É preciso viver uma vida inteira para se escrever este livro. Viver uma vida com o nome das coisas, definindo as coisas, definindo condições – como a pobreza: “a minha história, ou a falta dela, torna-me um pobre, entre muitos, porque os pobres são aqueles a quem a história abandonou e, por isso, estão sempre a inventá-la, não há quem mais histórias conte do que os pobres, embora toda a gente diga: isso é mentira. E com esta frase cheia de maldade tiram-lhes o que ainda lhes resta: a pobreza” (p. 30) – insurgindo-se contra o efeito de captura que a linguagem quase sempre tem. Rui Nunes, como o próprio diz, “estilhaça as palavras” (in JL Ano XXIX/Nº 1010 de 17 a 30 de Junho)
Este livro, escrito com gosto, oferece-nos um enigma. Começa numa viagem (I) a do homem principal que ainda desconhecemos o nome, uma viagem sem desígnio senão o do breve passo seguinte, por um rio acima, um homem velho, derrotado pela sua história, e pela natureza: os seus bichos, a sua escuridão, ou o sol, e logo no início o enigma dos seus olhos fechados e de não sabermos de quem são estes olhos velhos que súbito se recordam soldado a pontapear uma mulher. Este homem chama-se homem, isto é, chama-se Andreas e continuará a sua viagem num outro sentido, mais adiante.
Assim é, porque o enigma prossegue para um segundo capítulo – com a tua sombra abre na luz a porta (II) – que aparentemente paralisa a caminhada de Andreas. Aqui encontramos uma mulher idosa, num lar, junto a um rio, o rio Traisen, que nos situa na Áustria, a conversar com a sua filha, que vimos a descobrir ter o seu nome (p.22), duas mulheres de nome Greta, perdidas num diálogo só aparentemente alucinado: a filha, quase numa oração, suplica à mãe que decifre as frases soltas que o leitor entende não serem de alguém senil, mas de uma memória magoada a perseguir um nome. Nessa memória magoada Rui Nunes começa a construir talvez da forma mais definitiva a sua relação com Deus, essa ausência inevitavelmente repetida, na busca de um sentido, que ele sabe não existir: “uma mentira dia a dia partilhada” (in JL, cit.): por isso a mãe diz: “na verdade há um Deus em cada época da vida, um Deus que é a nossa sombra, uma sombra cada vez maior, tão grande que, muito velhos, só a vemos estender-se à nossa frente, um dia de sombra, uma vida, minha filha todas as tardes vejo a tua sombra a alongar-se” (p. 27).
Há um ódio àquela gravidez que sabemos dever ter ocorrido pelos anos vinte do século passado, e uma primeira referência à casca de uma laranja na p. 15, que vai ser um elemento sensorial fundamental do enigma. Que nomes escondes, mãe?: pergunta insistente a filha. A mãe esconde o nome Andreas e os encontros de anos de abuso com esse homem com nome de homem. O primeiro encontro surge na p. 34, relatado pela mãe, no qual Rui Nunes decompõe essa memória destruindo as palavras até à minúcia dos poros de uma pele, porque Rui Nunes vê o mundo por uma lupa e força as palavras a seguirem esse percurso e, nisso, é magistral.
Entramos no terceiro capítulo – A Viagem – onde apesar de Andreas continuar o seu percurso rio acima, largado à sorte da minúcia do que a beira de um rio pode fazer a um velho, interiormente faz um percurso ao contrário, à sua vida passada, Riga, Riga, Riga, ouve-se, e ficamos a saber que esteve na Letónia, lugar de horror na segunda guerra mundial.
No quarto capítulo – quem? Pergunta quem – as revelações da mãe Greta são mais intensas. O abuso de Andreas é agora nítido e nele a “estranheza no nome de Deus” (p. 44) e nele a filha pequena observante na porta entreaberta. Neste capítulo inicia-se a osmose do cenário da mãe e da filha e do percurso de Andreas. Neste último, há muito de Rui Nunes, como em todos os seus livros: “às vezes sente que há cidades que o procuram” (p. 48); “Deus (…) Esta palavra, às vezes digo-a. E fico mais só. É uma palavra tão só” (p. 50); “eis o problema do amor: suicidar-se pela repetição de um nome”. (p. 54); “nunca houve um país que sentisse meu” (p. 57).
