quem se não lembra do precipício apanhado num instante e de cair num golpe sem misericórdia e de finalmente sobreviver por acaso, depois de engolidos pela onda pesada, inteira, sonora, velha? quem se não lembra de temer morrer e ainda assim arriscar uma paralisia nas carreirinhas que tínhamos como as mais perigosas do mundo? assim se apanhavam ondas, na praia grande. haverá e sabe e soube que há quem se lembre e quem saiba o que é acordar a apanhar uma onda de medo a crescer para um gigante de pânico que nos leva em pensamentos mais velozes do que os métodos que nos ensinaram para os controlar. haverá e sabe e soube que há quem se lembre e quem saiba o que é cair a pique e sentir a dor do embate no corpo, a morte anunciada no pensamento, gemer-se no fundo da areia a dizer-se adeus, para repentinamente vir-se à superfície. ainda a tremer recorda-se o que seja: o sonho da véspera – a rapariga morta ao fundo do corredor emoldurada por uma porta, sentada a sorrir para ela –; a voz que se escuta com atenção a recordar-lhe que a sua luta é maior do que a luta contra um cancro. ou então vive-se uma história: canções que lhe recordam dois ouvidos funcionais, músicas a encherem um automóvel, músicas que fazem a caminhada de uma mulher descoberta nos acasos da sua vida. ou então luta-se e reencontra-se uma pessoa e apanha-se assim uma onda suave até terra firme, alguém que lhe conhece uma sorriso juvenil, anterior a todos os lobos, anterior às carreirinhas assassinas, uma mesa e duas mulheres, às vezes um tremor, às vezes um aviso na ponta dos dedos, mas vence a cumplicidade da memória do afecto que se faz presente e diz-se, no fim: obrigada. luta-se, luta-se, luta-se: caminha de gatas, encharcada, com areia no cabelo embaraçado, até ao início da areia húmida, ainda não seca, mas pelo menos já húmida, e encontra-se o desenho de um sentimento. a parede de pânico quer empurrá-la para trás, mas luta, luta, luta e diz: vou abrir a caixa do correio. haverá e sabe e soube que há quem se lembre e quem saiba o que é.