terça-feira, novembro 17, 2009

a coisa mais difícil

- eu sei o que vejo no espelho, sabes? demorou, mas eu sei o que vejo no espelho, entendes?
- parte-o, dizes.
é a mim que pedes que caia. eu, em pedaços, num chão de azulejos antigos.

quinta-feira, novembro 12, 2009

impulso

recebi a tua mensagem e tive muita pena de ter uma marcação com cabelos curtos
(ela está um grito)
não te enviei uma verdade: a minha mão pousada sem culpas e o teu cabelo comprido
(ela seria um abismo)
vou embora como se te pudesse abraçar: também a tua maturidade a ver-me decrescer
(nunca seremos)

quarta-feira, outubro 21, 2009

da intensidade

olha fixamente a mãe, esconde um coração que marcou cento e cinquenta num papelinho, cruza os dedos já sem peles, olha fixamente a mãe e diz: eu não quero falar nisso, nisto. tem uma análise mortal diante de si e insiste: eu não quero pronunciar-me sobre isto. chegou o tempo de não ser a minha vez; chegou o tempo de mudar de interlocutor.
fecha os olhos e senta-se, com 10 anos, no cimo das escadas. o pai pediu-lhe que falasse sobre o texto que escrevera na escola. muito bem escrito, filha. mas passa-se alguma coisa contigo? estás triste? por que é que descreveste com tantos pormenores uma pessoa a morrer lentamente nos braços da melhor amiga? viste alguma coisa na televisão?
este é o primeiro episódio. da sua intensidade.

domingo, outubro 18, 2009

parecendo um regresso

anda pela casa quando tu, meu amor, finalmente foste embora. chama-te de meu amor pensando no quadro que viu contigo, da Paula Rego, que se chama precisamente "Amor" e por isso inscreve-te naquele olhar, na sua história, uma tragédia: amem-me, sim?
anda pela casa, repousa um pouco, hesita quanto ao seu plano secreto, dele nada soubeste estes dias, fala ao telefone, grita o que te ocultou num sorriso hora após hora, grita, grita, grita. vai à cozinha e vê a sua mão decidir da escuridão daquele espaço: quanto tempo de vida, esta mão?
o seu corpo está quase imóvel. porém, rodou o pescoço e viu um vestido de noiva.
hoje o seu corpo seria outro.

quinta-feira, julho 23, 2009

O meu adeus à Faculdade de Direito

Tinha 23 anos e entrei na sala de aula, isto é, há 10 anos entrei na sala de aula e ninguém me seguiu, uma aluna, pensaram, voltei atrás e disse: entrem, entrou a minha primeira turma, tinham 18 anos, hoje são tão mais velhos do que eu era então e sabem tão mais do que eu sabia então, olhei-os e pensei: a minha primeira aula. Hoje, tenho naquela sala amigos.
Nos meus 10 anos na Faculdade de Direito, na Clássica, como se diz, o que me entrou no sangue foram momentos, gestos, sons, dos alunos e dos funcionários, das telefonistas: o aluno que ficou uma hora e meia a ser interrogado no 1º ano, frágil, forte, parecia um candidato a mestre, a debater-se com a sabedoria e a ciência de anos de leituras, e tinha só 18 anos e teve o 17 que nunca se atribuía; a aluna do sul, aflita com a frieza da exigência de tantos livros em tantas disciplinas em simultâneo, com medo de desiludir os pais, sentada num banco a chorar a sua distância, tão jovem para desistir, tão fácil uma palavra, que ninguém lhe dava na pressa dos corredores, na urgência da competição, os olhos mais doces que conheci, dizia assim: ó professora: e chorava sem som, até conseguir ser o que é, capaz e sensível, combinação difícil naquele curso; a filha que foi estudar amedrontada, inteligente sem saber disso, e então o pai foi estudar com ela, fui professora dos dois ao mesmo tempo, uma ferida a sangrar água, que acabou bem por isso, que acabou tão bem; a romântica multifacetada que fez metade do curso com dores de cabeça crónicas, sem desistir nunca, tinha uma beleza dos anos vinte e vestia-se de preto, como quem sabe literariamente o que é a dor; o desarrumado mental, irrequieto, nervoso, com bons instintos, que estudava de véspera, que me irritava em cada 10, sempre a pedir para entrar atrasado para mais um cigarro, a bondade a sobrar-lhe na cara; os tímidos crónicos; o timorense sorridente, perdido no português, corajoso nesta emigração, com o seu sonho de voltar à pátria com um saber para servir; o rapaz mais sucinto que conheci, com olhos de quem vê 110%, pouco interventivo, infalível no 14; os alunos da noite, uma espécie de heróis, chegados dos seus empregos, vindos de dois ou três transportes para um curso destes, com uma maturidade que o dia desconhecia, sem tempo para reivindicações, perguntava-me a que horas estudariam.
São só exemplos de milhares de pessoas, pessoas, pessoas, gravadas na minha memória. No anfiteatro 1, enquanto o Regente falava, perdia-me a olhar para cada rosto, ano após ano, imaginando a vida de um, o futuro de cada um ali começado, às vezes ameaçado.
Depois, os funcionários. No início, as senhoras que guardam os livros das assinaturas das presenças iam às salas de aula, por isso conheciam os alunos que diziam: bom dia senhora tal e tal. Depois passaram a estar amarradas a uma cadeira. Ficaram tristes com isso. Como sou ansiosa com as horas, chegava sempre muito antes das minhas aulas e ficava para ali a falar com as senhoras dos livros das assinaturas. Guardo com um respeito e carinho enormes a vida que me confiaram nas suas palavras. Também me agarrava o cansaço, muitas vezes, o sorriso pronto e muito audível das senhoras do bar: então, doutora, como lá um bolinho! Pessoas tão boas.
O Direito constitucional e o Direito internacional público, para mim, foram essencialmente pretextos. O que eu queria era comunicar. Chegar àqueles jovens, àquelas pessoas. Ter a certeza de que dava por eles. Agora que me vou embora, espero apenas ter conseguido. Obrigada a todos os Professores, colegas, funcionários e alunos que marcam para sempre a minha vida.

terça-feira, julho 07, 2009

que chegasses

e se agora chegasses, vindo de uma montanha e me dissesses: a tua vida vai ser sempre assim, às vezes uma alegria, todos os dias uma chuva imensa, sem abrigo, mas aqui estou eu. e se agora chegasses, vindo de uma cabana junto ao teu rio e me visses e nada tivesses a dizer ou tudo me dissesses com o teu silêncio: os teus olhos um espelho e eu segura, as minhas lâminas na horizontal, nem uma gota de sangue, os teus olhos eu, eu azul. e se agora chegasses, vindo propositadamente do aeroporto e me desses a mão ou pousasses as mãos na minha cabeça alucinada e eu pressentisse o teu pressentimento e a tua a força para não chorares comigo. gostava muito que chegasses, um passarinho, que chegasses.

domingo, julho 05, 2009

N.

vem a ouvir um som, isto é, uma música, à esquerda o mar, dirás: uma merda porque aqui. seja. eu hoje cheguei a casa inteira porque pelo caminho me desfiz para me contruir outra vez no meu ponto de exclamação: "quanto te penso é a mim que retorno". eis uma confissão tantas vezes escrita se é que alguém lê estas palavras: decisões. tem saudades do gesto um dia começado, paraste-o, mas ainda senti que não tens película alguma que o tempo faz pousar nos lábios, tenho essa saudade, como a do dia em que morreste derrotado num gesto inteiro.

sexta-feira, junho 26, 2009

(Re)ser

É a dor física que a faz ser ou ter um corpo. Tem uma dor de dentes e diz: tenho boca. Tem um pêlo encravado na perna e diz: tenho pernas. Ou então o sinal de uma memória aflita no esquecimento e diz: eu naquela pessoa, naquela dor. A dor pode ser passageira, não interessa, isto é, há um golpe, um dia, uma semana, um mês de vida que nos fez num outro corpo, noutra boca, noutras pernas. Ou sobretudo: sob um outro olhar. Visita um elevador uma vez por ano, um elevador lento, com demasiadas paragens, formigas que entram, que saem, e senta-se num canto. Levanta-se e parece-lhe encontrar um olhar numa porta quase fechada. Não se lembra daquela pessoa, mas antes dela a ser olhada por aquela pessoa: uma mão: uma voz: um sorriso: um gemido: um elogio: um desejo: uma maldade: tão depressa: tão depressa: ela: tudo isto: demora um segundo. Vira-se para a frente. Vai em frente.

