segunda-feira, dezembro 24, 2007

25 de Dezembro

Lembro-me de uma janela
Na Travessa da Infância
Onde seguindo os rumores dos autocarros
Olhei pela primeira vez o mundo

(José Tolentino Mendonça)

Entram-nos novos olhos pelas esquinas e não entendem a tristeza ou avisam-nos do egoísmo dela. Escondemo-nos numa sala nova, cheios de sorte, o sol muito intenso, livros por ler, e o oratório de natal de bach a fazer coisa nenhuma aos nossos sentidos. É muito difícil explicar aos novos olhos que dói muito ter uma dor que se tem porque se nasce com ela, porque, como já se disse, o mundo nos bate à porta, mas não entra, eu não consigo.
Quando há uma trovoada de palavras a dizerem-nos a causa da nossa alegria esperada, a dor dói mais, mais ainda, porque nós sabemos que na linha de cima da vida temos tudo e que esta dor só se explica numa linha nos subúrbios do traduzível, onde uma infância amedrontada numa pele mal vestida tantos anos, um desamor quando começou a palavra eu, uma solidão nas mesas com uma família de dezenas de pessoas, a tal sorte que nós temos, esta dor é assim. Tudo o que temos por que tantos dariam dá à dor uma nódoa de culpa, de culpa, e assim se vive num cilindro dentro de outro maior cheio de sorrisos e de amor invejado e nós no nosso cilindro de dor e de culpa e, claro, de medo, essa besta. A infância pode ser um quadro móvel, a mesa de Natal no dia 25, uma mesa feliz, que sorte a nossa, mas os anos levam-nos as pessoas, e Deus também, que ficam com o nome de mortos, pendurados nos nossos corpos, e hoje vê-se aquela mesa com os sons feitos ecos, porque de memória, e há uma mão que não agarra o sal que lhe passam porque morreu, essa e outra mão; a mesa da nossa infância, ao longo doa anos, vai ficando cheia de sombras, os nossos mortos, que surgem com muita força no Natal. É por isso que o dia 25 de Dezembro tem de bom apenas a promessa de um 26, é por isso que quem tem uma dor que nasce consigo e vive em cilindros de medo desequilibra-se até à quase loucura nesta época em que o trânsito, as luzes, ou os apelos na rua são apenas os gritos dos mortos que desocuparam as mesas da nossa infância. Para as ocuparem, hoje, como nunca.

segunda-feira, dezembro 17, 2007

Ainda a primavera tão longe e pareceu-lhe sentir uma andorinha no novo parapeito da janela. Dirá: foste, tu, talvez. Ou: és tu, com olhos de azeitona.
Deitou-se no chão muito cansada e ouviu a voz desaparecida: hoje o teu medo é regressar ao medo, minha querida. Respira, respira, respira e não tenhas medo do medo. Esse teu corpo a tremer e essa tua vontade de gritar agarrada a uma fotografia é uma pequena queda num movimento que se dirige a uma promessa. Obedeceu, muito quieta. Agarrou tremendo um cigarro e um copo qualquer e chorou enfiada na pele dela, que dor a sua dor, que difícil não enlouquecer quando sente aquele abandono, quando refaz com o próprio corpo os gestos do outro corpo, muito só, com cigarros trémulos, também. Diz na sua boca a frase que já foi dela: eu sem ti ficaria sem um braço.
(dizemos a frase ao mesmo tempo: uno o som dessa tua frase de há anos ao som da mesma frase agora minha e pergunto: como faço para viver sem um braço, minha querida?)
Depois falou dessa voz desaparecida a uma pessoa que é verdade
(parece-me que ontem quem nunca te viu deu pelas tuas mãos pequeninas).
Foi uma andorinha, minha querida, uma primavera a entrar por aquele parapeito, a aterrar na minha almofada e a transpirar sem demónios na pele. Talvez não tenha dado pela contenção dos meus olhos, mas pousou a cabeça no parapeito do meu peito, senti o peso exacto na minha respiração e nem uma grade, minha querida, nem uma grade.

segunda-feira, dezembro 03, 2007

Para a R.

In Paris With You

Don't talk to me of love. I've had an earful
And I get tearful when I've downed a drink or two.
I'm one of your talking wounded.
I'm a hostage. I'm maroonded.
But I'm in Paris with you.
Yes I'm angry at the way I've been bamboozled
And resentful at the mess I've been through.
I admit I'm on the rebound
And I don't care where are we bound.
I'm in Paris with you.
Do you mind if we do not go to the Louvre
If we say sod off to sodding Notre Dame,
If we skip the Champs Elysées
And remain here
in this sleazy
Old hotel room
Doing this and that
To what and whom
Learning who you are,
Learning what I am.
Don't talk to me of love. Let's talk of Paris,
The little bit of Paris in our view.
There's that crack across the ceiling
And the hotel walls are peeling
And I'm in Paris with you.
Don't talk to me of love. Let's talk of Paris.
I'm in Paris with the slightest thing you do.
I'm in Paris with your eyes, your mouth,
I'm in Paris with... all points south.
Am I embarrassing you? I'm in Paris with you.
(James Fenton)

quinta-feira, novembro 29, 2007

A funcionária

Quase invisível, dir-se-ia, a sombra de lãs neutras, ali sentada, há trinta e cinco anos. Calhou que os olhos eram olhos de chorar aflito e ela ali a passar encontrou-se nesses olhos, daquela sombra quase invisível, dir-se-ia, uma sombra de lãs neutras. Precisava apenas de uma pergunta – o que tem?- para desensombrar-se num choro então audível, explicando a dor de ouvir uma repreensão injusta depois de trinta e cinco anos a sorrir por fora. Ali, de repente, no espaço de um corpo quase invisível, uma revolução: o parto das dores de uma vida inteira, vida subitamente revelada como uma introdução à mágoa de hoje, Angola abandonada, marido morto tão novinho, uma vida de viúva sozinha, de filhos seus e bastardos por criar, sempre perdoando, e agora isto: uma repreensão injusta a matá-la de vez.

sábado, novembro 24, 2007

Pensamentos imediatos II

As mulheres têm uma coragem muito específica: verbalizam o que sentem. E assim permitem a muitos (finalmente) falarem.
Para concordarem com elas.

quinta-feira, novembro 22, 2007

Pensamentos imediatos I

(Notícia no jornal de hoje: descoberta de fóssil mostra que já existiram escorpiões maiores que um homem)

Ainda existem. Ainda existem.

sábado, novembro 17, 2007

tudo o que acontece é um parêntesis na saudade.
presta-se asim muita atenção às portas e às paredes que são isto:
-uma pessoa a dizer até amanhã;
- um sono interrompido;
- a previsão da segunda parte do sono;
- um papel tingido de lápis dos olhos;
- o silêncio de um copo vazio;
- o silêncio de uma carta que não chega;
- o frio a crescer nas costas;
- o silêncio do fumo do cigarro;
- as pessoas ao fundo da fotografia;
- o silêncio dos livros por ler;
- o silêncio;
- os ruídos interiores;
- o silêncio;
- o silêncio.

terça-feira, novembro 13, 2007

Os seus dedos aventuram-se trémulos no teclado. O peso dos sonhos, mesmo os não recordados, dizem-lhe é hoje que te não aguentas. Frases, músicas, choros, sorrisos dela são o estuque deste tremor. Penteia-se ao espelho e imagina a perplexidade alheia: tão nova, tão bonita. Minha querida, por quê?, pensa. Tem um remoinho no centro da cabeça que puxa pelas lágrimas de fora para dentro, as sombras estão no lugar, a chave do carro dita a luta de sempre: um dia por cumprir. Sem enlouquecer. Os corpos todos já não amparam tanto medo físico, chegou o dia em que o peito esmagado por outro não se dá por vencido, nem por quinze minutos. Sim, sim, claro, diz, que interessante, diz, e por dentro a gritar desaparece porque estás a diluir-me. Fica para ali cheia de humidade sem dono ou sem intenção ou sem amor. Na noite anterior, numa estrada ondulada, deu pela sua solidão, não como sempre, mas num tiroteio que a conduziu, silenciosa, até à morte de tudo isto que é dizer boa noite. A invenção do amor é o poema que referencia uma nova manhã.
Pode ser que ninguém dê por tanta pele amedrontada. Pode ser que ao entardecer um sorriso tenha a generosidade de um sentido.

sexta-feira, novembro 09, 2007

Anda a ler exortações. Deus traiu os séculos todos e afinal não existe. É por isso que a cama dói de noite. A dor é sempre uma ausência. Por isso dor e solidão são a mesma coisa. Imagina uma pergunta, o que te fez sofrer?, e sabe a sua resposta, foi o normal, amor e morte, se é que não são sinónimos. De noite concentra-se na mão direita, no antebraço, no pescoço, na testa, nos olhos, e por aí fora, obediente aos exercícios descritos numa folha, vencer a ansiedade, pensa: deus não existe, e masturba-se com rapidez, até matar deus de vez, que já era apenas uma ausência, até dizer, enquanto se esfrega: que restará de deus se pensar nele em minúsculas?
De manhã, quando lhe dizem que o jornal não chegou, perde a cabeça e explode a chorar.

segunda-feira, outubro 29, 2007

Memórias

Um dia encostou a cabeça nos meus joelhos. Quinze anos depois, uma frase de alguém a dizer-nos o que se não ouve: eu estou ali com a tua cabeça nos meus joelhos, enterro os dedos num cabelo muito espesso e espero. O gesto foi apenas esse.
Há pouco tempo dizia-lhe: se tu morresses seria como amputarem-nos um braço. Dias depois, é ela a amputada. Quase a chorar sobre uma lápide e num ápice é já de manhã, houve um serão entre parêntesis, gostava de te ver decomposta? Diz não, pousa os joelhos nas datas brancas e de manhã a tua morte interrompe-se: sou a mãe dele. E numa frase assim começa a escrever: um dia encostou a cabeça nos meus joelhos. Quinze anos depois é o mesmo corpo, talvez mais bonito, e pensa: que bom seria beijar-te.
Ele regressaria à sua vida sem a possibilidade de sentir a dor daquela morte. Dir-te-ia: morreu-me uma mulher. Então, talvez com a cabeça encostada no meu peito nu, me pudesses dizer: fala-me dela.

segunda-feira, outubro 22, 2007

J.

A frase:

- és tão alegre
.

Depois lembrou-se de um texto antigo: você tem um potencial de alegria deslumbrante, mas todos os dias mata a sua felicidade. Nesse texto, reproduzida, a voz que escuta com mais atenção.

E de repente, tantas alegrias mortas, tantas mortes passadas:

- és tão alegre.

