domingo, maio 31, 2009

Sobreviver

Em nenhum dos textos há uma novidade, nem no interlocutor, mãe, neste texto há a novidade da dimensão da tragédia. O corpo sai da cama e move-se em direcção a um lavatório onde se questionou algumas vezes, sente a água fria a começar-lhe o dia e parece que vai sobreviver. Há uma rapariga, uma mulher, que lá atrás era a criança que prometia crescer feliz a seu lado. Há essa mulher. Entra na sua casa, experimenta um vestido, fuma um cigarro e ela vê as formas dessa mulher marcadas por uma vida que correu afinal a milhares de estradas da sua, com filhos, com um homem ao seu lado, a mulher que chama de meu amor, meu amor, meu amor, (se soubesses dos meus cabelos presos a esta toalha), mas a mulher sai e vai à sua vida. Ela vai trabalhar e tem uma nova hormona no corpo que lhe trocou as voltas aos pensamentos, sempre foi muito sensível às hormonas, sempre foi uma explosão hormonal, senta-se e a colega em frente começa a desaparecer no nevoeiro da sua tragédia, que se anuncia. Uma dor mortal no peito induzida pela sua inimiga indegolável, uma dor aguda, precisa, às vezes difusa, com uma voz clara, um mandamento: acaba com isto. Cala-se na mágoa que se mostra mais uma vez tantos anos passados e cala-se duplamente porque desta vez a voz não tem causa possível, parece-lhe. Caminha por um corredor, morde a boca, ocorre-lhe arrancar um pouco do lábio num golpe para escoar tanto veneno, contém-se, assume a sua corajosa teatrologia e avança, minuto a minuto, segundo a segundo, acaba com isto, acaba com isto, fazes assim, agora mesmo, vai para casa, seria assim, seis anos disto, já chega, ela envelhece de um quarto em um quarto de hora até a sua tragédia explodir por todas as extremidades do seu corpo e foge para a casa onde cresceu até nascer a voz.
Dobra-se como uma vírgula num sofá e em vez de sangue deixa caírem lágrimas silenciosas pela sua cara, acalma-se ligeiramente, fala com uma pessoa, faz planos finais, entristece-se no adeus a cada parede da sua infância, chega o fim dia e pede ajuda. Começa a gritar. Os pensamentos ramificam-se por linhas que nada têm de ténues, são linhas de aço, são guias precisos da sua realidade próxima, são a sua vida, a sua certeza, o seu horror, a sua tragédia. Não consegue escapar-lhes.
É socorrida e vai jantar. Sorri por fora e vê a realidade paralela daquele jantar com uma cadeira vazia. No dia seguinte, a memória da tragédia da véspera é tão forte que não sabe como dizer estás boa?às amigas de infância que fazem tanto da sua história e que rodeiam uma mesa. Estou viva, pensa. Atreve-se a partilhar o que sente. E amanhã?, pergunta.