Por dentro do silêncio

E fez-se o silêncio. Numa cadeira de napa as articulações das suas mãos tremiam, dobravam-se, um, dois, três, a dizerem-se envelhecidas, cansadas, uma unha partida na ansiedade com que fechou uma porta. Sente o suor nas suas costas ou o suor sente-a, desenha-a, um corpo demasiado usado, magro, chicoteado, em tempos abraçado, posto aqui, ali, na cadeira de napa. Leva os dedos aos olhos, limpa as lágrimas e arruma deus num lenço de papel desfeito em excreções, deus enrolado nas duas mãos pousadas agora, então, no seu colo em escamas. Pensa de si: sou uma pobre: olha, levanta a cabeça contra a rigidez muscular do pescoço, olha para a janela e observa uma árvore, mas quer ver uma ponte, um penhasco, um avião, um prédio de oitenta andares, um cabo em cima do mar, a árvore é-lhe imprestável. Diz: vou ter uma semana lixada. Diz: vou ter um dia lixado. Ouve: mais uma etapa da sua vida. Pensa: a minha vida um cigarro ou ela por entre as argolas de fumo. Desmaia no sofá sem amor, começa a sangrar e sonha com o pai.

quarta-feira, junho 24, 2009

Os Olhos de Himmler - Rui Nunes

É preciso viver uma vida inteira para se escrever este livro. Viver uma vida com o nome das coisas, definindo as coisas, definindo condições – como a pobreza: “a minha história, ou a falta dela, torna-me um pobre, entre muitos, porque os pobres são aqueles a quem a história abandonou e, por isso, estão sempre a inventá-la, não há quem mais histórias conte do que os pobres, embora toda a gente diga: isso é mentira. E com esta frase cheia de maldade tiram-lhes o que ainda lhes resta: a pobreza” (p. 30) – insurgindo-se contra o efeito de captura que a linguagem quase sempre tem. Rui Nunes, como o próprio diz, “estilhaça as palavras” (in JL Ano XXIX/Nº 1010 de 17 a 30 de Junho)
Este livro, escrito com gosto, oferece-nos um enigma. Começa numa viagem (I) a do homem principal que ainda desconhecemos o nome, uma viagem sem desígnio senão o do breve passo seguinte, por um rio acima, um homem velho, derrotado pela sua história, e pela natureza: os seus bichos, a sua escuridão, ou o sol, e logo no início o enigma dos seus olhos fechados e de não sabermos de quem são estes olhos velhos que súbito se recordam soldado a pontapear uma mulher. Este homem chama-se homem, isto é, chama-se Andreas e continuará a sua viagem num outro sentido, mais adiante.
Assim é, porque o enigma prossegue para um segundo capítulo – com a tua sombra abre na luz a porta (II) – que aparentemente paralisa a caminhada de Andreas. Aqui encontramos uma mulher idosa, num lar, junto a um rio, o rio Traisen, que nos situa na Áustria, a conversar com a sua filha, que vimos a descobrir ter o seu nome (p.22), duas mulheres de nome Greta, perdidas num diálogo só aparentemente alucinado: a filha, quase numa oração, suplica à mãe que decifre as frases soltas que o leitor entende não serem de alguém senil, mas de uma memória magoada a perseguir um nome. Nessa memória magoada Rui Nunes começa a construir talvez da forma mais definitiva a sua relação com Deus, essa ausência inevitavelmente repetida, na busca de um sentido, que ele sabe não existir: “uma mentira dia a dia partilhada” (in JL, cit.): por isso a mãe diz: “na verdade há um Deus em cada época da vida, um Deus que é a nossa sombra, uma sombra cada vez maior, tão grande que, muito velhos, só a vemos estender-se à nossa frente, um dia de sombra, uma vida, minha filha todas as tardes vejo a tua sombra a alongar-se” (p. 27).
Há um ódio àquela gravidez que sabemos dever ter ocorrido pelos anos vinte do século passado, e uma primeira referência à casca de uma laranja na p. 15, que vai ser um elemento sensorial fundamental do enigma. Que nomes escondes, mãe?: pergunta insistente a filha. A mãe esconde o nome Andreas e os encontros de anos de abuso com esse homem com nome de homem. O primeiro encontro surge na p. 34, relatado pela mãe, no qual Rui Nunes decompõe essa memória destruindo as palavras até à minúcia dos poros de uma pele, porque Rui Nunes vê o mundo por uma lupa e força as palavras a seguirem esse percurso e, nisso, é magistral.
Entramos no terceiro capítulo – A Viagem – onde apesar de Andreas continuar o seu percurso rio acima, largado à sorte da minúcia do que a beira de um rio pode fazer a um velho, interiormente faz um percurso ao contrário, à sua vida passada, Riga, Riga, Riga, ouve-se, e ficamos a saber que esteve na Letónia, lugar de horror na segunda guerra mundial.
No quarto capítulo – quem? Pergunta quem – as revelações da mãe Greta são mais intensas. O abuso de Andreas é agora nítido e nele a “estranheza no nome de Deus” (p. 44) e nele a filha pequena observante na porta entreaberta. Neste capítulo inicia-se a osmose do cenário da mãe e da filha e do percurso de Andreas. Neste último, há muito de Rui Nunes, como em todos os seus livros: “às vezes sente que há cidades que o procuram” (p. 48); “Deus (…) Esta palavra, às vezes digo-a. E fico mais só. É uma palavra tão só” (p. 50); “eis o problema do amor: suicidar-se pela repetição de um nome”. (p. 54); “nunca houve um país que sentisse meu” (p. 57).
Andreas faz fisicamente o seu caminho até ao lar, mas psicologicamente há uma regressão aos horrores de um passado nazi, dos campos de concentração, da sua participação no massacre de Mizocz, aos amontoados de mortos, a uma mãe morta, fuzilada, à frente do seu filho. De quando em vez, a casca de laranja. Enquanto isso, Greta pergunta retroactivamente numa fúria de quem é esta coisa na sua barriga e há sempre a voz que lhe dói de Andreas: não é uma coisa, é um filho. Começa a fazer sentido a repulsa por aquela criança. Os corvos são pontuações de lembranças, de nomes que passam a ter rosto, de pessoas assassinadas na guerra, Andreas, agora velho e chegado ao lar, lembra-se de algumas mortes. É sobretudo na recordação de Mizocz que os olhos de um homem, os olhos de Andreas, são finalmente os olhos de Himmler.
No último capítulo – Thalassa, Thalassa – Andreas e Greta, a mãe, estão juntos no mesmo lar, não se reconhecendo. O homem que destruiu aquela mulher terminou a sua viagem e está instalado na casa do desespero da velha que persegue o seu nome nos diálogos que a filha não entende. Cada um deles regressa ao seu passado. Ela ao cheiro ao laranja que é sempre o vestígio imagético do abuso, ele às suas mortes, ambos pontuando as recordações com a metáfora dos corvos. Há o dia em que Greta reconhece a besta através da janela e anuncia à filha a sua morte. A filha insiste, em desespero, quer saber que nome esse que a mãe persegue. A morte por uma vez significará Deus. E debaixo de uma árvore Andreas afaga o cabelo da velha que se encolhe em todo o seu ódio ouvindo as frases do seu passado de abuso, ainda que não reconhecida. Andreas conhece o seu fim trágico às mãos de Greta num grito de alegria metafórico de quem vê finalmente o mar.
O assombro deste livro é a sua imensa humanidade, é a fluidez de um enigma que se vai decifrando numa vida que se vive lendo o livro, porque assim é a vida também, sem a facilidade de uma narrativa alinhada pela evidência. O assombro deste livro é a sua sabedoria, em cada passo da viagem de Andreas, em cada passo do diálogo de Greta, as provocações sobre a linguagem, sobre Deus, o sofrimento, os nomes, o papel da memória, o peso dos mortos na história de cada um, o delinear da diferença entre ver e olhar, tudo isto é escrito e inscrito por um escritor superior e fica-nos, no final, a certeza de que é preciso viver uma vida inteira para se escrever este livro.