No seu silêncio, a escutar a frase, uma contenção violenta para não explodir a chorar. Ou para não assustar aquela boca de sabedoria instintiva dizendo: se tu soubesses a alegria que me dá dares pela minha alegria. Porque de repente sou eu, de novo, assim: tu a fazeres de espelho num lençol desgastado. Entendes isto? Se tu soubesses da missa metade, mas não sabes, pouco importa, estou tão cansada de contar de me contar de contar-me e depois nada, psicologias suadas, inúteis, presunçosas e a falta que afinal me fazia quem antes de saber dessa falta diz de repente:

-és tão alegre.

sábado, outubro 20, 2007

Sábado

E chega uma dessas manhãs. É nelas que se abatem os cinco dias sem tempo para abaterem, sem corredores onde respirar. Respirar. A tristeza é um cobertor que varia em camadas: uma manta fina sexta de noite que acorda feita em lã grossa, muito pesada. As noites de sexta são então o início da tristeza.
E chega uma dessas manhãs. É nelas que se abatem os planos da véspera, morrem, um a um, o peso atira-nos para o chão. Sem ar. Há uma febre que nasceu de noite, quando a vida ficou mais ou menos absurda: uma nova licenciatura por cumprir, à conta de provas de esforço ou uma, duas, três rejeições choradas sem equilíbrio, um não quero ver-te a fazer sangue, a mãe a internar a filha, e assim chega uma dessas manhãs.
É nela que dor a dor se faz cada raiz de cada cabelo. Consciência do corpo é o mandamento em cima de um tapete azul, por isso consciência absoluta da febre, dos pulmões fechados, dos poros sebáceos. Dói, dói, dói e assim começa o início do meio da tarde. Os cinco dias sem tempo, sem tempos, a engrossarem o cobertor até ao segundo muito situado em que a música nos ouvidos fica mais baixa: este grito lancinante acompanha a febre que cresce e o corpo chora pelos olhos, vagueando entre os móveis abandonados, olhando uma fotografia até a desfazer em pedaços.
E acaba uma dessas manhãs. Quase, quase louca: afinal de pé, com todos os planos por incumprir.

terça-feira, outubro 09, 2007

Consolação

Está à beira de um ataque. Um ataque é uma loucura instalada a prazo nesse corpo. Ser a prazo não alivia em nada a dor do ataque, porque nesse prazo a dor é infinita, mas hoje o espaço é o que se sente antes, mesmo antes do ataque.
Está onde deve estar. O que inicia a sensação real de peso interior é estar onde deve estar. A sua pele, os seus olhos, pior, o seu olhar, tudo isso deve estar aqui, onde um computador dita ordens por cumprir e onde uma porta se abre de dez em dez minutos a marcar a normalidade que é isto: trabalhar.
O que seria normal, no entanto, está a dizer-se por dentro, mudo, mas com a força de uma gritaria numa sala almofadada, um quadrado perfeito, branca, muito só. O que seria normal está a desenhar uma fuga: o carro aqui tão perto, pensa, era só ter forças para chegar a ele, acelerar, passar a cancela, entrar em casa e mergulhar na prisão voluntária da sua cama, ali onde vomita o peso do medo e hoje, particularmente, o peso do cansaço, que também é medo.
(Tudo é medo).
Não quer morrer. Quer adormecer. Parece simples este querer, mas não é, porque o demónio do quotidiano sai-lhe pelos lábios verbalizado num sim, claro, almoço às horas tal e tal.
Engole um remédio branco para aliviar a exigência de descanso que saiu do remédio azul e para poder circular sem cair dos saltos dos sapatos, a pedir aos gritos que a levem daqui para um lugar onde possa dormir; não é morrer, é dormir.
Os sonhos da noite passada estão magoados por uma voz materna que lhe diz estás louca, é esse o sonho que treme nos nós dos dedos e que se interrompe quando o rapaz entra na sua sala e pergunta: estás bem?
Não mente, diz que está como está, mas a resposta sem a fronteira da sobrevivência num vestido, mesmo de algodão, seria assim: hoje estou com a cabeça pesada, mas pesada num sentido que não dá para esvaziar em palavras. Olha, estou com o peso que me avisa que a qualquer momento vou gritar e dizer eu não posso mais, eu ando para aqui cheia de medo e de mortos às costas, a minha cabeça parece uma areia movediça e engole-me pelos pés. Vou ali e já volto, mergulhar no mar, ou numa cama, e preciso de chorar muito, e preciso de ganhar coragem e dizer que este ano devia estar sossegada e não fazer mais que isto. Eu odeio chegar a casa às onze da noite com medo do meu corpo, do meu corpo dentro da minha cabeça. Eu preciso de fugir de mim, da minha família, do sangue lento que é a dor de todos eles, eu preciso de fugir das minhas plateias, eu preciso de agredir a ausência a que me agarrei tantos anos, e que se chama Deus, esse filho da mãe, literalmente, e culpá-lo de tudo, foder a pensar nele, ou Nele, já viste que alívio e que dor culpar uma ausência por esta merda toda?
É isto. A dor antes do ataque é assim.
Eu não quero morrer. Eu quero, eu preciso de adormecer.

quarta-feira, outubro 03, 2007

Evangelho

silêncio. silêncio. silêncio. depois, adormeceu. então, o silêncio deixou de dizer-lhe o que magoa.
de manhã, o silêncio chama-se contenção. à hora do almoço, o peso do silêncio finalmente parte-se. consegue. chorar.
dá com o evagelho de hoje. lembra-se de quando era seguidora.
lê:
Evangelho segundo S. Lucas 9,57-62.
Enquanto iam a caminho, disse-lhe alguém: «Hei-de seguir-te para onde quer que
fores.»
Jesus respondeu-lhe: «As raposas têm tocas e as aves do céu têm ninhos, mas o
Filho do Homem não tem onde reclinar a cabeça.»
E disse a outro: «Segue-me.» Mas ele respondeu: «Senhor, deixa-me ir primeiro
sepultar o meu pai.»
Jesus disse-lhe: «Deixa que os mortos sepultem os seus mortos. Quanto a ti,
vai anunciar o Reino de Deus.»
Disse-lhe ainda outro: «Eu vou seguir-te, Senhor, mas primeiro permite que me
despeça da minha família.»
Jesus respondeu-lhe: «Quem olha para trás, depois de deitar a mão ao arado,
não está apto para o Reino de Deus.»
termina a leitura. recorda-se das interpretações que salvavam o texto.
sente uma vaga náusea.
e regressa ao silêncio.

terça-feira, setembro 25, 2007

Segredo

Às quatro da tarde diz volto já
E só ela sabe daquele deserto
Os lençóis para tremer até passar, até passar, vai passar?
Vou passar-me
Depois volta,como se nada fosse
Do mundo,ali,sob o edredão
Onde se conta: duas horas para recuperar e dizer
Então, sempre fazemos assim ou assado?
Dizem-lhe: que bonita
Pensa: que alívio
Os lábios da sua mãe são também lábios de mulher
Perdido um, dois, três
Não grita, antes sussurra: podias ser
E escuta: não sou bonito
E olha as mãos que comandam as dela
Ao sexo
Ali onde de muitos em muitos anos
Repousa também uma cabeça
E escreve: que literária, a minha dor
A minha perda
A minha vida
Uma dia afogou-o no peito e respondeu:
Claro que sim, também gosto
E noutro dia queimaram-se em delírios
Encharcados, sovados, engolidos
E fez-lhe um corte na nuca, escondido pelos cabelos
Lambeu-lhe o sangue a gemer isto é tudo um sonho
E chorou

Amanhã espera sobreviver às quatro da tarde

quarta-feira, setembro 12, 2007

sete meses hoje

sete são as chagas de nome meses que correram entretanto. numa mesa, por acaso, dizia-me alguém que deu muito por ti. aterras de repente, nesses instantes, no meu corpo, um estrondo sem som, antes muito peso, és uma bomba atómica de dor. tanto de deus neste número sete, descansado ao sétimo dia, ausente os dias todos, grito. nunca te conjugarei no passado. amo-te.

sábado, setembro 08, 2007

Regresso de uma viagem de muito longe

Afinal sempre se regressa e só por duas vezes o medo me encolheu, como hoje, já regressada, entre um golo de vinho e uma passa de cigarro, os restaurantes são os meus campos de concentração, sobretudo quando é novo o vizinho em frente e, por isso, de repente, ali no espaço entre um golo de vinho e uma passa de cigarro, o sangue encosta-se todo na camadinha superior das veias e o medo corre sem aviso, cá estou eu outra vez, digo, e aguento, aguento, afinal aguentei o oriente a seco e, passado o medo, digo vem cá e dou cabo da dor que me fica como sei.

sexta-feira, agosto 17, 2007

Agosto II

em Agosto é usual, dizem-lhe, tirar um dia de férias para isto. uma multidão no número da primeira de três senhas: 365. um ano de pessoas e agarrada à sua vez, senta-se a um canto
E pensa:

- vem aí, vem aí, vem aí.

(as costelas apertam lentamente, mais e mais, o seu coração, respira a lutar contra essa opressão)

E pensa:

- nunca vou ficar boa, nunca vou ficar boa, nunca vou ficar boa.

(não vê as pessoas, mas os pormenores delas que as matam, que a deixam viva em agonia, vê o salto agulha de uma menina apressada, vê o som do verniz a escamar, da mulher ao lado, vê os olhos cegos da rapariga “prioritária”, vê o choro da criança ao colo de um colo qualquer, vê o homem de olhos amarelos, esbugalhados, a ser medido e a gritar um metro e sessenta, vê a pessoa que lhe morreu nisso tudo, vê a sua própria lágrima cair-lhe nas costas da mão que treme, vai à casa de banho e sai de lá um avental a dizer que aquela é só de serviço, mas o avental tem pena dela e diz sente-se aqui e chore à vontade)

E pensa:
- isto dói tanto, isto dói tanto, isto dói tanto.
(às vezes pensa na sua mãe, pensa no seu pai, dizendo, muda, mãe, pai, pai, mãe; às vezes entre dois gritos agudos da máquina que dita o número do cidadão a atender vê-se morta, um alívio, diz: porque não aguento mais esta dor. mas dói mais saber que não morrerá, pai, mãe, mãe, pai; às vezes o telefone toca e há uma voz que lhe permite explodir a chorar e confessar)

O que pensa:
- eu não ando nada bem. nada. tenho muito medo. estou muito só. eu não ando nada bem e tenho ataques de pânico difíceis de soletrar.

E ouve:
- por que não telefonas? é que não me interessa nada viver assim.

E pensa:
- preciso tanto do meu irmão.

