta completamente quando recolhe as penas.
Não é essa a sua dor. A sua dor é até isto de ser passarinho doer.
Anda a estudar biologia por umas horas: beija e pensa beija-me, abraça e pensa abraça-me, aperta e pensa aperta-me, lambe e pensa lambe-me, assim, assim, assim, não vês que quase cheirou a amor?
- É irrelevante. O amor é uma necessidade passageira, ouve.
Que dor.
Os sábados são assim, N. A partir de hoje dirá sempre que o dia, essa coisa, o dia, essa coisa, correu bem, antes que morta de outros sons.
Despediu-se de ti de um abismo interior. Despediu-se do outro que lhe mostra o que é não amar.
Só dela não se despede.
Não pode.
Stronger than me, N.

terça-feira, janeiro 22, 2008

Separation

You in the high-walled fortress of sleep
I on an island of wakefulness
bird-haunted, trapped by mist

You eyeing the warm milk of suspicion
I drinking the green rain of the seagull’s ocean

You on the red deck of the last ferry going under
I on the amusement pier lost in the crowd

You going forward into the mirror
I crawling backward into the teeth’s cavity

You in sunglasses
walking towards the sea on a street that backs into the sun
I sliding on ice across the abandoned freeway

You in prison waiting for redemption
I in the asylum counting billiard balls

You climbing stairways, humping buckets of soapy fisheyes
I descending the silver elevators, escorted by clouds

You on the night bus that leaves from the ferry wharf and goes
across the stone desert to the other side of the earth
I on the top floor of the brightly lit hospital,
beating the glass with my hands

The night is cold
The poplars are grey in the headlights

You have opened the paragraph of silence
I was closing the volume of inaudible sound

Peter Boyle in Coming home from the world

sábado, janeiro 12, 2008

m a d r u g a d a
3 h 32
disse: a minha intenção de novo ano é esta. por isso foi para casa. conteve-se.
pensou: a noite é o que não aconteceu.
respirou. ou não.
recordou: na mesa foi uma outra pessoa.
(um sorriso a contrariar isto: ser uma pessoa reservada)
um dia é sempre uma véspera. mas só isso.
talvez amanhã.
leu menos do que queria. ou do que poderia
(ser-lhe dirigido)
a solidão a aumentar sem ruído. a solidão engorda.
onde morrer?
numa biblioteca. sem o lado esquerdo da cama a desertar o lado direito da cama.
numa biblioteca não se morre.
morrer então assim, ali a viver, porque outra vida não lhe foi possível.
de noite, aqui, tens razão quanto à palavra tu.
uma voz: tu não és um tu para ninguém.