segunda-feira, abril 30, 2007

diálogos

acordar a chover, por dentro, e alguma sintonia no frio, numa água muito precisa a bater-lhe no rosto. pensar a vida ou escrever a vida passa por ti, por ela, tão novinha, pela outra, que pena, por um avô a tossir, uma visão, por um centenário anacrónico, pelos tios que não conheceu, deles só as mortes violentas, a marcarem os rostos dos que ficaram, a tuberculose maldita, no norte do norte de um país cem anos atrás, a tia de que lhe fala, adolescente, a morrer tossindo, numa cama aflita, lá onde pão queria significar centeio.
pensar na vida ou escrever a vida passa sempre por um diálogo com os mortos, os conhecidos dela, os conhecidos dos conhecidos, os passos na calçada a ecoarem as caminhadas desaparecidas, nos carris dos eléctricos parece-lhe ver a criança procurar o berlinde, antes de morrer sem ar, tão pequena, uma pena, e tanto ruído calado pelos mortos, com a arma do seu silêncio que é um grito contínuo, abafado, a suportar a imagem, a suportar o calor, a suportar o cheiro a peixe frito da vizinha velha, da vizinha má, da vizinha simplesmente cansada.
pensar na vida e escrever a vida com a voz dos mortos é muito deprimente, ouve, mas deprimente parece-lhe antes não ver a vida cheia de mortos, ou não querer dar por eles, ou não dar som ao seu silêncio. os mortos de cada um, cada um dos mortos, a desenharem as paisagens de manhã, a adormecerem numa almofada paralela à nossa, a viverem, a viverem com muita força entre os nossos corpos.

domingo, abril 29, 2007

Se me surgisses

Talvez – não sei – se regresse um dia ao nosso lugar
Ou: ando aflita a ter por certa essa recordação
Nunca sei dizer se posso amar e parar de recordar
Sei que serias o meu lugar: és o meu lugar a dizer não.
É isto o amor?
Vou beber um copo de vinho que seria branco, contigo
Arranho a língua com os dentes magoados de sangue
e vendo-te muito cansado de te veres em tudo o que sigo
pergunto, muito alto: é isto o amor?
Dizes que sim, e dizes: minha querida. Minha querida?
Começo a chorar, muito choras tu, passo-te o copo sem cor
E a tua boca muita amável acede em beber vinho tinto
Mas eu só vejo a tua boca, que nunca dirá a palavra amor
Por isso procuro a mesma coisa na tua imobilidade antiga
E pergunto, baixinho: pode ser isto, o amor?

quinta-feira, abril 26, 2007

Entras e (não me) sais

Esta dor que sinto hoje, depois de ontem, não é uma dor por dentro,
um sofrimento
é a mesma que se move como uma aflição quando entras por aqui
e me olhas e ficas,
uma imagem: as tuas palavras, enquanto falas, não são uma voz
uma imagem
uma voz, antes, os teus olhos que são os meus, vistos por outro,
há tantos anos,
ébano, os teus olhos, dizia-me.
Esta dor que sinto hoje veio toda do silêncio dos meus olhos,
queimados
E feitos teus
Que bonitos, os teus olhos, pretos de castanhos,
Castanhos quando falas, pretos quando há uma pausa,
Aí, uma queimadura, aquela aflição de que te falava,
Começa a doer com o ritmo de uma aceleração
E sei que não, que não, que não
Sei que te não posso sentir assim
Uma queimadura pelos teus olhos que eram meus há muitos anos
uma dor, quando entras
E me olhas e falas e sentas-te e não dizes nada
Ou tudo calas, de propósito, quando tudo é uma fluência
na tua garganta quieta
Pronta para fugir, para se matar numa língua aflita,
a mentirmos muito, dizendo
Isto é só um momento
E esta dor que sinto hoje, depois de ontem,
que não é uma dor por dentro
Um sofrimento
Tem este ritmo alucinado, uma dor que dói enquanto excita
Ou és tu que me excitas, ou és tu a minha dor,
quando entras por aqui e me olhas e ficas
Depois de saíres
E antes disso, quando estabilizas o olhar
a minha dor a crescer encontra uma porta de medo
Ou um espelho
Ou o medo desse espelho
O meu desejo a perder a postura: o meu medo
Um sofrimento.

