terça-feira, junho 02, 2009

Movimento pela igualdade no acesso ao casamento civil

Decidi juntar-me ao MPI por duas razões: por convicção e por dever cívico, razões que andam de mãos dadas. Tenho a convicção profunda de que há uma injustiça, uma imoralidade, grave, na sociedade portuguesa, a que o Direito civil português tristemente dá cobertura e a que urge pôr fim, para bem não apenas dos visados, mas para bem de todos. Tenho a convicção profunda de que um dos factores pelos quais se mede o estádio de civilidade de um país é a forma como o mesmo trata as minorias, pelo que acabar com o triste imperativo que resulta de uma lei datada pela homofobia e que podemos traduzir no mandamento dirigido às pessoas do mesmo sexo vocês não podem casar é melhorar a sociedade, e do contrato social de que todos fazemos parte. Trata-se de criar uma sociedade mais justa, mais livre e mais solidária, imperativos de um Estado de direito.

Decidi juntar-me ao MPI por dever cívico, porque aprendi desde cedo que nós não somos sem o outro, pelo que não podemos continuar a viver as nossas vidas como se uma massa anónima de murmúrios sem nome não nos incomodasse, eles, aquelas pessoas, que por acaso têm nome, existem, são pessoas, pessoas só, às vezes pessoas sós, na sua condição, com direito a serem pessoas por inteiro na sua dignidade, o primeiro princípio constitucional, pessoas a quem a lei, em nome de preconceitos hoje inadmissíveis, quer do ponto de vista constitucional, quer do ponto de vista moral, quer ainda do ponto de vista político, afasta do acesso a um bem, a um direito fundamental, o casamento, que tem consequências práticas e que tem um peso simbólico de inclusão do outro na normalidade dos conceitos.

Este movimento é ainda muito importante porque, insisto, está em causa um direito fundamental, pelo que a questão devia ser simples de resolver, na senda da Holanda, da Bélgica, do Canadá, da Espanha, da Noruega, da Suécia, da África do Sul, ou dos cinco Estados dos EUA que já nos tomaram a dianteira, a questão é fácil de colocar e tem uma resposta muito clara se a virmos na sua simplicidade. No entanto, sabemos que há quem não entenda que é mais importante discutir a imoralidade do mandamento tu não podes casar do que um alegado conceito histórico de casamento aliado à procriação, ou as alegadas consequências ditas inevitáveis da nossa proposta como a poligamia ou mesmo - por que não? -o casamento entre pais e filhos, entre irmãos, eu diria até com animais, os argumentos terroristas que servem para desconversar e que são cegos a experiências como a da nossa vizinha Espanha onde o mundo não acabou, antes pelo contrário, onde o mundo continuou melhor, mais justo, mais solidário. Está aqui em causa uma questão identitária, ao contrário desses devaneios terroristas. Ninguém cometeu um erro, ninguém é, como se presume, um erro. Os homossexuais são pessoas por inteiro, sãs, como outras quaisquer.

Hoje, evidentemente, seria um atentado à autonomia individual pretender-se que o casamento tem por finalidade a procriação: só tem filhos quem quer, só tem filhos quem pode, casa quem quer. Mas é importante perceber que está em causa o acesso ao casamento civil, instituição estadual com século e meio, alheia a legítimas concepções religiosas ou outras. Em todo o caso, como curiosamente explicam os Professores Pires de Lima e Antunes Varela, o que há século e meio esteve na génese da proibição do acesso ao casamento civil por parte de pessoas do mesmo sexo foi entender-se não ser possível a comunhão plena de vida entre essas pessoas . Isto é homofobia pura. Pura e simples. Ignorante e cega à realidade de milhares de casais que existem, que fazem as suas vidas, que pagam impostos, mas que não são nós, são eles, são aqueles.

Não se pretende impor qualquer visão do casamento às pessoas de sexo diferente; mesmo que o casamento tivesse por finalidade a procriação, que não tem, não impediria o casamento de pessoas que não podem ter filhos; o facto é que a lei nega toda a especialidade do casamento sem filhos seja porque motivo for, isto é, nada há, em termos de regime, de especial nessa circunstância; e mais importante, esta desconversa da procriação é uma visão utilitarista das pessoas hoje, como já referi, inaceitável à luz da autonomia individual. De resto, alguém no seu perfeito juízo pode supor que mudando o casamento as pessoas vão ter menos filhos? A verdade é que se confunde casamento com filiação. E a verdade é que se esquece que os homossexuais têm filhos.