Andreas faz fisicamente o seu caminho até ao lar, mas psicologicamente há uma regressão aos horrores de um passado nazi, dos campos de concentração, da sua participação no massacre de Mizocz, aos amontoados de mortos, a uma mãe morta, fuzilada, à frente do seu filho. De quando em vez, a casca de laranja. Enquanto isso, Greta pergunta retroactivamente numa fúria de quem é esta coisa na sua barriga e há sempre a voz que lhe dói de Andreas: não é uma coisa, é um filho. Começa a fazer sentido a repulsa por aquela criança. Os corvos são pontuações de lembranças, de nomes que passam a ter rosto, de pessoas assassinadas na guerra, Andreas, agora velho e chegado ao lar, lembra-se de algumas mortes. É sobretudo na recordação de Mizocz que os olhos de um homem, os olhos de Andreas, são finalmente os olhos de Himmler.
No último capítulo – Thalassa, Thalassa – Andreas e Greta, a mãe, estão juntos no mesmo lar, não se reconhecendo. O homem que destruiu aquela mulher terminou a sua viagem e está instalado na casa do desespero da velha que persegue o seu nome nos diálogos que a filha não entende. Cada um deles regressa ao seu passado. Ela ao cheiro ao laranja que é sempre o vestígio imagético do abuso, ele às suas mortes, ambos pontuando as recordações com a metáfora dos corvos. Há o dia em que Greta reconhece a besta através da janela e anuncia à filha a sua morte. A filha insiste, em desespero, quer saber que nome esse que a mãe persegue. A morte por uma vez significará Deus. E debaixo de uma árvore Andreas afaga o cabelo da velha que se encolhe em todo o seu ódio ouvindo as frases do seu passado de abuso, ainda que não reconhecida. Andreas conhece o seu fim trágico às mãos de Greta num grito de alegria metafórico de quem vê finalmente o mar.
O assombro deste livro é a sua imensa humanidade, é a fluidez de um enigma que se vai decifrando numa vida que se vive lendo o livro, porque assim é a vida também, sem a facilidade de uma narrativa alinhada pela evidência. O assombro deste livro é a sua sabedoria, em cada passo da viagem de Andreas, em cada passo do diálogo de Greta, as provocações sobre a linguagem, sobre Deus, o sofrimento, os nomes, o papel da memória, o peso dos mortos na história de cada um, o delinear da diferença entre ver e olhar, tudo isto é escrito e inscrito por um escritor superior e fica-nos, no final, a certeza de que é preciso viver uma vida inteira para se escrever este livro.
Este livro, escrito com gosto, oferece-nos um enigma. Começa numa viagem (I) a do homem principal que ainda desconhecemos o nome, uma viagem sem desígnio senão o do breve passo seguinte, por um rio acima, um homem velho, derrotado pela sua história, e pela natureza: os seus bichos, a sua escuridão, ou o sol, e logo no início o enigma dos seus olhos fechados e de não sabermos de quem são estes olhos velhos que súbito se recordam soldado a pontapear uma mulher. Este homem chama-se homem, isto é, chama-se Andreas e continuará a sua viagem num outro sentido, mais adiante.
Assim é, porque o enigma prossegue para um segundo capítulo – com a tua sombra abre na luz a porta (II) – que aparentemente paralisa a caminhada de Andreas. Aqui encontramos uma mulher idosa, num lar, junto a um rio, o rio Traisen, que nos situa na Áustria, a conversar com a sua filha, que vimos a descobrir ter o seu nome (p.22), duas mulheres de nome Greta, perdidas num diálogo só aparentemente alucinado: a filha, quase numa oração, suplica à mãe que decifre as frases soltas que o leitor entende não serem de alguém senil, mas de uma memória magoada a perseguir um nome. Nessa memória magoada Rui Nunes começa a construir talvez da forma mais definitiva a sua relação com Deus, essa ausência inevitavelmente repetida, na busca de um sentido, que ele sabe não existir: “uma mentira dia a dia partilhada” (in JL, cit.): por isso a mãe diz: “na verdade há um Deus em cada época da vida, um Deus que é a nossa sombra, uma sombra cada vez maior, tão grande que, muito velhos, só a vemos estender-se à nossa frente, um dia de sombra, uma vida, minha filha todas as tardes vejo a tua sombra a alongar-se” (p. 27).