segunda-feira, junho 22, 2009

lâminas

a tua voz já não me adianta nada: diz. a tua voz adoece-me: insiste. mata a confidente, isto é, mata-a nessa qualidade, para mantê-la viva, ainda que uma sombra ao fundo do peso das suas lágrimas à hora do almoço: és uma sombra. tem duas gavetas na cozinha prontas para uma outra confidência, não as abre, pensa em abri-las, num derradeiro segredo, a bomba atómica da sua dor, recua e tem a memória de uma mistura simples: o seu corpo e uma onda quase fria. mas a tua voz já não me adianta nada. cala-te: grita: deixa-me aqui: doente: murmura. a ansiedade trepa-lhe pelo coração acima, vence-lhe a garganta, quando cinco crianças lhe sorriem com idades para se recordarem dela.

quinta-feira, junho 18, 2009

Grijó de Vale Benfeito

Há dias em que as pessoas não são elas, mas a sua história. Uma sombra caminha primeiro atrás de cada passo, larga, duplicando o corpo do homem, depois a sombra ganha a dianteira e diz: o teu passado é o teu presente e o teu dia de amanhã: há dias em que um homem regressa à cidade mais próxima da sua aldeia, pode ser Bragança, para doar a sua biblioteca, ao seu lado estão muitos filhos, a mulher, nove netos, mas depois de percorrida a biblioteca com os seus conterrâneos, o homem solta uma enorme sombra à sua frente: gritam as vozes da senhora Maria, do senhor José, enche-se-lhe a boca de bôla de azeite, murmuram o pai e mãe que emigraram da aldeia para Lisboa: o meu filho vai licenciar-se e a minha filha também: morrem hoje mesmo os cinco filhos do seu avô, levados pela tuberculose, sobraram três, nenhum era analfabeto. Uma sombra enorme faz este homem de oitenta e seis anos, nos seus olhos as lágrimas das viúvas dos homens vivos daquela terra de emigrantes. Ruma à sua aldeia e contempla numa Ave-Maria o túmulo dos seus pais, pobres, mas nunca humildes, vai aos restos da casinha onde nasceu, os netos pequenos assistem a tudo com os olhos muito abertos: este é o nosso avô.

sexta-feira, junho 05, 2009

Apatia

O que me leva a escrever um texto não é o resto de chocolate profilático entalado entre a unha e a carne ou a descrição disso mesmo, isto é, o que me leva a escrever um texto é precisar de carregar um papel branco de sílabas pretas, interrupções da apatia, correr por entre palavras, uma mulher magra a contornar a chuva, é o que me leva a escrever um texto como o que te escrevi hoje em meu socorro, travada pela distância de duas línguas, pela distância do silêncio, o tempo do meio de comunicação, não ter a tua resposta, ou sequer um dos teus rostos, as tuas mãos um dia esmagaram-me, eis-me deserta num espelho temporal que só pode dizer de mim, o que me leva a escrever um texto não é o ardor de uma pele que se arrancou ferindo a carne, há antes o barulho, o mergulho no Danúbio e um olhar apreensivo porque me perdeu por instantes e disso só eu me lembro, isto é a solidão, e neste momento pensar numa bicicleta a percorrer Lisboa com a fome de não percorrer uma pessoa é a apatia a subir e a descer num vestido sem alças, dizia desculpa, de vez em quando, episódios leves agora numa unha limpinha, episódios pequenos, agora, esvaziado o Danúbio, embarco para Roma e vejo três inocentes mortos, abraço uma coluna do Panteão e grito: quero, regresso a Lisboa, que cidade tão bonita, um horror, dizes-me, um passarinho na tua mão, eu só tenho uma pátria, tem três andares e uma salinha, onde me sentei à hora do almoço, nem uma pessoa, tantas pessoas, uma vida, a minha, não inscrevi uma lágrima que fosse neste texto, sentei-me ali, na minha pátria, apática.

quinta-feira, junho 04, 2009

tristeza ténue

há uma tábua lisa sem arestas que se vai fazendo com morangos pelo caminho. há uma televisão decomposta pelas imagens de quem a vê. essas imagens fazem parte da tábua lisa sem arestas que se vai fazendo e dela também fazem parte os morangos pelo caminho. num período de tempo alargado que se chama sorriso o fumo de quinze cigarros diários não fazem do ar um canalha corrompido, tudo é transparente, há uma tábua rasa lisa sem arestas que se vai fazendo com morangos pelo caminho.
mas a televisão ganha o rancor dos outros que se sentam com o outro ao nosso lado. o outro são os outros dele. “ouve-se sempre a distância numa voz”.

terça-feira, junho 02, 2009

Movimento pela igualdade no acesso ao casamento civil

Decidi juntar-me ao MPI por duas razões: por convicção e por dever cívico, razões que andam de mãos dadas. Tenho a convicção profunda de que há uma injustiça, uma imoralidade, grave, na sociedade portuguesa, a que o Direito civil português tristemente dá cobertura e a que urge pôr fim, para bem não apenas dos visados, mas para bem de todos. Tenho a convicção profunda de que um dos factores pelos quais se mede o estádio de civilidade de um país é a forma como o mesmo trata as minorias, pelo que acabar com o triste imperativo que resulta de uma lei datada pela homofobia e que podemos traduzir no mandamento dirigido às pessoas do mesmo sexo vocês não podem casar é melhorar a sociedade, e do contrato social de que todos fazemos parte. Trata-se de criar uma sociedade mais justa, mais livre e mais solidária, imperativos de um Estado de direito.