(alargou as costelas depois das cinco, já sem febre, e do número 365, chorando muito este ano de morte, de medo e de desencontros)

quinta-feira, agosto 16, 2007

Agosto

Esteve fora e hoje parece-lhe que nunca saiu do parapeito da janela
Lá onde se acumula o pó a contar a sua ausência
E hoje a dizer-lhe: regressaste e olha o que fizeste
O que nos fizeste
Ou: por onde andaste?
Andou por um lugar qualquer e desses dias interessa apenas
O instante em que olhou o céu
Estava caída numa areia branca muito preta pela noite
E não sentiu absolutamente nada
Sorriu para umas palavras que lhe chegavam de cima
Numa outra língua
Não as ouviu
Ou ouviu o rumor delas a não atrapalhar aquele céu
E pensou: eu, aqui.
Depois voltou e disse
Estive fora e parece-me que nunca saí do parapeito da janela
Estou para aqui decomposta neste pó que me conta a ausência
Andei por um lugar qualquer a amassar-me toda
Um dia deixei de respirar
Depois dormi muito e nadei o mais que pude
E houve o instante em que olhei o céu
Cheio de estrelas mudas, estava tudo muito quieto
E eu não sentia nada, nada, nada
Olhava e pensava: eu, aqui.

terça-feira, julho 24, 2007

Belgrado

E depois há uma música
Que é sempre a mesma
Que são muitas outras
Que é sempre a mesma
Que eras sempre tu
E depois disseste-me com a voz nas pálpebras:
Eu não tenho esses séculos de fronteiras
Eu não tenho a paz de saber das minhas memórias
Eu não sou eu até que me não doa a casa magoada do meu tio
E a grávida morta porque morta antes a mulher do assassino
E por isso dizias-me, sem uma lágrima na voz:
Isto é só isto é a dor da identidade;de que falas, Isabel?

E depois agarravas uma viola e era uma outra voz
Que era sempre a mesma
Que eram muitas outras
Que era muito tua
E o som da tua voz inutilizava o significado das palavras
Que não entendo
E que me dizia tudo
Um tiro de raízes ciganas, pelo meio de todas muçulmanas, croatas, albanesas
E as tuas, isso que projectava a pergunta: de que falas, Isabel?
Os olhos cerrados de um sérvio a recuar aos sons
Que eram tantos
Que eram muitos outros
Que terão sido sempre aqueles
Cantados antes que gritados
Ou chorados
Ou sangrados
De que falas, Dragan?
E tu a dizeres: eu preciso de tempo
E que fosse a partir de um sítio com o nome de lugar novo
E assim a dizeres-me, de viola na mão, que precisas de viver
Com a paz muito sofrida da palavra eu

domingo, julho 15, 2007

angústia

O Céu não é humano
Bohumil Hrabal (Uma solidão demasiado ruidosa)
O mundo tem o tamanho da angústia
(na nossa mesa, ontem, perdi-me dele)
acordei às cinco da manhã
entre a nossa mesa de ontem
(onde me dói sempre menos o medo
onde me dói cada vez mais a mesa)
e uma troca de mensagens ousadas
saindo um pouco nelas
vindo-me depois delas
num espasmo de medo, de desequilíbrio
O mundo tem o tamanho da angústia
hoje diria, meia nua, meia louca:
O céu não é humano
e pediria de volta a puta da mesa
para te recordar nela o livro que te ofereci
O mundo tem o tamanho da angústia
e hoje estou nem mais nem menos
os sacanas enraivecidos, os sinais de trânsito
atiraram-me para uma berma
e eu disse-te: vem visitar-me, como se de partida
vou morrer
– grito, na minha Avenida de Berna
e o sangue corre dentro disto
com força, com pressa, com maldade
um veneno
O mundo tem o tamanho da angústia
O céu não é humano
a angústia dói, corrói, infecta, inflama
sou medopositiva, angustiadopositivia
escorro este demónio atrás dos óculos escuros
hoje acordei às cinco da manhã
e o gajo que me excitava toda
parece que afinal não
o dia amanheceu com uma desilusão banal
muito invulgar, nesta cabeça por um fio
a angústia tem o tamanho do mundo
o céu não pode ser humano
e hoje não há orgasmo que me safe

sábado, julho 07, 2007

20 anos

Para o meu irmão João

Olhei-a na cadeira lá ao fundo, esperando a sua vez de fazer exame
Caracóis desordenados, olhos aflitos com um tempo absurdo:
Vinte minutos
Uma tragédia, a sua ópera: vinte minutos
Saber se depois deles as mensagens serão de vitória ou de derrota
Chora-se muito naqueles corredores
E eu tenho saudades de me vestir assim
Decomponho as pregas de todas as roupas de vinte anos
Por dentro, corações, pulmões, vértebras, fígados
E o sangue no meio deles, tudo a mexer
A sobreviver
Para o mesmo terror: vinte minutos
A merda do exame que chumba outra perspectiva
Chamar, neste dia, ao mundo prova oral
E tremer, tremer, tremer
Odeio isto
Amo isto
Sou isto
Já não sou isto
Envelheci
De noite, um rapaz de vinte anos bebe os vinte minutos vitoriosos
A sua última ópera de sangue: chegou ao fim
Sussurro entre duas lágrimas: chegaste ao início
Tem a pele muito macia, este rapaz
Os olhos quase tristes, de tão vazios de fechaduras
Cruéis, amáveis, por não terem a penumbra dos meus
Deles têm o castanho límpido de há oito anos
Quando enterrei os meus últimos vinte minutos
E parti a conquistar o mundo e a vida
Com um diploma suado na mão
E um saco de energia e esperanças nas costas
De noite, um rapaz de vinte anos olha uma mulher
De vinte anos
Dá-lhe a sua vida por viver
Que é dar-lhe um corredor todo, onde ele mesmo um dia será outro
Ou não
Tem vinte anos este rapaz que de noite entra pelos meus ouvidos
Com os sons dos amigos a gesticularem e a rirem em seu redor
A nossa casa menos eterna
Os nossos pais, de repente
Pareceu-me
A chamarem por nós
Mais uma vez: só me dói o que é verdade
Tenho saudades da minha infância
E depois tenho saudades de doer muito a espera
Pelos meus vinte minutos de horror
De me vestir assim, como a rapariga na cadeira lá ao fundo
E depois tenho saudades do saco que levava às costas
Quando me anoiteceu o dia, como ontem, ao meu irmão

segunda-feira, julho 02, 2007

Luto

É excessivo o cerimonial em torno da morte, dizia.

(Velório, missa de corpo presente, funeral, missa do sétimo dia, missa do mês, visitas a casa, choro social, dor colectiva, pancadas a percorrerem um teatro de flagelação)


Um dia, a morte pesou-me como nunca e também aí me pareceu excessiva a marcha lenta em redor daquele corpo, ou daquele acontecimento.

(No entanto, nesses dias é permitido e esperado que se chore de pleno direito, sem espaço para mais nada, o nosso rosto é um espaço exclusivo da dor da perda, dos beijos de consolo, das mãos dos amigos que por ali passam, que compreendem, que se afundam connosco na tragédia do adeus que se adia nas cerimónias inventadas para isso mesmo, entendes?)

Depois de encerrado o capítulo do coração aberto aos amigos próximos e distantes, vem a tragédia do regresso à vida habitual.

(É uma tragédia, porque se vive com o rosto posto na saúde e o coração enterrado na aflição)

Pouco a pouco, é esperado de nós que voltemos a sorrir sem a sombra daquela morte que nos atirou para uma cama a soluçar, porque já passou o dia, a semana e o mês em que o choro tem lugar para ser abraçado, ou para antes disso ser comunicado, ou para antes disso ser esperado, ou para antes disso ser normal. As perguntas acerca de como vai o nosso coração sem ela começam a espaçar, porque cumprimos o devido.

(sorrimos, trabalhamos, bebemos, fumamos, fodemos, somos, em suma, pessoas devolvidas ao mundo dos outros)

Mas, na verdade, há a hora em que chegamos a casa.
(Passado o tempo em que deixa de ser razoável que se pergunte por ti, ou passado o tempo em que a pergunta por ti é uma raridade que espera uma resposta feliz e antes descobre uns olhos a explodirem a dor quotidianamente disfarçada, passado esse tempo, o espaço chama-se silêncio, ou duplicidade, e a verdadeira dor, ou solidão, então começa)

quinta-feira, junho 28, 2007

Diálogos II

- E tu, de onde és?
- Sou de uma terra lá do interior, que não existia até passar a existir, por causa de uma linha de comboio.
- Estás a gostar de Portugal?
- Ainda só conheço Lisboa. Nunca fui à praia. Não sei nadar.
- Tens sido bem tratado?
- Não me tratam mal. Estranham-me. Mas eu estranho-os com mais estranheza. São quase todos casados e são todos dos que levam.
- Tens cuidado contigo?
- Nunca me roubaram nada. Quer dizer, até hoje, só me roubaram oito bicicletas.

sábado, junho 23, 2007

TU POSSÍVEL

ONTEM, QUANDO FALEI DE TI, FIQUEI ASSIM POR DENTRO, UMA EXPANSÃO O TU SERES UM TU QUE É POSSÍVEL, MESMO QUANDO ESTÁS FEITO NUMA PALAVRA, QUE É O TEU NOME: DIGO ASSIM: POR ACASO FALEI SOBRE ISSO HOJE COM O N., E QUANDO O TEU NOME SAI DOS MEUS LÁBIOS, INTERROMPO A EXPRESSÃO MUSCULAR QUE OS OUVINTES ESPERAM DAS MINHAS SOBRANCELHAS, PORQUE ME EXPLODES NUMA VAGA DENSA, QUENTE, UMA MEMÓRIA JÁ, COMO SÓ QUEM É UM TU POSSÍVEL PODE SER, ESTOU ALI NUMA MESA, ADORMECES-ME O CORPO PORQUE ME DÓIS, SÓ ME DÓI O QUE É VERDADE, E CRESCES ASSIM SEM AVISO, NO MEIO DE DUAS PALAVRAS: POR ACASO HOJE FALEI SOBRE ISSO COM O N.: E PARECE-ME OUVIR: ISABEL, EM QUE PENSAS?, MAS SERIA MAIS CERTO: ISABEL, ONDE ESTÁS? TU NÃO IMAGINAS O QUE ME ACONTECEU ENTRE DUAS PALAVRAS: POR ACASO HOJE FALEI SOBRE ISSO COM O N.: O MUNDO CONGELOU-SE NUM SEGUNDO E, COMO EXPLICAR?, ESTA DOR, TU, AS NOSSAS MESAS, NÃO, TU, O QUE SINTO POR TI, NÃO, TU, UM INVASOR SEM ARMAS DE FOGO, ATÉ NÃO RESTAR NADA DE MIM, FIQUEI PARA ALI OCUPADA POR TI, QUANDO O TEU NOME SAIU DOS MEUS LÁBIOS ENTRE DUAS PALAVRAS: POR ACASO HOJE FALEI SOBRE ISSO COM O N.: ESTÁ A DOER-ME NÃO CONSEGUIR EXPLICAR ISTO, PORQUE QUASE ME NÃO PERTENCE, TALVEZ ENTENDAS, PORQUE ME ENTENDES TUDO, ERAS TU A ABRANDARES A ÂNSIA COM QUE FALO NAS MESAS TODAS, SEM PARAGENS QUE ME DENUNCIEM, ERAS TU A ACAMARES-ME EM TI, NO QUE SINTO EM TI, CONTIGO, PODE SER ISTO O AMOR?, UMA NOSTALGIA PELA QUAL SE CHORA SEM RESSENTIMENTO, ANTES COM INTENSA COMOÇÃO, ERAS TU, OU A MEMÓRIA DE TI, AS NOSSAS MESAS, UM TU POSSÍVEL, NÃO, ERAS TU, MAS O QUE ME DOEU FOI SENTIR QUE ERAS EU, SEM NINGUÉM PODER ENTENDER UMA COISA DESTAS, ISABEL, ONDE FOSTE?, SABER QUE FUI EU POR DOIS MINUTOS E SABER QUE SÓ TU ENTENDERIAS ESTE TEXTO CARDÍACO E SABER, QUASE CHORANDO, O QUANTO PRECISO DE UM ABRAÇO TEU, FOSSE QUANDO AS COSTAS DAS MINHAS CADEIRAS NÃO ME AMPARAM.