Há um ódio àquela gravidez que sabemos dever ter ocorrido pelos anos vinte do século passado, e uma primeira referência à casca de uma laranja na p. 15, que vai ser um elemento sensorial fundamental do enigma. Que nomes escondes, mãe?: pergunta insistente a filha. A mãe esconde o nome Andreas e os encontros de anos de abuso com esse homem com nome de homem. O primeiro encontro surge na p. 34, relatado pela mãe, no qual Rui Nunes decompõe essa memória destruindo as palavras até à minúcia dos poros de uma pele, porque Rui Nunes vê o mundo por uma lupa e força as palavras a seguirem esse percurso e, nisso, é magistral.
Entramos no terceiro capítulo – A Viagem – onde apesar de Andreas continuar o seu percurso rio acima, largado à sorte da minúcia do que a beira de um rio pode fazer a um velho, interiormente faz um percurso ao contrário, à sua vida passada, Riga, Riga, Riga, ouve-se, e ficamos a saber que esteve na Letónia, lugar de horror na segunda guerra mundial.
No quarto capítulo – quem? Pergunta quem – as revelações da mãe Greta são mais intensas. O abuso de Andreas é agora nítido e nele a “estranheza no nome de Deus” (p. 44) e nele a filha pequena observante na porta entreaberta. Neste capítulo inicia-se a osmose do cenário da mãe e da filha e do percurso de Andreas. Neste último, há muito de Rui Nunes, como em todos os seus livros: “às vezes sente que há cidades que o procuram” (p. 48); “Deus (…) Esta palavra, às vezes digo-a. E fico mais só. É uma palavra tão só” (p. 50); “eis o problema do amor: suicidar-se pela repetição de um nome”. (p. 54); “nunca houve um país que sentisse meu” (p. 57).
Andreas faz fisicamente o seu caminho até ao lar, mas psicologicamente há uma regressão aos horrores de um passado nazi, dos campos de concentração, da sua participação no massacre de Mizocz, aos amontoados de mortos, a uma mãe morta, fuzilada, à frente do seu filho. De quando em vez, a casca de laranja. Enquanto isso, Greta pergunta retroactivamente numa fúria de quem é esta coisa na sua barriga e há sempre a voz que lhe dói de Andreas: não é uma coisa, é um filho. Começa a fazer sentido a repulsa por aquela criança. Os corvos são pontuações de lembranças, de nomes que passam a ter rosto, de pessoas assassinadas na guerra, Andreas, agora velho e chegado ao lar, lembra-se de algumas mortes. É sobretudo na recordação de Mizocz que os olhos de um homem, os olhos de Andreas, são finalmente os olhos de Himmler.
No último capítulo – Thalassa, Thalassa – Andreas e Greta, a mãe, estão juntos no mesmo lar, não se reconhecendo. O homem que destruiu aquela mulher terminou a sua viagem e está instalado na casa do desespero da velha que persegue o seu nome nos diálogos que a filha não entende. Cada um deles regressa ao seu passado. Ela ao cheiro ao laranja que é sempre o vestígio imagético do abuso, ele às suas mortes, ambos pontuando as recordações com a metáfora dos corvos. Há o dia em que Greta reconhece a besta através da janela e anuncia à filha a sua morte. A filha insiste, em desespero, quer saber que nome esse que a mãe persegue. A morte por uma vez significará Deus. E debaixo de uma árvore Andreas afaga o cabelo da velha que se encolhe em todo o seu ódio ouvindo as frases do seu passado de abuso, ainda que não reconhecida. Andreas conhece o seu fim trágico às mãos de Greta num grito de alegria metafórico de quem vê finalmente o mar.
O assombro deste livro é a sua imensa humanidade, é a fluidez de um enigma que se vai decifrando numa vida que se vive lendo o livro, porque assim é a vida também, sem a facilidade de uma narrativa alinhada pela evidência. O assombro deste livro é a sua sabedoria, em cada passo da viagem de Andreas, em cada passo do diálogo de Greta, as provocações sobre a linguagem, sobre Deus, o sofrimento, os nomes, o papel da memória, o peso dos mortos na história de cada um, o delinear da diferença entre ver e olhar, tudo isto é escrito e inscrito por um escritor superior e fica-nos, no final, a certeza de que é preciso viver uma vida inteira para se escrever este livro.