Decidi juntar-me ao MPI por dever cívico, porque aprendi desde cedo que nós não somos sem o outro, pelo que não podemos continuar a viver as nossas vidas como se uma massa anónima de murmúrios sem nome não nos incomodasse, eles, aquelas pessoas, que por acaso têm nome, existem, são pessoas, pessoas só, às vezes pessoas sós, na sua condição, com direito a serem pessoas por inteiro na sua dignidade, o primeiro princípio constitucional, pessoas a quem a lei, em nome de preconceitos hoje inadmissíveis, quer do ponto de vista constitucional, quer do ponto de vista moral, quer ainda do ponto de vista político, afasta do acesso a um bem, a um direito fundamental, o casamento, que tem consequências práticas e que tem um peso simbólico de inclusão do outro na normalidade dos conceitos.

Este movimento é ainda muito importante porque, insisto, está em causa um direito fundamental, pelo que a questão devia ser simples de resolver, na senda da Holanda, da Bélgica, do Canadá, da Espanha, da Noruega, da Suécia, da África do Sul, ou dos cinco Estados dos EUA que já nos tomaram a dianteira, a questão é fácil de colocar e tem uma resposta muito clara se a virmos na sua simplicidade. No entanto, sabemos que há quem não entenda que é mais importante discutir a imoralidade do mandamento tu não podes casar do que um alegado conceito histórico de casamento aliado à procriação, ou as alegadas consequências ditas inevitáveis da nossa proposta como a poligamia ou mesmo - por que não? -o casamento entre pais e filhos, entre irmãos, eu diria até com animais, os argumentos terroristas que servem para desconversar e que são cegos a experiências como a da nossa vizinha Espanha onde o mundo não acabou, antes pelo contrário, onde o mundo continuou melhor, mais justo, mais solidário. Está aqui em causa uma questão identitária, ao contrário desses devaneios terroristas. Ninguém cometeu um erro, ninguém é, como se presume, um erro. Os homossexuais são pessoas por inteiro, sãs, como outras quaisquer.

Hoje, evidentemente, seria um atentado à autonomia individual pretender-se que o casamento tem por finalidade a procriação: só tem filhos quem quer, só tem filhos quem pode, casa quem quer. Mas é importante perceber que está em causa o acesso ao casamento civil, instituição estadual com século e meio, alheia a legítimas concepções religiosas ou outras. Em todo o caso, como curiosamente explicam os Professores Pires de Lima e Antunes Varela, o que há século e meio esteve na génese da proibição do acesso ao casamento civil por parte de pessoas do mesmo sexo foi entender-se não ser possível a comunhão plena de vida entre essas pessoas . Isto é homofobia pura. Pura e simples. Ignorante e cega à realidade de milhares de casais que existem, que fazem as suas vidas, que pagam impostos, mas que não são nós, são eles, são aqueles.

Não se pretende impor qualquer visão do casamento às pessoas de sexo diferente; mesmo que o casamento tivesse por finalidade a procriação, que não tem, não impediria o casamento de pessoas que não podem ter filhos; o facto é que a lei nega toda a especialidade do casamento sem filhos seja porque motivo for, isto é, nada há, em termos de regime, de especial nessa circunstância; e mais importante, esta desconversa da procriação é uma visão utilitarista das pessoas hoje, como já referi, inaceitável à luz da autonomia individual. De resto, alguém no seu perfeito juízo pode supor que mudando o casamento as pessoas vão ter menos filhos? A verdade é que se confunde casamento com filiação. E a verdade é que se esquece que os homossexuais têm filhos.

Hoje pedimos que se tome consciência de que os direitos fundamentais, enquanto expressão da dignidade da pessoa humana, garantem ao indivíduo um espaço de não intervenção alheia, querendo aqui chamar-se a esse espaço uma moral colectiva maioritária, ditada ou votada, decidida ou eleita, que lhe não permitisse esse acontecimento único que é ser-se, em liberdade, o que se é. Por isso mesmo, contra direitos fundamentais não valem, sem mais, maiorias, sob pena de se funcionalizarem os primeiros; é por isso, também, que os direitos fundamentais, sendo a asserção mais efectiva nas liberdades e nas competências, como é o caso, não admitem e devem resistir ao discurso do que diz a maioria sobre o comportamento a ele associado, ou do que é, conjunturalmente, a vontade parlamentar. Mais: é ainda pelo que se vem afirmando que as liberdades e competências, fortemente ligadas à dignidade das pessoas, não têm de esperar pelo consenso social para terem plena efectividade. Nesse sentido aponta-se uma vocação contramaioritária dos direitos fundamentais. Quer-se com este passo recordar que numa ordem constitucional fundada na dignidade da pessoa, à qual o Estado se subordina, quando um direito expressa claramente uma liberdade ou uma competência que inscrevem o titular num universo de seres livres e iguais em dignidade, só por razões muito ponderosas, excepcionais e com claro apoio na Constituição pode o legislador afastar uma categoria de pessoas daquele direito.

É, pois, absolutamente inadmissível qualquer tentação referendária sobre o direito de acesso ao casamento civil por parte das pessoas do mesmo sexo. Isso seria totalitário.

Pura e simplesmente, à luz do que referi, não é moral ou juridicamente aceitável retirar um bem a um grupo de pessoas sem razões para isso. E não há razões para isso. Razões, amigos, razões. Não há um interesse constitucional ou moral contrário a ponderar com vista a um resultado diferente do que aqui defendemos. Não há.

A sociedade prefere pensar que os homossexuais podem existir desde que não chateiem, desde que não apareçam nessa condição, desde que se disfarcem. Ignoram o sofrimento dessa condição de invisibilidade e não fazem o exercício sobre si próprios. Experimentem. Gostava de propor o exercício a um homem ou a uma mulher heterossexual casados. Experimentem imaginar o momento em que se apaixonaram. Não poderem expressar publicamente o vosso afecto. Eventualmente a vossa família não vos aceitar. Condicionarem cada gesto de expressão de um sentimento. Num momento de crise viverem a mesma apenas com quem compreenda que o amor que sentem não é aceite por parte da sociedade. Quererem casar, exteriorizar a vossa relação perante terceiros, aceder a esse bem jurídico e social e esbarrarem com uma lei que vos diz que vocês são anormais para o efeito. Experimentem o exercício.

A questão é que o Direito vai à frente no derrubar das discriminações em matéria de direitos fundamentais e não espera por consensos sociais. A não ser assim, não tinha acabado a escravatura, não se tinha consagrado o sufrágio feminino, não tinha permitido o casamento inter-racial, que ainda nos anos sessenta, nos EUA, conhecia sentenças que temiam pelos filhos de uma tal aberração, e o próprio casamento não teria mudado radicalmente nos últimos cem anos no sentido da igualdade entre homens e mulheres e da facilitação do divórcio. Deixou de ser casamento? Não. Tal como na vizinha Espanha, quando tivermos a decência de acabar com o mandamento tu não podes casar, o casamento dos católicos continua incólume, cada pessoa casa com a sua concepção intocável, simplesmente há mais um grupo de pessoas com acesso a esse bem, pessoas silenciadas anos e anos, criminalizadas até há trinta anos, tidas por doentes até há vinte anos, mortas por regimes totalitários, que foram de humilhação em humilhação levantando a cabeça até a momentos como o de hoje onde todos possamos parar de dizer eles e possamos de uma vez por todas dizer nós.