Hoje pedimos que se tome consciência de que os direitos fundamentais, enquanto expressão da dignidade da pessoa humana, garantem ao indivíduo um espaço de não intervenção alheia, querendo aqui chamar-se a esse espaço uma moral colectiva maioritária, ditada ou votada, decidida ou eleita, que lhe não permitisse esse acontecimento único que é ser-se, em liberdade, o que se é. Por isso mesmo, contra direitos fundamentais não valem, sem mais, maiorias, sob pena de se funcionalizarem os primeiros; é por isso, também, que os direitos fundamentais, sendo a asserção mais efectiva nas liberdades e nas competências, como é o caso, não admitem e devem resistir ao discurso do que diz a maioria sobre o comportamento a ele associado, ou do que é, conjunturalmente, a vontade parlamentar. Mais: é ainda pelo que se vem afirmando que as liberdades e competências, fortemente ligadas à dignidade das pessoas, não têm de esperar pelo consenso social para terem plena efectividade. Nesse sentido aponta-se uma vocação contramaioritária dos direitos fundamentais. Quer-se com este passo recordar que numa ordem constitucional fundada na dignidade da pessoa, à qual o Estado se subordina, quando um direito expressa claramente uma liberdade ou uma competência que inscrevem o titular num universo de seres livres e iguais em dignidade, só por razões muito ponderosas, excepcionais e com claro apoio na Constituição pode o legislador afastar uma categoria de pessoas daquele direito.

É, pois, absolutamente inadmissível qualquer tentação referendária sobre o direito de acesso ao casamento civil por parte das pessoas do mesmo sexo. Isso seria totalitário.

Pura e simplesmente, à luz do que referi, não é moral ou juridicamente aceitável retirar um bem a um grupo de pessoas sem razões para isso. E não há razões para isso. Razões, amigos, razões. Não há um interesse constitucional ou moral contrário a ponderar com vista a um resultado diferente do que aqui defendemos. Não há.

A sociedade prefere pensar que os homossexuais podem existir desde que não chateiem, desde que não apareçam nessa condição, desde que se disfarcem. Ignoram o sofrimento dessa condição de invisibilidade e não fazem o exercício sobre si próprios. Experimentem. Gostava de propor o exercício a um homem ou a uma mulher heterossexual casados. Experimentem imaginar o momento em que se apaixonaram. Não poderem expressar publicamente o vosso afecto. Eventualmente a vossa família não vos aceitar. Condicionarem cada gesto de expressão de um sentimento. Num momento de crise viverem a mesma apenas com quem compreenda que o amor que sentem não é aceite por parte da sociedade. Quererem casar, exteriorizar a vossa relação perante terceiros, aceder a esse bem jurídico e social e esbarrarem com uma lei que vos diz que vocês são anormais para o efeito. Experimentem o exercício.

A questão é que o Direito vai à frente no derrubar das discriminações em matéria de direitos fundamentais e não espera por consensos sociais. A não ser assim, não tinha acabado a escravatura, não se tinha consagrado o sufrágio feminino, não tinha permitido o casamento inter-racial, que ainda nos anos sessenta, nos EUA, conhecia sentenças que temiam pelos filhos de uma tal aberração, e o próprio casamento não teria mudado radicalmente nos últimos cem anos no sentido da igualdade entre homens e mulheres e da facilitação do divórcio. Deixou de ser casamento? Não. Tal como na vizinha Espanha, quando tivermos a decência de acabar com o mandamento tu não podes casar, o casamento dos católicos continua incólume, cada pessoa casa com a sua concepção intocável, simplesmente há mais um grupo de pessoas com acesso a esse bem, pessoas silenciadas anos e anos, criminalizadas até há trinta anos, tidas por doentes até há vinte anos, mortas por regimes totalitários, que foram de humilhação em humilhação levantando a cabeça até a momentos como o de hoje onde todos possamos parar de dizer eles e possamos de uma vez por todas dizer nós.