segunda-feira, junho 18, 2007

Diálogos I

- E hoje tens medo de quê?
- Hoje tenho medo de ter chegado a casa.
- Só?
- É muito. Ter medo de ter chegado a casa é muita coisa. E tive medo de ficar de pé numa cozinha a ouvir o som, a voz da mulher de sempre. Tive medo que ela visse o meu medo. Calha que a conversa está presa a uma dor comum e enquanto se aquece a água para o chá cria-se um espaço onde se chora sem estranhar esse choro inaugural. Rompo assim a teia de aço do meu medo.
- Uma bela imagem.
- Uma teia de aço, assim o meu medo. Cheia de fios e buracos desenhados com rigor, o ar a passar entre eles sem que se sinta que passa e o mundo para lá da teia sufocado nela e desenhado por ela: a minha grade. Quando a conversa da dor comum se inicia, o aço rompe-se, explode sem som, e eu começo a chorar, umas lágrimas a descomprimirem a aflição deste peso, e digo o que posso dizer, mas por dentro digo: que alívio, mãe, estava quase a gritar socorro e a dizer-te que estou muitas vezes por um fio, não de aço, um fio fraco como a contenção do meu choro, isto dói que farta.
- E agora?
- Lembrei-me de uma cena desgraçada do filme que quero fazer. Um filme irrealizável. A mão a passar na testa do homem ressuscitado, a descobrir nela duas entradas cavadas num tempo passado longe de mim.
- Tu tens saudades, não tens?
- Tenho uma dor. Uma dor muito forte, uma ilha num mar de gente e de coisas por que devo estar grata, mas como dizia um homem no filme real que vi ontem no cinema, elas não passam da minha pele. O mundo bate-me à porta, a minha pele, e não entra.

Eu não consigo.

quarta-feira, junho 06, 2007

Intervalo

Os dias perderam-se numa torneira ferrugenta
E sinto o gotejar deles, os dias, dia-a-dia
Numa torneira ferrugenta, a minha garganta
A minha memória feita em cano cheio de atritos
Os atritos a sentirem aquele gotejar neles, por eles
Protection – Massive Attack, ouço
Por um fio, massive, massive attack, penso
Os dias são plurais, não por serem muitos
Uns atrás dos outros
Os dias são muitos porque tudo isto e eles também
Pesa de mais
Um mais um são dois a pesar, são dois a doer
A corroer
Pingos muito lentos, de noite, na minha cama
Cada dia mais difícil, cada noite mais escura
Mais pesada
A pedir protecção, a pedir por uma protecção
Cansada de medo: massive, massive attack
Até que acontece qualquer coisa
Uma mesa muito familiar, a hora antes da hora
Das outras mesas
E uma pessoa que me vence o tremer e o temer
E há um desejo forte de ficar ali para sempre
Ou ficar para sempre como ali
Sem tremer nem temer
Hoje é dia de intervalo, penso
Os dias uns atrás dos outros caídos numa torneira
Numa torneira ferrugenta, a minha garganta
O meu corpo, a minha angústia, isso: a minha vida
Mas hoje é dia de intervalo
E ainda se dá o caso de ter dado por não haver sal
Na minha mesa familiar
E de ter recordado o sal que ali fazia falta
Nuns poros tão aflitos como os meus

quarta-feira, maio 30, 2007

de manhã

levanta-se o medo da almofada e a besta assume a forma de meio crânio. é ali que pesa, é ali que insiste em enlouquecê-la quase, em bater-lhe quase, em matá-la quase. os gestos de sempre, de manhã, palavras gastas, os gestos de sempre, tomar banho, com medo, medo, medo, medo, palavras gastas, o ralo da banheira, já o escreveu, já o temeu, já se morreu ali, o carro, sempre o carro, palavras gastas, a música a ferver, hoje de manhã, fervia muito, cantava mais alto que os pregos a começarem no seu colo, a fazerem-na trepar-se por eles, até ao céu, perder o chão. não está a escorrer nada, nada, nada do que sente, este medo, estes pregos, a ferrugem deles seria boa, agora que pensa, esfregar-se toda nela, e sentir, que é como quem diz sentir-se, que é como quem diz salvar-se. todos os dias uma guerra, uma guerra com o medo como sangue, o desequilíbrio como inimigo, o desequilíbrio como ocupante, uma potência, uma guerra tão sofrida, pai, uma guerra tão violenta, mãe, e de manhã apetece muito desistir e dar o crânio ao inimigo, ou oferecê-lo a uma nova pátria, e depois de um longo e enlouquecido grito chorar, chorar e chorar no ombro que escuto com mais atenção.

terça-feira, maio 29, 2007

de noite

tinha o corpo muito curvado, com medo dos espaços que sobram entre as dobras do edredão. nesses espaços o ar arrefece com intenção e o silêncio dele pesa entre os joelhos, entre as axilas, entre o queixo e o ombro, entre ela e ela, um espaço a dizer o seu medo, ou um amontoado de espaços a dizerem que é ela que sobra, ou a dizerem que é ela que lhes sobra; uma dor assim apertada, a noite expande-se pastosa, maligna, por cima da curva que é o seu corpo a suster a respiração, a suster a aflição, a suster a duração limitada do seu equilíbrio; uma dor assim apertada, a pedir muito por uma voz, a pedir muito por um corpo, a pedir muito por uma expiração, a pedir muito por um amparo, antes que solto aquele demónio, aquele demónio feminino, que espreita ocasionalmente, está ali atrás da porta, está ali por cima da cama, está ali por entre as dobras do edredão; uma dor assim apertada, a noite é uma procissão sem velas, ou ela um corpo não velado, ou ela uns olhos a explodirem o grito de terror, ou ela uns dedos comidos na sua guerra meticulosa; uma dor assim apertada, chamada solidão, entre os joelhos e entre as dobras do edredão, o desequilíbrio a qualquer momento, num momento imenso, quando o telefone não toca, uma dor assim muito apertada, com a consistência do medo, com o preço de duas lágrimas, de duas longas lágrimas.

domingo, maio 20, 2007

Ouve-se Sempre a Distância Numa Voz (Rui Nunes)


É a segunda vez que escrevo sobre um livro de Rui Nunes. Escrevi, a primeira, sobre o “A Boca na Cinza”, no Jornal de Notícias, explicando que não tenho pretensões de crítica literária, nem posso, explicando que falta, ou pode haver, o espaço do diálogo directo escritor/leitor, este último atirando-se ao texto, em resposta, na genuína intimidade que o escrito gera.
Escrever sobre este livro é, como sempre, escrever sobre o Autor, que nos marca pela verdade dura dos seus textos, textos escritos contra o medo, talvez o medo que se pressente tentado contra o escritor; sem sucesso. Haja tempo para ler este livro.
O Livro, então:
Esta é a soma, ou o percurso por todos os livros de Rui Nunes. Quem os conhece, termina a leitura com essa amargura: há aqui uma procissão pelas palavras da sua vida e nela se reconstrói uma vida, numa nova história, que é a mesma, a soma de todas, para dizer adeus, com o peso de todas, a dor a atravessar nestas linhas as outras a que se chamou Enredos, ou Grito, ou Álbum de Retratos, ou o Mensageiro Diferido, um legado de legados, e se se ouve sempre aquela distância, quem lê o livro com a voz dele não pode deixar de escutar o anúncio de um qualquer último suspiro.
O espectro do livro é um quarto, onde estão um homem e uma mulher, os únicos corpos que poderiam ter proximidade nesta história, o casulo aberto da história, o lugar onde o diálogo acontece, onde o esquecimento é soletrado no presente, o lugar onde as coisas aparentemente são reais, porque há cheiro, porque há sexo, o lugar onde a pele é molhada, mas o quarto é o ponto de partida para o percurso da memória pela história da sua vida, mesmo quando a história da sua vida é o olhar que pesa muito a pousar sobre as vidas outras, como a metáfora do abandono do nosso tempo, os ucranianos e croatas, as gentes dos subúrbios, os emigrantes a morrerem nas praias prometidas; não é importante, para o efeito, o olhar sim, eles todos, ou elas, as descrições são o que entra pelo quarto adentro, pelas paredes móveis deste quarto alucinado, a fazerem uma pessoa, o homem que está ali, posto naquela mulher, morto pelas suas histórias, que o não deixam ter a proximidade de alguém e por isso a descrição do frio das mãos tem o capítulo da perspectiva dele e o capítulo da perspectiva dela, e na distância de um capítulo pelo meio também se constrói a distância de duas vozes, é ele que obriga a essa distância, sem remédio, ele não se esqueceu da sua história, a sua história esqueceu-o e por isso diz: o meu tu é um desejo (p. 59).
Da memória há dois quadros que vão crescendo ao longo do livro, entrando e saindo do quarto, talvez os quadros que mais vincam a criança que se espreita pela janela feito homem. Duas histórias de abuso, um caçador e um padre, ou dois caçadores, afinal, caçadores de uma memória inocente: o que nos assalta com violência não é a criança a perder-se em dois crimes, é a perspectiva dessa criança: é a descrição minuciosa dessa perspectiva, porque a minúcia é o preço da dor, e por isso quando o caçador se aproxima do rapaz que sabia os nomes das árvores todas, que ia apenas no seu caminho para casa, a dor não é saber que a sua cabeça foi empurrada até um sexo, a dor é sobretudo ler que esse gesto é recordado com a visão exacta da poeira nos atacadores do caçador, com o olfacto presente da pólvora, com a textura ainda na pele da mão que começou nesse dia a matar-lhe a ternura. A ausência dessa ternura é um peso para a vida toda, para as paisagens que se escolhe sem escolher, pára-se onde falta a ternura. Por isso, quando se regressa à infância e se reinventa o pai, reinventa-se o pai com uma ternura que não teve lugar: invento, invento o meu pai e a sua ternura, carrego um gesto e a sua ternura, carrego um gesto que existiu de uma ternura que não lhe pertence (p. 90).
Custa muito soletrar estes episódios, ou os episódios são duros a soletrarem esta pessoa, e por isso eles vão crescendo, devagar, cheios de dor, parecem um terço e as suas contas, suspenso para descansarmos noutras distâncias. Entre nós e o outro há estas distâncias todas: a batina do padre a interromper a voz da mulher – é aqui a tua casa? -, os botões dessa batina ao som das perguntas: quantas vezes pecaste por pensamentos? Quantas por palavras? Quantas por obras? As perguntas a empurrarem a cabeça do rapaz, as perguntas empurram mais do que a mão, para baixo, e o homem que está no quarto com a mulher ainda sabe quantos botões tinha, e tem, aquela batina.
Deus também morre nestes episódios. Ou nunca houve um episódio que permitisse Deus. Este livro tem a memória carregada da memória da dor, da memória de dores continuadas, do pai doente muitos anos, a morte adiada é uma mortalha daquela infância, este homem que tem no tu um desejo está carregado de mortos, dos seus e dos mortos dos outros, os mortos herdados. A morte da avó é um quadro que se constrói a dar-nos a densidade da memória da morte, do que ela faz às pessoas que morrem, às pessoas que ficam – E aquilo acabou. A minha avó (p. 102).
Finalmente, as palavras: dir-se-ia que restam as palavras a uma pessoa cheia de memórias a interromperem o outro, para salvarem a sua proximidade possível, ou para explicarem essa impossibilidade, ou para se pedir perdão, mas cada palavra é também uma memória: é preciso ter medo de algumas palavras (p. 102), as palavras são também o rosto e a voz que a disse, um Hitler a conferi-lhe uma intenção, até essa palavra se tornar inofensiva, e voltar outra vez, a disfarçar o peso daquele rosto e daquela voz, daquela intenção, e crescer de repente com o terror de quem a disse em 1939, no dia em que morreram tantos, à conta da palavra, que agora reaparece numa boca nova. Por isso as palavras estão também cheias de distâncias, há palavras que são sempre murmúrios como outras são sempre imprecações (p. 103), e aqui uma luz imensa sobre este e todos os livros de Rui Nunes: a sua escrita insubordinada, o que ele faz com as palavras, a luta que se sente contra a opressão desta pátria de gramática, porque o que ele quererá, e consegue, é isto: perder as palavras, desorientá-las, destruí-las, desentendê-las, para recomeçar uma palavra que inicie a sua história nos meus lábios (p. 103).
Talvez se consiga com as palavras o que se não consegue com o outro. Nunca se vê o outro: o homem, no quarto, não vê a mulher, a mulher não vê o homem, vê-se sempre o outro perdido noutro qualquer, sem acesso a esse outro, com a raiva de o sentir naquele corpo ao lado. Por isso, a mulher diz, cheia de rancor: acorda, porque me sabe perdido em todos os sinais que te recompõem (p. 108). A história deste homem faz de quem lhe chega perto uma sombra, os fantasmas todos a procurarem na pele ou nos olhos que calhem um lugar para ressurgirem, só numa ficção poderia o homem levar o outro ao quarto e dizer “este é o meu fantasma”, para que uma história começasse ali para os dois ao mesmo tempo, quando ela o visse pela primeira vez, e assim não acontecesse com as pessoas o que acontece com as palavras.
O fim de vida, a velhice, só pode ser um quarto vazio cheio de nomes, salas vazias, e quando a mulher chama pelo seu nome, ninguém aparece, porque o tu nunca se cumpre.
Vou ler este livro o resto da minha vida.

