terça-feira, janeiro 23, 2007

no sítio onde não soas

dormir de tarde e fazer do princípio da noite uma manhã. o método sem remédio dos remédios para chegar aqui sem a tua voz. o espaço onde não há o sinal de existires – de existir para ti – chama-se a minha casa: está deserta de tantos sons sem conteúdo a ameaçarem a utilidade de um cérebro a que me rendi. uma dor na nuca a pedir que mude de posição, o corpo torto no sofá, uma sepultura filha de pais incógnitos, uma terra de ninguém, o lugar incerto dos mapas minuciosos. as estantes cheias de poemas a poderem dar movimento ao areal em que (e)s(t)ou, nada, escorrem as horas e rendo-me à programação que for, ela é só uma casca de ovo, eu uma gema circular, a circular, a entristecer, a envelhecer. nem um som, sinal algum, um escrito, uma preocupação, um amor inventado, sem urgência, uma sabedoria; nada, é noite, uma fadiga penosa, os meus hinos à noite, e ontem conheci uma pessoa qualquer, e ontem morreu um cão que por aqui passava, e há três dias não deste conta de que cuspiste a palavra adeus quando eu partilhava um episódio importante, e na semana passada uma oliveira milenar foi demolida para se erguer uma casa; frases estas a tirarem-me pelos olhos outros deste espaço que não tem sequer a poesia da desagregação; estou inteira, um bloco, duro, resistente, de solidão compactada. perguntar se estás bem é dizer-te que estou a descontar o tempo que resta da minha paz por magoar. preciso de um beijo, já não do teu, preciso de uns braços, lembrei-me dos dele, da sua pele sempre macia, do seu corpo harmonioso, da sua ausência agora mesmo, lembrei-me dos braços do outro que me confessa que seriam meus, não fosse a doença que tem, lembrei-me dos meus braços, passei a língua num vinho azedado e entrei na insanidade que é conjecturar o cenário em que te diria tudo o que te vem faltando ouvir; depois lembrei-me de uma menina a morrer há muitos anos, invadiu-me a imagem de uma criança que se excitava com nove anos sem saber que magia era aquela que lhe aquecia o sexo, depois vi-te feito demónio a invadir o sexo de uma menina desaparecida.

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