domingo, maio 31, 2009

Sobreviver

Em nenhum dos textos há uma novidade, nem no interlocutor, mãe, neste texto há a novidade da dimensão da tragédia. O corpo sai da cama e move-se em direcção a um lavatório onde se questionou algumas vezes, sente a água fria a começar-lhe o dia e parece que vai sobreviver. Há uma rapariga, uma mulher, que lá atrás era a criança que prometia crescer feliz a seu lado. Há essa mulher. Entra na sua casa, experimenta um vestido, fuma um cigarro e ela vê as formas dessa mulher marcadas por uma vida que correu afinal a milhares de estradas da sua, com filhos, com um homem ao seu lado, a mulher que chama de meu amor, meu amor, meu amor, (se soubesses dos meus cabelos presos a esta toalha), mas a mulher sai e vai à sua vida. Ela vai trabalhar e tem uma nova hormona no corpo que lhe trocou as voltas aos pensamentos, sempre foi muito sensível às hormonas, sempre foi uma explosão hormonal, senta-se e a colega em frente começa a desaparecer no nevoeiro da sua tragédia, que se anuncia. Uma dor mortal no peito induzida pela sua inimiga indegolável, uma dor aguda, precisa, às vezes difusa, com uma voz clara, um mandamento: acaba com isto. Cala-se na mágoa que se mostra mais uma vez tantos anos passados e cala-se duplamente porque desta vez a voz não tem causa possível, parece-lhe. Caminha por um corredor, morde a boca, ocorre-lhe arrancar um pouco do lábio num golpe para escoar tanto veneno, contém-se, assume a sua corajosa teatrologia e avança, minuto a minuto, segundo a segundo, acaba com isto, acaba com isto, fazes assim, agora mesmo, vai para casa, seria assim, seis anos disto, já chega, ela envelhece de um quarto em um quarto de hora até a sua tragédia explodir por todas as extremidades do seu corpo e foge para a casa onde cresceu até nascer a voz.
Dobra-se como uma vírgula num sofá e em vez de sangue deixa caírem lágrimas silenciosas pela sua cara, acalma-se ligeiramente, fala com uma pessoa, faz planos finais, entristece-se no adeus a cada parede da sua infância, chega o fim dia e pede ajuda. Começa a gritar. Os pensamentos ramificam-se por linhas que nada têm de ténues, são linhas de aço, são guias precisos da sua realidade próxima, são a sua vida, a sua certeza, o seu horror, a sua tragédia. Não consegue escapar-lhes.
É socorrida e vai jantar. Sorri por fora e vê a realidade paralela daquele jantar com uma cadeira vazia. No dia seguinte, a memória da tragédia da véspera é tão forte que não sabe como dizer estás boa?às amigas de infância que fazem tanto da sua história e que rodeiam uma mesa. Estou viva, pensa. Atreve-se a partilhar o que sente. E amanhã?, pergunta.

quarta-feira, maio 20, 2009

ser feliz

encontrar uma pessoa e ser feliz ponto de exclamação já chega de morrer todos os dias. adormece, no entanto. sua a sua história: forçam uma entrada no casino do Estoril e uma conta bancária esvazia-se sem fazer uma aposta, alguém joga por ela, alguém num grito estridente mata-a numa roleta. acorda ainda a dormir e viaja para um bar, está a suar, aflita, olhando o novo homem, pronta para o beijar, é tempo de ser feliz ponto de exclamação há um véu de pó branco entre os dois e cai de costas num colchão molhado de muita gente, sua gente. volta a acordar e abraçam-se, respira e vai ao cinema, isto passa, isto vai passar, a noite cai e faz-se dia numa praia no sul de Espanha, sem espaço para a sua toalha, familiares que a não reconhecem e os lobos numa terceira semana de Agosto ficaram lá desde uma longínqua segunda semana de Agosto, está cercada, vai morrer? continua a suar a sua tensão, a sua vida, é tempo de ser feliz ponto de exclamação chega, basta, saiam daqui.

quinta-feira, maio 14, 2009

Janela

As unhas amarelas da lixívia agarram o canto de uma janela que fica no canto de um prédio caro. Estranhamente é a sua casa nova. A mulher da ilha de São Vicente tem uma casa nova e diz-me adeus sem som algum. Talvez tenha escutado na distância dos meus passos o rasgar do seu sorriso, por uma vez o pano de pó limpa uma sala que sei sua e no centro de Lisboa, cara, não sei como conseguiu aqueles vizinhos. As unhas amarelas da lixívia são de uma senhora transportada do Barreiro para aqui, ela própria um subúrbio, abrem-se dezoito janelas em seu redor e gente com madeixas loiras pensa que a mulata é a criada de uma nova inquilina e não ela a nova inquilina. Levo pão, queijo e uma garrafa de espumante. Não se faz por enquanto som algum, insisto. Desisto, por segundos, de ir ao seu encontro, para fazer do seu sorriso e do meu, a cem metros de distância, o nosso encontro. O vento rouba-lhe o cabelo alargando-lhe o sorrido, acena-me com a mão e eu retribuo.
Eis uma mulher rodeada de janelas a fazer-se uma janela.

quinta-feira, maio 07, 2009

Maria

Lentamente afasta-se de um rosto insuportável. Entra no elevador, carrega no andar de sempre, mas não desvia o rosto do espelho e nele encontra uma história a diluir-se. Diz: felizmente. O rosto pestaneja todo com os olhos e de cada vez uma morte, duas mortes, várias mortes, e a eternidade de Deus a sobrevoar as promessas do passado. Saber que Deus não teve nada a ver com as linhas quase invisíveis e para ela tão vincadas, em redor dos olhos, mas saber que Deus é a ausência a que mais se apelou, a mais culpada. Há um gemido, um som vulnerável, quando apanha o cabelo e pronuncia um nome. Despede-se lentamente do peso que vem sendo a sua casa e expõe-se ao peso de se libertar desse peso. O novo peso é a construção do amor. É esse o som que a desequilibra entre dois andares, desvia-se do espelho e diz: já não me chamo Maria, esse nome que não é de ninguém. Adeus e a Deus, fica nela o conhecimento de um novo nome. Decompõe o medo durante o dia, às vezes curva-se e diz quem sou eu?, sabe já não ser Maria, abriga devagar uma nova identidade, abraça-a com coerência, mas sem ter pendurado um novo espelho. E já escreveu: o amor é uma dor. Ou não seria.

segunda-feira, abril 27, 2009

memória olfactiva

Estamos a viver o presente e dizes vamos fazer com que isto dure. Quando o dizes tens um odor na tua frase e quando te escuto é hoje, e parece uma impossibilidade que exista um amanhã que faça da tua frase uma relíquia pisada por odores que se mexeram pelo espaço do teu som em tempos que são de repente ontem, um novo hoje, a fazerem de ti antigamente e mesmo assim, às vezes, diluídos numa parede de azulejos falsos ou perdidos nos acordes de um violoncelo o teu rosto quando a porta se abria; o que tens? Desapareces e um pingo de chuva acerta-lhe em cheio na ponta do nariz, reapareces quando o lambe na descida para os lábios, há um homem que lhe assegura recordar-se do seu cheiro a dois metros de distância, a três anos de distância, e há um homem que não usa senão o cheiro que a pele lhe empresta. Estamos a viver o presente e dizes vamos fazer com que isto dure, não dói absolutamente nada, tens a distância das cidades gregas, és o advérbio antigamente, mas rasgas a memória de uma rapariga que não gosta de quem vive bem com uma condenação à morte sem pedir a palavra.