quarta-feira, maio 16, 2007

Página 20 do jornal de hoje:a solidão a fazer notícia

A Palmira vive longe de nós. Palmira, nesta história, é um nome a traduzir outros nomes, sobretudo a solidão, a solidão pode ser o seu nome próprio.
A Palmira passou muitos anos triste por não ter marido, por não ter uma casinha, como as irmãs, como as amigas, como deve ser, por não ter os seus filhos, como manda a condição. A Palmira descobriu tardiamente o viúvo e os filhos dele, um calor que a faz emigrar para uma outra terra, no mesmo país esquecido, longe de nós.
O marido morreu há 19 anos, os filhos dele são dele, e por isso partiram, como o pai viúvo da mãe, morto há 19 anos. A solidão da vida da Palmira tinha um espaço, esse antes de encontrar a porta, o viúvo e os filhos dele, e quando se cruza uma porta assim, tem-se por seguro que nunca mais se regressará ao espaço onde se é uma mulher sozinha, sem gosto ou causa para aquecer a comida, a comida que para ser de uma casa deve ser feita e aquecida várias vezes.
A Palmira regressa à dor de ser uma irmã, não mais a mulher do senhor Joaquim, e as pessoas, muito poucas, que lhe sobram começam a morrer. Pensa na chegada da sua sua hora, um dia em que não haverá quem se lembre dela, uma mulher calada, hoje posta num terreno longe de nós, de onde sai aos sábados para comprar pão e fruta, um silêncio invisível seis dias por semana, e por isso conta no futuro com quem conta no presente, ela, ela apenas. Compra uma campa num terreno seu, no cemitério, inscreve o que um seu sobrevivente deveria inscrever, ou desejar: à memória de Palmira. Paz à sua alma.
Tarda em morrer. Vai tratando da sua campa, onde se vê mais à fente, morta, como agora, uma fotografia oval. Limpa a pedra de mármore e traz flores para a Palmira a pedir paz.
Pode ser que assim não se esqueça dela. Pelo menos ela.

domingo, maio 13, 2007

Ontem não consegui arrancar-te da minha mão

Ontem não consegui arrancar-te da minha mão
Noventa dias idos, visitei o silêncio onde ficou o teu corpo
Um lugar apenas
Muito só, tu, sem nome a avisar uma pessoa, a clamar uma fogueira
Ontem não consegui arrancar-te da minha mão
Uma palavra escrita, a tua mão, pela minha, a assinar este papel
Dir-te-ia agora o nome do poeta que escreve: a mão a assinar este papel
Queria apenas que tivesses sentido o peso da tua mão
A impressão dela num papel
Queria apenas que tivesses telefonado, como nunca fazias
Até ser eu a adivinhar que chegava aquela dor, aquela dor
que descobre sítios inesperados nos ossos
Ou uma outra voz a avisar por ti, queria muito abraçar-te
Noventa dias antes de ontem
Para voltar a abraçar-te hoje, que te soletro cheia de medo
Cheia de medo de te perder
Sem a tua voz a recordar-me dela

quarta-feira, maio 09, 2007

a noite com árvores na boca (Mário Cesariny)

como no verso, a noite com árvores na boca. a casa a entrar pelos teus olhos iluminados na fotografia tua, muito viva, o verde aflito com o sol e com a lâmpada que te avisa da minha entrada. como no verso, a noite com árvores na boca, os teus olhos a reconhecerem o choro dos meus, hoje vindos de outros, muito aflitos, sossegados, quase, até que na boca, pelos olhos cativa, se desenha a frase da minha emigração. como no verso, a noite com árvores na boca, vou chorar, meu amor: estás a chorar, minha querida: cheia de árvores na boca, estou tão cansada, estou tão cansada, estou tão cansada. falasses comigo para dizeres: o teu cansaço é a tua tristeza, eu a responder que a minha tristeza é o meu cansaço, e os olhos de onde venho também iludem com o poder imenso das palavras, o poder intenso das palavras, o poder mortal das palavras: uma frase, a frase, aquela frase, sabes?: sei, dizes, e eu, minha querida vejo uma superfície nas pessoas que é a aceitação desta história toda, até que essa superfície me diz: não existo, mas vais conseguir e um dia vou ver-te de longe, porque de perto não consigo. como no verso, a noite com árvores na boca, o ar que circula contra o meu equilíbrio, este peso a ser soletrado por uma voz tão doce, minha querida, que me não beija, a voz, ninguém me beija, e no silêncio cheio do espaço de um carro projecto-me para trás, lá onde tudo era a dobrar, até entrar em casa e explodir a chorar, nos teus olhos muito verdes, vinda de outros muito azuis, cheia de árvores na boca, a dizer-te, a querer dizer-te que estou tão cansada, tão cansada, tão triste, eu estou tão cansada.

terça-feira, maio 08, 2007

Grito

A única secção do jornal sobre a qual poderia escrever oferece a Diana, lindíssima, a dar aos olhos interessados o fio dental onde se vai pondo os dedos suados; a Andreia, brasileira, com um busto 40, exótica na nacionalidade, coisa boa para o provinciano que as bate todas em português; a caboverdiana mulata clara, que saberá, na sua triste condição, que apetece a muita carteira comer uma coisa dessas; a Alice, que atende para os lados do Campo Grande, afirmando-se pequenina e de seios grandes; a derrotada ex-modelo de “23 a”, a poupar três letras no anúncio; a Marisa com um rabinho pura tentação, pronta para apanhar as bofetadas e os trocos; a gordinha, discreta no superlativo, porque há gente para tudo; a Raquel de Oeiras; ou a senhora portuguesa, a única que oferece a cara como amostra, e ali uma respiração contida, muito contida.
A única secção do jornal sobre a qual poderia escrever recorda-me que a escrita não pode ser apenas bonita, sob pena de ser uma mentira inútil e recorda-me que um dia escrevi a vontade de fazer explodir atomicamente as paisagens que engasgam esta ansiedade de descrever, de descrever a doença, que é sempre a mesma, a solidão silenciosa de tantas condições, e leio mais à frente acerca dos lucros do jornal com estes anúncios e digo: os lucros dos jornais com estas pessoas.
Este é um belo texto?

sábado, maio 05, 2007

Naquele quarto escuro II

O que interessa é que há sempre rosas.
Sempre ouviu da boca de quem usava a sua a mesma frase: o que interessa é que há sempre rosas. Os dias passavam vistos tão de longe que o seu corpo magro ia pelo ar, como uma sombra côncava, para trás, para trás, para trás, enquanto o dia corria, lá fora, distante, longe de si, do seu ser uma pessoa.
O que interessa é que há sempre rosas, dizia-lhe a boca que fechava a noite com a tranca do medo e que caminhava até aos seus lençóis abafando a rua algures e o rasto dos eléctricos do bairro. O dia era uma vida árdua, lenta, demaisado lenta , sem promessa de outra vida, pior, com a certeza de uma mesma morte que sempre se repetia.

- Pousa a boneca.
- Está frio.
- Chega-te ao pé do tio, linda.
- Está muito frio e eu tenho medo.
- Eu não te faço mal.
- Hoje posso não imitar aquela cassete de vídeo?
- Linda, sabes que o tio precisa. Dá cá a mão.
- Eu tenho medo.
- Não chores. Não sejas piegas. Eu não te faço mal.
- Mas ISSO dói!

