segunda-feira, setembro 01, 2008

tela de dores

trinta e cinco agulhas entram-lhe pelo corpo adormecido na doença; pela doença. de costas, como que adormece num musical sem dores de recordações e de projecções; pelo meio uma irmã aflita; pelo meio um sono que não vinha há muito tempo. agita as pernas não feridas e adormece e acorda corroída de vontades, a dizer: talvez então viver.
deita-se na tela do seu pintor e começa um quadro do seu corpo reanimado. deitam-se, pintor e uma mulher nus, lado a lado, na tela enorme, e as cicatrizes de ambos fazem os cabelos de um só homem com sexo de mulher. cresce a tela com corpos misturados até um só, ela rebola, rebola, grita: pinta-me, pinta-me, e vai atrirando gin para cima de mim, eis-me nesta tela. ele estende-se nela, passa por ela, estreita-lhe as ancas e diz-lhe: aqui morreste, sabes? oferece-lhe o pincel trincado e pingado para um auto-retrato e ela chupa-o e assume a tinta como vinho e confessa que as trinta e cinco agulhas deram forma ao início das suas pernas por dentro: explode a chorar. explodem a chorar. abraçam-se em tinta preta. ela deita-se nas costas do pintor e pressiona o coração dele contra a tela: aqui mataram-te, ou é aqui que te matas, diz-lhe. deitam-se de lado, um contra o outro, dão os lábios molhados de alcool um ao outro, respiram lentamente cobertos de tinta vermelha a descontar passados e vão parando de chorar até só se ouvir a pintura de um uníssono gemido.
fica quieta, ouve.
olha para isto, suspira.

1 comentário:

Azul Neblina disse...

Como dizê-lo? Torvelinhos de confusão. Há imagens que se desenrolam mais lúcidas na avidez cupidosa de uma tela cuja tessitura se impele a rasgar. Pelo menos acredito que sim.