segunda-feira, abril 20, 2009

praia grande

quem se não lembra do precipício apanhado num instante e de cair num golpe sem misericórdia e de finalmente sobreviver por acaso, depois de engolidos pela onda pesada, inteira, sonora, velha? quem se não lembra de temer morrer e ainda assim arriscar uma paralisia nas carreirinhas que tínhamos como as mais perigosas do mundo? assim se apanhavam ondas, na praia grande. haverá e sabe e soube que há quem se lembre e quem saiba o que é acordar a apanhar uma onda de medo a crescer para um gigante de pânico que nos leva em pensamentos mais velozes do que os métodos que nos ensinaram para os controlar. haverá e sabe e soube que há quem se lembre e quem saiba o que é cair a pique e sentir a dor do embate no corpo, a morte anunciada no pensamento, gemer-se no fundo da areia a dizer-se adeus, para repentinamente vir-se à superfície. ainda a tremer recorda-se o que seja: o sonho da véspera – a rapariga morta ao fundo do corredor emoldurada por uma porta, sentada a sorrir para ela –; a voz que se escuta com atenção a recordar-lhe que a sua luta é maior do que a luta contra um cancro. ou então vive-se uma história: canções que lhe recordam dois ouvidos funcionais, músicas a encherem um automóvel, músicas que fazem a caminhada de uma mulher descoberta nos acasos da sua vida. ou então luta-se e reencontra-se uma pessoa e apanha-se assim uma onda suave até terra firme, alguém que lhe conhece uma sorriso juvenil, anterior a todos os lobos, anterior às carreirinhas assassinas, uma mesa e duas mulheres, às vezes um tremor, às vezes um aviso na ponta dos dedos, mas vence a cumplicidade da memória do afecto que se faz presente e diz-se, no fim: obrigada. luta-se, luta-se, luta-se: caminha de gatas, encharcada, com areia no cabelo embaraçado, até ao início da areia húmida, ainda não seca, mas pelo menos já húmida, e encontra-se o desenho de um sentimento. a parede de pânico quer empurrá-la para trás, mas luta, luta, luta e diz: vou abrir a caixa do correio. haverá e sabe e soube que há quem se lembre e quem saiba o que é.

quarta-feira, abril 15, 2009

a voz

está escuro. a voz que escuta com mais atenção surge-lhe num corpo colado ao dela, que se dobra como dentro da mãe. começa a chorar uma solidão de vinte anos. chama pela voz que escuta com mais atenção.
- não o queria acordar.
- isso é irrelevante.
- são vinte anos a ouvir essa voz e eu preciso tanto dela aqui e agora a sufocar-me com braços e pernas, a não permitir uma desintegração.
- eu gosto muito de si, muito, isso não é uma consolação?
- é, há vinte anos que a voz que escuto com mais atenção é uma consolação, mas a solidão infectou-me os ossos, a pele, a cabeça, agarre-me, passe-me as mãos pelo cabelo.
- eu não conheço esses gestos.
- e se eu morrer antes de a sua voz morrer?
- é esse o meu medo. mas não se morre quando se é amado.
- por uma voz.
- por esta voz.
- não morra.
- sobreviva.
- venha viver comigo.
- eu vivo num país que não existe. e numa casa que também não existe.
- está a doer menos. sabe? alguém pediu pela minha palavra.
- a sua palavra é o seu poder. o seu caminho. o de uma alegria cheia de lâminas.

terça-feira, abril 14, 2009

decide vestir uma batina preta, sentar-se num confessionário, e esperar pela palavra.
fosse através de quadradinhos de madeira, rendilhados a esconderem a sua face, fosse assim.
decide vestir uma batina preta, sem fazer de deus ou de representante de deus, decide apenas um teatro facilitador.

sexta-feira, abril 03, 2009

2 de Abril: nota pessoal

A 25 de Abril de 1974, o Movimento das Forças Armadas, coroando a longa resistência do povo português e interpretando os seus sentimentos profundos, derrubou o regime fascista.
Libertar Portugal da ditadura, da opressão e do colonialismo representou uma transformação revolucionária e o início de uma viragem histórica da sociedade portuguesa.
A Revolução restituiu aos Portugueses os direitos e liberdades fundamentais. No exercício destes direitos e liberdades, os legítimos representantes do povo reúnem-se para elaborar uma Constituição que corresponde às aspirações do país.
A Assembleia Constituinte afirma a decisão do povo português de defender a independência nacional, de garantir os direitos fundamentais dos cidadãos, de estabelecer os princípios basilares da democracia, de assegurar o primado do Estado de Direito democrático e de abrir caminho para uma sociedade socialista, no respeito da vontade do povo português, tendo em vista a construção de um país mais livre, mais justo e mais fraterno.
A Assembleia Constituinte, reunida na sessão plenária de 2 de Abril de 1976, aprova e decreta a seguinte Constituição da República Portuguesa:
Escrevo na primeira pessoa e considero que apesar de o relógio apontar já para o dia 3 de Abril, psicologicamente ainda estamos no dia 2 de Abril. Ainda não adormeci. Há 33 anos foi nasceu a Constituição actual e há 33 anos nasci eu, por ironia do destino hoje uma docente de Direito constitucional. Nas minhas aulas fazemos a brincadeira de perguntar o que é que de importante aconteceu no dia 2 de Abril de 1976. Naturalmente, foi aprovada a Constituição, que tem este preâmbulo cujo valor jurídico dá discussão para meia aula. Hoje, fala-se muito na Constituição: deve ser revista; é muito complexa; é asfixiante em matéria económica; em bom rigor, deveria ser substituída por outra; há mesmo quem já tenha um projecto de Constituição com menos de 20 preceitos; é velha; já foi usada e abusada; tem mesmo de ser mudada! Já lá vão 33 anos... Eu gosto dela, a sua complexidade não me assusta, acho que bem lida é muito mais aberta do que se diz, acho que nos serve. Sobretudo, parece-me que os problemas que inquietam as pessoas que falam em rever ou mudar de constituição continuariam a existir caso conseguissem levar a sua avante.
E eu? Eu preciso de ser revista. Ontem fui operada a um rim. Saí do Hospital, muito frágil, para os meus amigos, muito fortes. Mas preciso de ser revista. 33 anos. Vou descansar. Já volto.
Um dia destes.

segunda-feira, março 30, 2009

lobo

chegou ao fim, finalmente. sábado de manhã o seu corpo perdeu as forças. a sua inimiga indegolável defendeu-se e fez-se em células, para dormir, dormir, dormir. nos sonhos o homem é um lobo, pergunta por ela à sua mãe, quer saber, como é que está a sua filha?, depois mistura-se com a face do criminoso, inala uma linha de coca, o lobo que a matou, volta às vestes do criminoso, pousa na sua cama e sorri, e mata-a, como todos os lobos, também ele nos diálogos passados com pele de cordeiro, antes de ser lobo, lobo mau, lobo mau, onde vais, onde vais?
vai para a casa da sua infância, janta na cozinha, olha de lado a gravata do pai, encolhe-se toda na sua dor, pensa que partilhou tanto, mas não as sua bulas perdidas na gaveta, a sua doença, olha de lado a gravata do pai, que é como quem diz o colo do pai, vê o pai pestanejar enlouquecido com a sua morte, começa a chorar, lobo mau, lobo mau, foge para a copa,
mãe, desculpa, esta dor que nasceu comigo, mãe, abraça-me para sempre, esta dor que ninguém conhece, mãe, socorro, o meu cancro foi acordado, lobo mau, lobo mau, deixa-me adormecer, adeus, mãe, adeus, mãe, o problema não é o lobo, é o que o lobo me recorda, mãe, mãe, mãe.