Apenas para os outros habitantes da casa amarelo gasto a manhã nasce subitamente. Cheira a leite quente com café. Os passos nas escadas são de quem quer que seja até serem os dele, porque esses batem no soalho como batem nas tábuas do quarto de todas as vésperas.

Olha pela porta quase aberta da cozinha:

- Passa-me o pão.
- O que tens?
- Nada, querida.
- Andas distante. Não me recordo da última que demos.
- Não me incomodes. Sabes bem que a enfermaria anda num alvoroço. Um homem não anda sempre de pau feito.
- Estás cada vez mais vulgar. O meu desejo por ti derrete como esta manteiga ao calor.
- E tu estás cada vez mais velha.
- A minha idade não avança sozinha, sabes?
- Pois sinto-me uma criança. Assim como a Mariana. Olha a pequena ali a espreitar atrás da porta.
- Vem cá, Mariana.

(Bom dia).

A dor é a dor do segredo. O segredo projecta-se no lugar exacto onde fixa o olhar aguado de oito anos envelhecidos. Por exemplo: a Mariana fixa os quadrados pretos e brancos do chão da cozinha e espalha a sua memória naquela geometria.

Todos os dias.

Mas não hoje, porque a Mariana morreu de manhã.

quinta-feira, maio 03, 2007

Naquele quarto escuro I

- Despe-te, não tenhas medo.
- Despeço-me?
- Não. Despe-te, fofinha.
- Está muito frio e os meus pés estão azuis, não vês?
- Eu estou quentinho, linda.
- Tens a barba da cor da do meu avô.
- Tenho a barba da cor da do pai natal.
- Não quero.
- Queres.
- Dói.
- Já passa.

quarta-feira, maio 02, 2007

Côncava

Assusta muito conhecer uma pessoa.
Assusta muito que nos conheçam.
Assusta muito que nos assaltem.
Assusta muito a intimidade: a primeira indignação
Chama-se intimidade.
E assusta muito
Os gestos imperfeitos a ganharem uma forma.
Assusta muito recordarem-nos de uma memória curta
Para ter por igual, por idêntico, por normal
O que nesse dia nos atiram, de repente, num gesto perfeito
Com uma forma que tem um nome:
Intimidade
E que assusta muito: dar como sempre
O corpo antes da cabeça, ou da alma,
Do que se queira chamar a isso
A isso que dizemos eu
A que o outro chama de tu
Essa palavra quase impossível
Assusta muito que se escureça a distância
Entre um corpo muito veloz nas curvas
E um tu a que se chega por uma estrada longa
E nessa escuridão sai um gesto perfeito
Com a forma da intimidade
Antes de existir um eu ou um tu
E por isso assusta tanto
Assusta, assalta, ataca
E mata o gesto muito imperfeito
Que ia a caminho, no seu caminho
Da intimidade outra,
Que é esta mais à frente
E que assusta muito.
E que assuta tanto.

segunda-feira, abril 30, 2007

diálogos

acordar a chover, por dentro, e alguma sintonia no frio, numa água muito precisa a bater-lhe no rosto. pensar a vida ou escrever a vida passa por ti, por ela, tão novinha, pela outra, que pena, por um avô a tossir, uma visão, por um centenário anacrónico, pelos tios que não conheceu, deles só as mortes violentas, a marcarem os rostos dos que ficaram, a tuberculose maldita, no norte do norte de um país cem anos atrás, a tia de que lhe fala, adolescente, a morrer tossindo, numa cama aflita, lá onde pão queria significar centeio.
pensar na vida ou escrever a vida passa sempre por um diálogo com os mortos, os conhecidos dela, os conhecidos dos conhecidos, os passos na calçada a ecoarem as caminhadas desaparecidas, nos carris dos eléctricos parece-lhe ver a criança procurar o berlinde, antes de morrer sem ar, tão pequena, uma pena, e tanto ruído calado pelos mortos, com a arma do seu silêncio que é um grito contínuo, abafado, a suportar a imagem, a suportar o calor, a suportar o cheiro a peixe frito da vizinha velha, da vizinha má, da vizinha simplesmente cansada.
pensar na vida e escrever a vida com a voz dos mortos é muito deprimente, ouve, mas deprimente parece-lhe antes não ver a vida cheia de mortos, ou não querer dar por eles, ou não dar som ao seu silêncio. os mortos de cada um, cada um dos mortos, a desenharem as paisagens de manhã, a adormecerem numa almofada paralela à nossa, a viverem, a viverem com muita força entre os nossos corpos.

domingo, abril 29, 2007

Se me surgisses

Talvez – não sei – se regresse um dia ao nosso lugar
Ou: ando aflita a ter por certa essa recordação
Nunca sei dizer se posso amar e parar de recordar
Sei que serias o meu lugar: és o meu lugar a dizer não.
É isto o amor?
Vou beber um copo de vinho que seria branco, contigo
Arranho a língua com os dentes magoados de sangue
e vendo-te muito cansado de te veres em tudo o que sigo
pergunto, muito alto: é isto o amor?
Dizes que sim, e dizes: minha querida. Minha querida?
Começo a chorar, muito choras tu, passo-te o copo sem cor
E a tua boca muita amável acede em beber vinho tinto
Mas eu só vejo a tua boca, que nunca dirá a palavra amor
Por isso procuro a mesma coisa na tua imobilidade antiga
E pergunto, baixinho: pode ser isto, o amor?

quinta-feira, abril 26, 2007

Entras e (não me) sais

Esta dor que sinto hoje, depois de ontem, não é uma dor por dentro,
um sofrimento
é a mesma que se move como uma aflição quando entras por aqui
e me olhas e ficas,
uma imagem: as tuas palavras, enquanto falas, não são uma voz
uma imagem
uma voz, antes, os teus olhos que são os meus, vistos por outro,
há tantos anos,
ébano, os teus olhos, dizia-me.
Esta dor que sinto hoje veio toda do silêncio dos meus olhos,
queimados
E feitos teus
Que bonitos, os teus olhos, pretos de castanhos,
Castanhos quando falas, pretos quando há uma pausa,
Aí, uma queimadura, aquela aflição de que te falava,
Começa a doer com o ritmo de uma aceleração
E sei que não, que não, que não
Sei que te não posso sentir assim
Uma queimadura pelos teus olhos que eram meus há muitos anos
uma dor, quando entras
E me olhas e falas e sentas-te e não dizes nada
Ou tudo calas, de propósito, quando tudo é uma fluência
na tua garganta quieta
Pronta para fugir, para se matar numa língua aflita,
a mentirmos muito, dizendo
Isto é só um momento
E esta dor que sinto hoje, depois de ontem,
que não é uma dor por dentro
Um sofrimento
Tem este ritmo alucinado, uma dor que dói enquanto excita
Ou és tu que me excitas, ou és tu a minha dor,
quando entras por aqui e me olhas e ficas
Depois de saíres
E antes disso, quando estabilizas o olhar
a minha dor a crescer encontra uma porta de medo
Ou um espelho
Ou o medo desse espelho
O meu desejo a perder a postura: o meu medo
Um sofrimento.

segunda-feira, abril 23, 2007

O Verão persegue-te

Gostei muito, leio.
Depois há uma palavra: o meu nome.
Gostei muito soa sem soar e o meu nome dá um grito harmonioso: escrito por ti.
A tua voz surge toda no final da frase que me envias, um nome, as sílabas dele na minha língua a derrotarem quatro fronteiras, a aplanarem uma dor, tu, ou o teu nome, andas a escrever, dizes.
O espaço do que dizes é todo depois do espaço onde aparecem as palavras de hoje, porque andas a escrever: eu posta então nas margens do teu caderno, versos, pergunto, e sei que sim, e recordo já os contornos da tua caligrafia, os versos abandonados, os versos que ficaram, o poema que vai contar uma verdade, numa síntese, as tuas sínteses; gostei muito, leio, e escuto com atenção esta palavra,
essa palavra,
esse nome que me dás no final da frase,
e vejo-te em movimento, a fazeres o que dizes, a tua síntese alongada, sem outra pausa senão a do silêncio, perseguido pelo Verão, dizes.

quarta-feira, abril 18, 2007

Hoje sempre

Uma voz na rádio, de manhã, cheia de silêncio, ou ela uma cabeça a dizer basta, os sons que são imagens, ou falta de vontade, custa muito meter a segunda e a terceira e abrandar e rever o sinal vermelho e dobrar a esquina de ontem, de sempre, de amanhã, custa muito viver.
Uma voz na rádio, um palco para outra voz com a forma de duas mãos em frente, olhadas num acaso, recordadas por acaso, dá-me as tuas mãos que eu trato delas, recorda. O peso dos seus passos é muito, ou é insuficiente, morre ou flutua, já não sabe, arrasta-se, custa muito dizer o que esperam de nós, custa muito aguentar o rímel no lugar, custa muito tanto medo, custa muito viver.
Uma voz na rádio, de manhã, uma esperança, às vezes, um crescendo, uma queda, depois, os fins em todos os começos, custa muito acreditar, custa muito sair do carro, custa muito pensar nas pessoas, custa tanto não chorar, custa muito viver.

terça-feira, abril 17, 2007

Um II

o dia menos frágil, depois de um corredor cumprido todo
ao comprido, cumprido todo,
corredores entrelaçados
e o dia menos frágil, sempre me sentes, como eu,
depois de me sentires a face apenas
diria, ou dizia
enquanto te movias, me movias,
uma história comprida e breve, muito breve, muito longa,
comprida, cumprida,
naquele corredor, nestes passos decifrados
o teu olhar recolhido, o meu grito rendido
e hoje um dia menos frágil

domingo, abril 15, 2007

sobras

Os poros de lã contra os dela, de pele.
Uma frase a soltar-se: dá-me uma dose, dá-me uma dose, só uma dose.
As mãos suaves, a dosearem a raiva, nos ombros desossados.
Dá-me uma dose, só uma dose, só uma dose.
Naquela sacristia, o suor a borbulhar nos poros de lã.
O medo: a sua dose.

quinta-feira, abril 12, 2007

domingo, abril 01, 2007

ainda não é hoje que os ossos saem do lugar deles, tão depositados, ferrugem, aqui, num cotovelo, onde a vontade se encolhe toda a dizer que não quer ler, nem escrever, nem pensar, nem escrever;
uma sinfonia, alguém a construir por eles alguma coisa, a crescer, numa lágrima arrancada a custo o sentido de se ser gente, gente, que esgotada a palavra pessoa;
compassos aflitos, ou não: pausas para a nossa aflição ganhar um lugar.
o vazio.
o lugar.
os anos que faltam encurtam-se subitamente e vê-se uma vida numa régua, muito pequena, e nada a fazer para trás, a doer de fora a brevidade e a incógnita do futuro, ou antes: o presente a esfumar-se numa lágrima arrancada a custo.

