terça-feira, julho 29, 2008

Desilusão

Ela pecou sempre por idealizar o outro. Por isso o outro sempre lhe surgiu como cumpridor e leal. Ela projecta-se no outro e faz do outro o que em si é o peso deste juiz interior e que lhe dita não trair, não mentir. Não faltar para com o outro. Eis a história da sua relação com o outro.
O outro não é o eco do nosso projecto interior. Quase nunca. Quando se marca em episódios essa evidência há uma queda na realidade que se chama desilusão e que sangra muito. A cabeça gira, mata-se em memórias de frases ditas, episódios vividos intensamente, pelos vistos só por um outro, e as costas pregam-se no chão, mas à frente do nosso corpo.
Ela lembra-se de há sete anos atrás, esse número maldito e por estes dias invocado: agora tudo é límpido. Os amigos silenciosos nunca foram amigos, nunca telefonaram, nunca apareceram, tudo esqueceram, porque não eram o outro. Recorda o dia em que prestou uma prova difícil e em que olhava para trás à procura de algum dos outros para ver se se via e neles a sua identidade: não estava lá ela nos outros; não estava lá ninguém.
Ficou apenas uma promessa, uma palavra de honra, silenciada e quebrada. Pelo outro inexistente. Lembra-se do N. e pensa: ironize, ironize.
É evidente que chora. É evidente que se chora.

quinta-feira, julho 10, 2008

Sonhos II

Um amor vindo de longe interrompe-se por um amor vindo de uma distância um pouco menos distante. Dilui-se a imagem do primeiro e arranha a pele dos braços para inverter a diluição. Não consegue e por isso recorre ao vício de um terceiro homem, pedindo: beija-me para que todos se afastem e com eles o medo de morrer amando. Ao fundo, uma andorinha desenha a sua vida no céu negro e azul, sem uma nuvem branca que acuda a sua desesperança. O amor antigo ressurge e tem um nome. Começa a chorar e encosta os braços ensanguentados nas costas que conhecia tão bem, tão bem, e diz: ajuda-me a amar sem medo. Ou: beija-me para que o vício do terceiro homem se dilua e com ele o medo de nunca emergir do pântano que é um pânico e que se chama morte lenta nos braços de ninguém. Começa a chorar e encosta os braços ensanguentados nas costas que reconhece tão bem, tão bem, e diz: eu.

quinta-feira, julho 03, 2008

Sonhos I

Uma cápsula por pessoa. Sete anos no seu interior para acordar numa ilha para um jogo.
Estaremos vivos, ouve-se.
Acorda e diz: tenho quarenta anos.
Ao mesmo tempo alguém que nunca a lê risca algumas palavras do seu livro. A caneta é vermelha. O jogo começou e sem dar por isso chega ao fim. Três pessoas a expulsarem-se mutuamente. Pensa: quem morreu, entretanto? Uma voz: o Pedro, o teu pai e sim, ela.
Escreve uma mensagem a um médico e pergunta se sete anos justificam outro tratamento.
O medo não morreu.