sábado, março 28, 2009

manhã de sábado

dança, dança, dança, um copo de água tónica na mão, o seu gin a fingir, dança,dança, dança, um milhão de mosquitos colados à sua pele, um milhão de beijos tentados, dança, dança, dança, acende um cigarro proibido, pensa: como terei sobrevivido a este dia, ao meu cansaço?dança, dança, dança, nunca olha para o relógio, lembra-se da véspera, cola os pés ao chão
(a minha magreza)
dança, dança, dança, às vezes, muitas vezes, o medo de um surto de medo, dança, dança, dança, mas também alegria
(na minha fragilidade)
dança, dança, dança, ri perdendo o ar, dança, dança, dança, o seu amigo, está feliz por não cair, está feliz por se não ver na sua dança o seu cansaço, dança, dança, dança, pensa: terei forças para um volante? dança, dança, dança, a pensar no cansaço de amanhã.
é sábado de amanhã, mete a chave na porta e diz: fui eu que entrei.

sexta-feira, março 27, 2009

dedos

- não me lembro de isto estar aqui, nem isto nem aquilo.
- como não?
- não te via há dois anos.
- como não?
- não dás pelo tempo?
- não dou por mim.
- o que te aconteceu?
- no ano passado lembro-me de um aniversário a dormir.
(reconhecer o espaço que é um pessoa: cabelos, nariz, boca, peito, pernas, cabelo, olhos; reconhecer os movimentos que fazem uma pessoa: uma mão a afastar a franja, o peito a suar sobe desce sobe desce, duas pernas a empurrarem um prazer, o olhar seguro a reconhecer uma mulher)
- estás igual, sabes?
- não dei por nada. dois anos, dizes?
- estás cansada?
- não.
(dar atenção ao tempo naquele quadrado, fazer do espaço um ensaio de tempo, dez unhas a comerem umas costas revisitadas dizem meia noite e meia, mas também dizem um sorriso de três minutos, ou um grito de trinta segundos, muita atenção nos dedos entrelaçados que foi todo o tempo de todos os gestos: as mãos dele)
- eu estava apreensivo e tu foste como que ontem.
(os olhos dela nos dedos embrulhados)
- também eu.
- por que olhas tanto para os meus dedos?
- porque estão livres. porque estão livres.

quinta-feira, março 26, 2009

depois do jogo

não sabe. sabe. sempre soube. não sabe. ou: não investiga e só sabe depois, e depois diz sempre soube. hoje quando descobriu o que sempre soube passeou por uma rua difícil, vestida de branco, um bom amigo agarrava-lhe o braço. sorria o calor da tarde, ela sorria o calor da tarde e explicava: a minha memória anda tão mal, tão mal, ontem recordaram-me ao jantar de coisas minhas, soltaram-se gargalhadas, eu ri muito, não me lembrava de nada, depois apanhei um táxi.
não sabe. sabe. sempre soube. não sabe. um restaurante e um amigo bom. tinha saudades deste amigo. uma mesa, dois copos, dois pratos, peixe cru, peixe cru, uma pessoa crua, não esta, a diluir-se como um pedaço de arroz no molho de soja, por cima desse corpo palavras inteiras, corpos inteiros, por isso, sem a ameaça do toque, e a confissão dela. uma borboleta na janela, branca como o vestido dela. conta, conta, ouve-se. mas talvez já não se lembre. porque não foi o que foi, porque era para ter sido um caso único e não um episódio desportivo.
- passa-me a manteiga.
- passa-me a bola, disseste?

segunda-feira, março 23, 2009

depois do incêndio

a casa está desarrumada, por exemplo: umas meias do avesso a dizerem o gesto que foi despi-las, uma mulher cansada à beira da cama desequilibrou-se e quase caiu, lá viu as pernas e a sua pele que é muito lisa. a casa está desarrumada, por exemplo: um vestido caído no chão, recorda-se hoje já maquilhada de se ter virado na véspera para um espelho e de ter visto umas costas magras e uma fotografia possível, um princípio de nádegas, um princípio de atrevimento. a casa está muito desarrumada, por exemplo: hoje o edredão não diz que dormiu só no cantinho esquerdo da cama, e o fumo dos cigarros da sala confessam que se não deitou à primeira, andou de um lado para o outro, muitos copos, muita água, abre a janela e um pássaro grita e lembra-se ou pergunta-se: gritei e desarrumei o ar?

quinta-feira, março 19, 2009

não há título. nem conteúdo. talvez desistir de escrever. que disparate que acabou de escrever. seria desistir de não sofrer.

quarta-feira, março 18, 2009

escuro

viu o escuro do seu sono. não tirou as lentes de contacto e viu as pálpebras de rosadas a pretas. pedia muito dorme, dorme: 5 e qualquer coisa e um polvo nos olhos. volta a adormecer cansada de se dizer cansada tão cansada. encolhe-se reunida com os joelhos, abre os olhos e vê a mãe na parede. fecha os olhos e vê a barriga da mãe. abre os olhos e vê a mãe na parede. fecha os olhos e tem saudades de um outro tempo. adormece e entra em salas com pecados, com recados, com pecados. fecha e abre as portas. corre dali para fora. pedia muito: dorme, dorme: há um amigo numa sala que a olha de lado. pecado e recado. começa a chorar. acaba a gritar.
vai trabalhar.

terça-feira, março 17, 2009

vou dedicar-te um texto

vou dedicar-te um texto após alguns textos sobre as horas e os minutos e sobre o meu coração a morrer neles de madrugada tão aflita a pedir por um cardiologista já era por ti que chamava um texto hoje estou a correr para um ataque cardíaco sem pontos nem vírgulas na minha boca a comer o ar sem o deitar fora de cada vez vou dedicar-te um texto ou fazer de ti um texto
ontem acordou e pôs as mãos entre as pernas sentiu o quente do sangue e pensou passou um mês exactamente ou quase exactamente e também pensou disse mesmo não terias nojo deste sangue passou um mês exactamente és um texto de um mês e lá vai ela pela calçada a recordar-se de um texto zás uma mão zás uma perna zás o movimento de ancas zás a voz do texto a avisar que não aguenta mais é agora sua doida zás e agora o texto acabou e lembra-se que começou com uma frase absurda a comandar que não podemos não podemos isto e aquilo e em cada movimento o anúncio certo disso e daquilo e agora adeus antes que morta na alma como já se escreveu tantas vezes e agora adeus na mesma posição no cantinho esquerdo da cama à direita o teu sorriso ou gargalhadas e muita humidade e muita humidade e muita saudade

quinta-feira, março 12, 2009

a Voz

são 22h e 55 m. ela pensa talvez hoje a dor ocupe o lado esquerdo da cama e fique quieta e eu possa dormir. navega pelas páginas dos seus livros, tão odiadas pelo familiar de faca na mão, ao fundo vê, como sempre vê, uma ilha deserta, que não lhe dá conforto, mas o desconforto psicanalítico da memória mal escondida de um afogamento lá atrás. na véspera pediu consolação. não: amabilidade. é muito, para muitos.
são 4h e 32 minutos. cai uma lágrima lenta a escutar o coração tum, tum, tum, não dormi, não dormi, não dormi. vira-se de costas para o espelho e vê a voz que escuta com mais atenção, a tantos voos de distância, tão doente, a voz dos seus livros todos, a voz que diz: talvez a ternura nos salve. não se telefona a uma voz; escuta-se essa voz que lhe diz sempre ironize, ironize, e ela a olhar para os pêlos brancos no cimo de uma camisa de pescador, a olhar para as extremidades de quatro mãos que se tocaram pela ponte de um passarinho que pousa sempre nas nossas mesas, não é, meu amor? ela a pensar que a voz que escuta com mais atenção é a voz que escuta com mais atenção porque tem consistência: é amável há 20 anos; é verdadeira há 20 anos; é honesta há 20 anos; é autêntica há 20 anos; não tem outra estratégia que não a da verdade há 20 anos, a voz que ela escuta com mais atenção. às 4h e 34 minutos pede-lhe que ao fim de 20 anos deixe de ser uma voz e que se transforme num ombro. e num ouvido, no qual possa soprar sabes?, mais uma banalidade, mais uma inconsistência, e há um familiar com as veias do pescoço de fora que me não deixa dormir e o meu coração está por um fio.
tum, tum, tum, volta-se de frente para o espelho. sabe o que ouviria: integre a sua condição.
São 4h e 35 minutos, embrulha-se na voz que escuta com mais atenção e a banalidade fica assim: uma banalidade.