um

um assalto, muito doce, os teus passos; não: o som deles, ontem feitos, ao meu encontro.
aquele corredor.
palavras, as tuas, de repente, encadeadas por um olhar que te mata em redor dele.
aquele corredor.
nunca nos sentimos, ou talvez também me sintas depois de me sentires a face apenas.
naquele corredor.

segunda-feira, março 19, 2007

o espaço que fica de onde se parte

parece-lhe por estes dias que todas as perdas são ecos do teu adeus, até perder um autocarro dói, uma frustração a construir uma úlcera, e tanto medo a cobrir movimentos, que medo de atravessar a rua, pensa;
nunca desistirá dela, nem mesmo no dia em que se olha no espelho e vê uma memória apenas, ou menos que isso, ou mais do que isso, as perdas todas a fazerem a curva do seu ombro, a ligeireza dos seus braços, os ossos postos a descoberto quando inspira. nunca dirá chega, isso vêm dizendo tantos, uns passos apressados nas escadas da sua casa, às vezes passos que se tornam domésticos, a prometerem um sorriso, uma esperança, uma pessoa;
sempre se silenciam os passos, fica só um espaço mais abrangente para se chorar, o espaço onde afinal nada, mais uma vez, aconteceu. talvez te pudesse explicar que (sobre)vive-se melhor a arranhar a pele aqui e ali sem promessa alguma que a deixar alguém visitar-nos o avesso da pele, para depois partir, e recordar-nos com violência que somos o que somos e que nada nos salva, ninguém nos salva, ela é uma história de abandonos e derrotas, e às vezes esquece-se de que está sempre em si, e nunca no outro, a saída do inferno.

sábado, março 17, 2007

um dia vou ser mais velha do que tu

distribuir a tua imagem pelas imagens muito tuas, atravessar uma lente, como que pondo o teu rosto sob análise, aqui de afectos, hoje as rugas que no Verão passado descobri, pequenas, a nascerem em redor da tua boca, uns traços quase invisíveis, não para mim, que te olhava vendo-te, é assim que se ama, dir-te-ia agora, ao que tu responderias:
- és tão tu.
vi esses riscos muito submergidos na juventude absurda que era o teu espectro, e pensei que estava ali o anúnicio dos cafés dos Verões de anos à frente, sentadas nas mesmas cadeiras, e então olharia para cortes vincados a empurrarem-te os lábios gretados e confessaria:
- sabes que há vinte anos vi a tua velhice anunciada?, ao que tu responderias:
- és tão intensa.
agora estou aqui sem ti, e às vezes apetece-me não ter cuidado algum com as palavras e dizer como aceitavas sempre que eu dissesse, o mundo é fodido, só que o digo a chorar, porque serás sempre nova, tinhas mais oito anos do que eu e um dia vou ser mais velha do que tu.

domingo, março 04, 2007

até sempre, minha querida

não há como atar à volta do meu coração cordas tão fortes que o agarrem na tua ausência. essa força seria a que o tempo dá à saudade, acalmando-a, mas tu nunca serás uma recordação, minha querida, porque a tua força é seres, mesmo de partida, o mais intenso poema que me visitou, e esse, numa estrada segura, não se dissolve.
talvez se dissolva apenas o verde dos teus olhos no castanho dos meus e o mundo me surja mais sentido; nele uma consciência nova que me consola, onde a tua morte se transforma no amor que ponho com mais força, por ti, e em ti, nos nossos gestos.
obrigada, minha querida. continuamos de mãos dadas.

sexta-feira, fevereiro 16, 2007

Lançamento do "quando uma palavra não basta"

Caríssimos,
Dia 6 de Março, às 18h e 30, estão convidados para o lançamento do "quando uma palavra não basta", cuja apresentação, para meu enorme privilégio, fica a cargo do Professor Fernando Pinto do Amaral.
Espero por quem entenda dar-me a alegria da sua presença.
A apresentação será no Palácio da Independência, no Rossio.

segunda-feira, fevereiro 12, 2007

vê-me III

eu sei que vens cá hoje de noite, assim com o dia nascido
inesperado
o dia assim nascido e o gesto que um sinal de trânsito poderia ter
condenado
eu sei que vens cá hoje noite, e parece-me um pouco salgada a tua visão

(vou mudar de registo)

eu não sei se me vês, aqui sentada a escrever sobre os teus olhos talvez salgados de espanto. eu sei que me comove a recordação do mistério de um vestido branco, feito em vestido cinzento e finalmente a pele que agarra todos os vestidos que entrem comigo nessa porta.
eu não sei se me adivinhas aqui sozinha, se sabes que sabe bem por algumas horas criar um espaço onde parece mesmo que nos aconteceu uma pessoa. eu sei que vens cá hoje de noite e estou aqui, um pouco febril, num tempo estranho em que um pecado me salva.

não perguntemos mais nada, colhe a véspera e nela colhe o dia de hoje, porque eu sei que vens cá hoje de noite; não questiones uma regra que seja porque eu preciso que a minha solidão te comova e que a memória se mexa devagar na tua cruel circunstância; não te escondas, telefonando, eu não temo o teu silêncio, eu entendo a gritaria do teu cérebro, eu sei da aflição pendular desta transgressão.

mas entretanto, mas entretanto, mas entretanto,
meu amor inventado,
passa por aqui depressa

(não temas, não teimes, não tremas)

e permite-nos terminar um quadro.

sexta-feira, fevereiro 09, 2007

hoje nada

que tu entrará na porta que abrirei?
hoje não espero já que esperes veres-me
que tenhas essa alegria inquieta: ver esta mulher a entrar e sentires em mim a palavra tu.
vagueias a poucas distâncias de mim e é tanta a tua emigração
(de mim apenas)
que já não estou ansiosa.
uma raridade a tristeza ser uniforme, ter a densidade disso mesmo, e assim matar não a alegria que me darias, mas a ansiedade que me mata a espera pela alegria perdida.
estou triste. tão triste que talvez acabe o dia a dizer sou triste.
eis que te vejo: uma recordação limitada pelo perímetro do teu corpo; o teu sorriso geometricamente idêntico ao dos dias em que me esperavas, mas nada de verdade nele, ou tudo finalmente de verdade nele.
estou triste. tu também me pareces triste, mas a tua tristeza não tem a única consolação que (me) poderia transportar: haver nela a minha ausência.
como estás?, perguntas. teres de perguntar como estás decompõe a minha memória – lá atrás, tu a dizeres-me estás tão tensa -, e saio da enorme distância do teu abraço a conter a choro que seria perfeito. num outro dia.
hoje, não me resta(s) nada.

quinta-feira, fevereiro 01, 2007

"quando uma palavra não basta"



já começa a circular numa ou noutra livraria este meu livro. agradeço a todos os que me apoiaram a escrevê-lo e, sobretudo, a publicá-lo.

agradeço ao Zé Lourenço ter concedido ao texto o privilégio desta capa: um quadro seu, cheio de força.

sábado, janeiro 27, 2007

podes falar?

podes falar?, escreve.
não há sinal de resposta na longa noite que cresce para ser, no final, uma sombra num lençol apertado.
podes falar?, relê o que escreveu.
encolhe-se com dores numa vértebra, com dores afinal em duas vértebras, com vértebras a dizerem a palavra dor, continuamente. bombas silenciosas, as janelas que desaparecem, a distância entre os seus olhos e todas as distâncias morrem, ou vão morrendo: sobra o mundo inteiro, o espaço onde a resposta não surge, onde as letras de uma simples atenção não acontece, onde a sua solidão não encontrou interrupção.
cega. nada mais para ver. vê o que recorda. existe no cérebro sem odores.
eis as imagens:
podes falar?
naquele tempo, em que a pergunta lhe era dirigida, respondia: claro. sempre. cansada, alegre, triste, ocupada, no inferno, debaixo de um corpo, respondia sempre: claro. uma voz doce surgia no telefone, interessada nela, encantada por ela, preocupada com o que acontecia por dentro de dentro do que ninguém alcança. nesse tempo, essa voz fazia dela uma pessoa. como essas vozes todas fazem das pessoas uma pessoa.
podes falar?
naquele tempo, havia uma voz que não queria terminar o dia sem se assegurar de que ela estaria inteira e era assim que nesse tempo essa voz a fazia inteira.
a voz tinha um dono, uma boca, um rosto, uma expressão, um sorriso, uma delicadeza, uma intimidade que pedia que fosse protegida para sempre, um carinho, um respeito, e agora, e agora, e agora, onde pousa o rosto quem não tem uma pergunta que lhe garante a sua verdade? onde soletra os episódios aflitos que aquela voz entendia quem nem desistindo de esperar por ela e se atrevendo a escrever
podes falar?
não tem sinal de resposta? como pousar a roupa na cadeira em paz com os ossos? não chegando a voz, nada sobra desta história se não dois corpos?
ou um apenas?
não havendo resposta alguma, como recordar uma tarde encantadora de palavras antes de se permitir despida sem a temer em ti perdida?
passou a noite num sorriso melancólico. sem verter uma lágrima. não há qualquer novidade na desilusão. nem na sua banalidade. há apenas, por vezes, a esperança de se ter encontrado alguém que entende verdadeiramente o que é ver o outro. há apenas, por vezes, banalidades bem disfarçadas; e por momentos, por longos momentos, são de uma beleza vertiginosa.
por isso, na realidade, terminada a noite, sempre lhe cai uma lágrima.

quinta-feira, janeiro 25, 2007

por que te tremem as mãos?

por que te tremem as mãos?
a interrogação em que se vê há vários anos, uma pergunta que é um espelho atrás da porta que se não esperava abrir. uma surpresa. não sabe que treme até lhe perguntarem:
por que te tremem as mãos?
não sente esse tremer, pior, não o vê. sabe dele assim, quando um olhar o faz acontecer. tremerá como linguagem do que é uma profunda melodia interior.
hoje talvez precisasse de alguém que lhe cantasse uma canção suave, encostada ao ouvido: ser o som de uma boca o que não é afinal precário. hoje talvez o fim de dia pesasse menos se alguém lhe desse a provar um vinho de um copo usado: ali o sabor interposto de uma língua, sem pedir a dela, sem exigir mais nada.
por que te tremem as mãos?
talvez lhe tremam as mãos porque não tem onde as pousar. talvez por isso os cigarros uns atrás dos outros sejam os rumos tristes de uns dedos sem outros fiéis. talvez por isso lhe tremam as mãos, como lhe treme um outro ser dentro de si, que insiste em negar-lhe um agasalho.