segunda-feira, abril 23, 2007

O Verão persegue-te

Gostei muito, leio.
Depois há uma palavra: o meu nome.
Gostei muito soa sem soar e o meu nome dá um grito harmonioso: escrito por ti.
A tua voz surge toda no final da frase que me envias, um nome, as sílabas dele na minha língua a derrotarem quatro fronteiras, a aplanarem uma dor, tu, ou o teu nome, andas a escrever, dizes.
O espaço do que dizes é todo depois do espaço onde aparecem as palavras de hoje, porque andas a escrever: eu posta então nas margens do teu caderno, versos, pergunto, e sei que sim, e recordo já os contornos da tua caligrafia, os versos abandonados, os versos que ficaram, o poema que vai contar uma verdade, numa síntese, as tuas sínteses; gostei muito, leio, e escuto com atenção esta palavra,
essa palavra,
esse nome que me dás no final da frase,
e vejo-te em movimento, a fazeres o que dizes, a tua síntese alongada, sem outra pausa senão a do silêncio, perseguido pelo Verão, dizes.

quarta-feira, abril 18, 2007

Hoje sempre

Uma voz na rádio, de manhã, cheia de silêncio, ou ela uma cabeça a dizer basta, os sons que são imagens, ou falta de vontade, custa muito meter a segunda e a terceira e abrandar e rever o sinal vermelho e dobrar a esquina de ontem, de sempre, de amanhã, custa muito viver.
Uma voz na rádio, um palco para outra voz com a forma de duas mãos em frente, olhadas num acaso, recordadas por acaso, dá-me as tuas mãos que eu trato delas, recorda. O peso dos seus passos é muito, ou é insuficiente, morre ou flutua, já não sabe, arrasta-se, custa muito dizer o que esperam de nós, custa muito aguentar o rímel no lugar, custa muito tanto medo, custa muito viver.
Uma voz na rádio, de manhã, uma esperança, às vezes, um crescendo, uma queda, depois, os fins em todos os começos, custa muito acreditar, custa muito sair do carro, custa muito pensar nas pessoas, custa tanto não chorar, custa muito viver.

terça-feira, abril 17, 2007

Um II

o dia menos frágil, depois de um corredor cumprido todo
ao comprido, cumprido todo,
corredores entrelaçados
e o dia menos frágil, sempre me sentes, como eu,
depois de me sentires a face apenas
diria, ou dizia
enquanto te movias, me movias,
uma história comprida e breve, muito breve, muito longa,
comprida, cumprida,
naquele corredor, nestes passos decifrados
o teu olhar recolhido, o meu grito rendido
e hoje um dia menos frágil

domingo, abril 15, 2007

sobras

Os poros de lã contra os dela, de pele.
Uma frase a soltar-se: dá-me uma dose, dá-me uma dose, só uma dose.
As mãos suaves, a dosearem a raiva, nos ombros desossados.
Dá-me uma dose, só uma dose, só uma dose.
Naquela sacristia, o suor a borbulhar nos poros de lã.
O medo: a sua dose.

quinta-feira, abril 12, 2007

domingo, abril 01, 2007

ainda não é hoje que os ossos saem do lugar deles, tão depositados, ferrugem, aqui, num cotovelo, onde a vontade se encolhe toda a dizer que não quer ler, nem escrever, nem pensar, nem escrever;
uma sinfonia, alguém a construir por eles alguma coisa, a crescer, numa lágrima arrancada a custo o sentido de se ser gente, gente, que esgotada a palavra pessoa;
compassos aflitos, ou não: pausas para a nossa aflição ganhar um lugar.
o vazio.
o lugar.
os anos que faltam encurtam-se subitamente e vê-se uma vida numa régua, muito pequena, e nada a fazer para trás, a doer de fora a brevidade e a incógnita do futuro, ou antes: o presente a esfumar-se numa lágrima arrancada a custo.

um

um assalto, muito doce, os teus passos; não: o som deles, ontem feitos, ao meu encontro.
aquele corredor.
palavras, as tuas, de repente, encadeadas por um olhar que te mata em redor dele.
aquele corredor.
nunca nos sentimos, ou talvez também me sintas depois de me sentires a face apenas.
naquele corredor.