quarta-feira, março 11, 2009

e assim se vai

vai-se embora só com o dedo indicador, enquanto o homem de 80 anos lhe prende a mão esquerda ao telefone, uma amargura a vida dele, a luta de milhares de contos para a ver perdida na burocracia de um país menos deserto do que ele: morto; vai-se embora, só com o dedo indicador, o coração não descansou desde a véspera, sabe que não viverá muito mais. vai-se embora, assim, a escrever, enquanto 82 rugas lhe falam ao ouvido esquerdo, a dizer de um projecto de uma vida, do qual não se desiste nem depois de morto; trezentos volumes de requerimentos, qual a miséria maior? é secundário. ouve não lhe tiro mais tempo e até à próxima e pensa: - vou-me embora com o indicador comido a 120 batidas por minuto, fora os minutos em que fumo, vou embora não sem antes visitar o abismo de um cigarro e em cada morte inspirada recordar a inspiração do velho que me fala morto pela burocracia.
ela morta por um coração que não tem mais forças para o seu corpo que é todo ele uma cabeça.

terça-feira, março 10, 2009

defesa

o que ela queria mesmo era um cardiologista. não é possível viver muito mais tempo neste estado em que todos os vizinhos lhe escutam as batidas fora do normal. não há cardiologista algum na sua lista de telefones, há apenas a memória do desgosto de uma fúria que o familiar abateu sobre ela e que como sempre teve os seus danos tardiamente a fazerem estragos num coração que bate tanto, tanto, tanto. pelo meio, um homem inesperado que lhe promete e que a faz prometer a frase imatura, usual, mas à conta da promessa e à conta de não haver cardiologista algum, entra-lhe um jovem pela casa que lhe sopra ao ouvido, como um poema complicado, a tua vista é fixe; ela a dizer-lhe calada que a tua função é retirares função ao homem inesperado, mas o comando é muito difícil para a simplicidade de quem só se preocupa com o sol de sábado e com a previsão de um amanhã igual. a tua vista é fixe; lembra-se de um texto antigo, três mulheres e um tapete, e faz a metamorfose do rapaz em rapaz literário: dois amantes e um tapete? não chega, mas ajuda, ele bebe cola, ela bebe água, ele é muito bonito, soletra frases com três palavras, um rapaz bom. (a tua função é retirares função ao homem inesperado, ao homem da frase imatura que sempre se diz). disseste alguma coisa? ela responde que não disse nada e acompanha-o à porta.

segunda-feira, março 02, 2009

uma mensagem

a sua casa e a de todos os vizinhos ficou sem luz. a sua casa, que já é preta, escureceu contra a luz que lhe diz amanheceu e a rapariga, a mulher, pousou com vagar os pés por onde andava, meia nua, escutando o vento que nasce no cemitério. demorou a entender que a escuridão não era só da sua casa preta, mas do prédio inteiro, e ali ficou, sentada numa cadeira, molhada, meia nua, encontrada na luminusidade aglutinante do ecrã de um telemóvel.
uma alegria.
uma mensagem.
uma alegria.

terça-feira, fevereiro 17, 2009

a palavra que mata

diante dos seus olhos, os olhos familiares a cuspirem a palavra que mata, que é a que nos faz confirmar a suspeita que se havia confessado à mulher sábia: eu amo quem não me ama. a palavra desenha-lhe o corpo em muitos anos abafados através de uma garganta jovem, bonita, hoje castigada de veias de ódio a dizerem-lhe: tu não tens o direito de ser assim, que é como quem diz: tu não tens o direito de ser. invoca-se o passado da agedida para agredir e consegue-se agredir, e é nesse instante que o sangue de cristo que nos amou desde há 25 anos pode ser puxado por um cano de esgoto. os pulsos dela estão cortados por mãos alheias, as mesmas que lhe ampararam a cabeça, lá atrás, quase morta. essas mãos, hoje, são jovens, têm botões de punho, vivem com medo do medo dos outros, do que os outros vão dizer-lhe à conta dela, e por isso não estão a cuidar dela, mas delas, das mãos que se descobrem nos novíssimos botões de punho, das mãos que hoje ameaçaram bater numa mulher.

sexta-feira, fevereiro 13, 2009

dois anos ontem

ontem não escrevi a dizer-te: beijo a tua fotografia há dois anos (já?). ontem fiquei antes em silêncio, até uma criança tua cantar com a força que eu não tenho, recusando-se a dizer adeus. volto a prometer-te que nunca te conjugarei no futuro e daqui a um ano direi o mesmo. ainda a semana passada senti a tua mão sobre a minha, quando passei numa estrada e não via como manobrar as mudanças do meu carro. meu amor.

terça-feira, janeiro 27, 2009

depois

no dia seguinte, vem o medo de si. afinal (afinal?!, ainda não aprendeu?) não tem controlo sobre os efeitos dos seus feitos e diz: vem aí a minha doença, mãe. vem aí tudo, tudo outra vez, a minha conquista a desfazer-se de frente para trás, que medo.
agarra a respiração e recorda-se dos longos curtos minutos em que escapou à solidão e vê no plasma em frente do cadeirão velho o seu preço sob a forma de um colete de forças.
não começa a chorar, antes confessa-se àquela mulher, que lhe diz: eu não te deixo cair, estás muito bonita, forte, chegaste até aqui, já passou, eu não te deixo cair.

quinta-feira, janeiro 15, 2009

s. t.

o piso estava molhado e o carro ganhou vida. acabou num buraco, varrida a auto-estrada e caída numa encosta a 120 km/h. tudo se partiu e morreu naquele carro. menos ela que insiste em sobreviver. saiu do carro reduzido a metade e a arriscar um incêndio, trepou a montanha e aguardou deitada pela ambulância: eu, eu ,eu.
as dores de cabeça intensas, duas feridas no corpo e os músculos desenhados por dez dias a dizerem: tu, tu, eu, eu.
a morte passa-lhe ao lado mais uma vez. há uma voz familiar, feminina, que está a ficar velhinha e que se não conforma que ela não tenha meditado sobre o facto de Deus, deus, ter escolhido que o fim não fosse a sua morte.
passam muitos dias. a casa continua preta, como escolheu. o corpo continua quieto, como vem escolhendo.
- isto não pode ter continuação.
- eu sei.
- já passaram dois anos, acho.
- faz o que quiseres.
- tenho de ir, um horror esta pressa.
- não faz mal, é bom fingir que se é de alguém por um bocado.
(estes meus músculos doridos)
a noite chega e o preto do céu entra pela janela e casa-se com a casa preta.
(entra o amigo)
(sai o amigo)
- vai embora, antes que me doa ficar só numa casa enorme.
- enorme és tu.