quarta-feira, janeiro 24, 2007

escrever sem medo: ser

entre a verdade e a verdade da mentira: a ficção que ainda é verdade apenas, a minha exposição, o teu temor por mim, que agradeço, o meu cansaço das sombras, o impulso ontológico de ser, de ser assim, de gritar sem medo, de escrever o que pode merecer um enforcamento, a tensão do desiquilíbro de escrever, a morte da omissão.
entre a verdade e a verdade da mentira: eu sou assim. ou: eu preciso de ser assim? digo que não tenho medo, temendo em cada aviso que me me fazes, temo porém muito mais passar por aqui sem ser, sem ousar ser assim, meu bom conselheiro, estou numa vertigem, vem aí um escrito, faço-o como quem tem de assinar uma intimação judicial, sem pensar, um dever, sob pena de ser julgada, aqui, por dentro, por um fantasma que se chama diluição, ou não construção, ou apagamento, da identidade, por isso me lanço, sem inlclinações, sem meditar no risco, seja o que deus quiser, o canto de cisne, ou o encanto de uma vida que mereça a pena, por isso me lanço, entre uma lágrima e um sorriso, a tremer e a erguer-me, sempre instável, sempre viva, isso, é por isso, assim estou a pulsar, está a pulsar, uma presença dentro de mim, maior do que a dor que me encurralou naqueles tempos, e pode ser que me amem na minha ousadia, e pode ser que me amem na minha dor, e pode ser que me amem nas minhas agressões, e pode ser que me aceitem, e pode ser que me acolham, entre a verdade e a verdade e a verdade, pode ser que perca a raiva à cegueira colectiva, pode ser que outros se consolem por vizinhança, e pode ser que perca o medo de mim, e pode ser que vingue a tese da coragem de se ser como se é, assinando sem outro medo que não o de nós mesmos e enfrentando-o assim mesmo: soletrando-o.

terça-feira, janeiro 23, 2007

no sítio onde não soas

dormir de tarde e fazer do princípio da noite uma manhã. o método sem remédio dos remédios para chegar aqui sem a tua voz. o espaço onde não há o sinal de existires – de existir para ti – chama-se a minha casa: está deserta de tantos sons sem conteúdo a ameaçarem a utilidade de um cérebro a que me rendi. uma dor na nuca a pedir que mude de posição, o corpo torto no sofá, uma sepultura filha de pais incógnitos, uma terra de ninguém, o lugar incerto dos mapas minuciosos. as estantes cheias de poemas a poderem dar movimento ao areal em que (e)s(t)ou, nada, escorrem as horas e rendo-me à programação que for, ela é só uma casca de ovo, eu uma gema circular, a circular, a entristecer, a envelhecer. nem um som, sinal algum, um escrito, uma preocupação, um amor inventado, sem urgência, uma sabedoria; nada, é noite, uma fadiga penosa, os meus hinos à noite, e ontem conheci uma pessoa qualquer, e ontem morreu um cão que por aqui passava, e há três dias não deste conta de que cuspiste a palavra adeus quando eu partilhava um episódio importante, e na semana passada uma oliveira milenar foi demolida para se erguer uma casa; frases estas a tirarem-me pelos olhos outros deste espaço que não tem sequer a poesia da desagregação; estou inteira, um bloco, duro, resistente, de solidão compactada. perguntar se estás bem é dizer-te que estou a descontar o tempo que resta da minha paz por magoar. preciso de um beijo, já não do teu, preciso de uns braços, lembrei-me dos dele, da sua pele sempre macia, do seu corpo harmonioso, da sua ausência agora mesmo, lembrei-me dos braços do outro que me confessa que seriam meus, não fosse a doença que tem, lembrei-me dos meus braços, passei a língua num vinho azedado e entrei na insanidade que é conjecturar o cenário em que te diria tudo o que te vem faltando ouvir; depois lembrei-me de uma menina a morrer há muitos anos, invadiu-me a imagem de uma criança que se excitava com nove anos sem saber que magia era aquela que lhe aquecia o sexo, depois vi-te feito demónio a invadir o sexo de uma menina desaparecida.

domingo, janeiro 21, 2007

espelho teu

tem calma, dirás?
um frio inesperado: descobrir a mácula do amor.
o frio no quarto do hospital tem a culpa dessa face obscura do amor.
quem permite ver-se amado assim é um tirano disfarçado.
(cambaleante, está a desamar-te).
este frio tão repentino, sombreado de mágoa; que serei para ti que não um espelho?
espelho teu, espelho teu, dois pregos caídos nesta cama, os meus braços sem préstimo, a tua crepitação, a tua respiração ofegante a revogar o medo da meia-idade.
fazer do outro um espelho é despotismo, espelho teu, espelho teu.

quarta-feira, janeiro 10, 2007

como o sentires: assim o mundo

as coisas não estão assim tão negras, minha linda.
eu digo-te isto e não creio em nada do que os meus lábios vão mentindo. queres lá saber se a descrição das imagens, mesmo com sangue nelas, é outra que não um cume cheio de gelo; dirás, como Rimbaud, acredito que estou no inferno, por isso estou nele. vou talvez parar esta boca tão social a querer agarrar-te e dar-te uma outra voz, essa já percorrida na vizinhança da verdadeira realidade: outra há que não a que sentimos? não, pois não, minha linda, e recordo bem a estrada velha de sintra cheia de curvas nos únicos momentos de irreais rectas; então poderia acelerar o carro, o meu corpo ficaria intacto, diria a geografia, mas eu acreditava que estava numa tão precisa curva, por isso estava, que fazer se não travar a fundo, antes que morta, e pior que um corpo dilacerado é um cérebro assustado.
as coisa estão negras, minha linda, se assim o dizes. fala-me desse mundo negro para que foste atirada, chora o que te obrigar a dor e mata sem piedade quem se atrever a dizer-te louca.

sábado, janeiro 06, 2007

liberdade breve II

parece que sim, que se oferece a um carrasco que diz:
já te digo qualquer coisa.
parece que sim, que o dia todo valeria nada sem essa maldade
por que se espera, sempre, e para sempre,
em cada tão magoado e adiado minuto
parece que sim, um barulho seu nas escadas, uma linha de pó
inalar-te sem espelho por baixo, ou tu o espelho,
mas só quando sais e se recorda em ti o que posta lá não foi assim tudo
parece que sim, uma doença que se ausenta num tempo breve
o passeio em liberdade, a resignação ao que possa ser
possa ser um coração menos apressado, uma paz neste palc0
já te digo qualquer coisa, parece que sim
meu amor

vem

não sei se haverá amanhã contigo, nem se sabes que tenho o túmulo que chama uma morte sem agonia, nem se sentes que andas seduzido pela morte errada, nem se entendes que falo de túmulo para te dar um outro lugar para morreres, nem se ouves o que te escrevo, isto que te salva, por trás de cada linha, uma presunção, este túmulo a chamar por ti amanhã e o meu rosto depois uma linda lápide.
não sei se haverá amanhã contigo, sei que me expando hoje de noite para essa possiblididade, sem saber se o aviso de que estás doente quer dizer que não há amanhã contigo, como um barco, prefiro pensar, que não perde o destino à conta do farol, vem ter comigo, estou a pedir, sem o som da tua adesão, sem a certeza de que estás comido pela mesma condição, eu espero que haja amanhã contigo e que morras neste túmulo um pouco cavernoso até que haja amanhã contigo e que possamos morrer a morrer.

sexta-feira, janeiro 05, 2007

retrato

este rosto que vês hoje, assim sem deixar adivinhar que sou magrinha
não sei bem como o vês: talvez nas tuas pálbebras um espelho, e o meu olhar trema como as mãos, assim triste, assim excitado, assim calmo, assim morto, assim a nascer
(para ti)
este rosto que vês hoje passou todo nas minhas costas
e ontem - imagina - os meus dedos não aqueciam, na cama, uma insónia à conta de dedos frios
uma agonia em extremidades
mãos frias, mãos mortas

vai bater àquela porta

não dou pelas mudanças - digo - excepto ontem e hoje, que as sinto todas
esta calma desconhecida, este vazio de ansiedade
este silêncio de medos
fosse uma pele cheia de cheiro a fazer-me assim, hoje tão ondulante,
mas sabes bem que não, que não, que não:
rendi-me.

terça-feira, janeiro 02, 2007

nos últimos dias

um agrafador une-te a este saco apertado, entre a garganta e o umbigo, fora e dentro, como o teu movimento
e lá fora, bem (lá) fora da minha cabeça, escuto com vaga atenção o cão rafeiro que tinha um nome.
ainda não deste por esta película, tão bonita a tapar o teu buraco, o meu buraco, o que fiz de mim: nos últimos dias.
aquele ganir mansinho que o jackie não abandonava, uma orelha meia comida por uma lepra de cão, o medo que ele tinha de ser apanhado em cima da cadeira dos casacos: saltava de repente e fugia encolhido, com uma pata que nasceu já sem uso a abanar deficiente.
e eu...naquele tempo...não chorava.
passei a mão nas escadas e senti os passos que não tens dado nelas; bati à porta de uma vizinha velha e disse-lhe: vim aqui desejar-lhe um ano de merda e continue a caluniar-me que eu gosto.
um sol de janeiro a acalmar uma margem qualquer, as pálbebras tristes do meu cão ressuscitado, um lenço nas minhas mãos trémulas e um sorriso só a olhar o paredão:
é que eu... naquele tempo...não chorava.

segunda-feira, janeiro 01, 2007

eu te digo

eu te digo, o primeiro dia é um amontoado de terra, escura, fria,
cá de baixo respira-se a ouvir o som de uma guitarra, ao longe um piano a ampará-la
(a amparar-me)
eu te digo, o primeiro dia decompõe em humidade tudo o que era seco no lugar certo, está a pesar, tanta terra, eu vou, já te digo onde porei os meus olhos...
contei todas as pedras de dois metros de calçada, os passos da minha infância, os gestos da tua agressão, os teus dedos a isolarem a unha que traça o corte, um risco, um risco quase fundo e tão arriscado cuspir a merda toda que os pratos da bateria explodem por mim …
eu te digo, o primeiro dia junta no céu a saudade do amor e o grito aflito de prazer, a histeria em que fica o corpo depois de se perder o ar…
arrumei a roupa da cama e descobri uma mancha tua, cheia de séculos, uma cicatriz nos meus lençóis, a pedir um luar que lhe dê menos insanidade…
eu te digo, eu vou tomar banho e enrolar o cordão do chuveiro no pescoço para te sentir passado com uma gaja nua de pescoço atado, antes que sem ar de vez, depois, eu te digo, um espelho, um gelado de laranja por vinte escudos, no fim de dia de praia, e afinal uma mulher já feita, posta para aqui a olhar para o que resta de ti, uma mancha na minha cama, mais morta que merda de pombo,
ou pegar numa fotografia e antes dizer:
eu nada te digo e esfrego-me na tua mancha e devolvo-lhe cheiro e passo-me numa pátria de loucura, a dimensão do teu esquecimento, a aflição do teu recado, eu vou, sem te dizer, eu a rir sem parar, enquanto me esfrego toda, a rir sem parar, i know some day you´ll have a beautiful life, a cantar, a gritar, é assim que me passo…
havias de ver.