sexta-feira, outubro 27, 2006

Morada

Um quadrado branco,uma folha em branco: eis o espaço onde constrói uma morada.
- És tão nova, quantas foram as tuas moradas?
- Eu vivo num espaço com dois quadrados. E a minha morada, o meu lugar, é uma folha de papel.
- Não vens à superfície.
- Que te direi? Queres saber de Belém ou da rua lá para os lados de Campolide com prédios cegos e nome de escritor?
- Por exemplo, princesa. No mundo dos mortais, a morada é isso, ruas, como essa, a rua lá para os lados de Campolide com nome de escritor. Lembro-me de te queixares de ser rua de passagem, de não haver mercearia, ou vestígios que justificassem o nome naquela placa.
- Que interessa? Essa rua, uma morada? Às vezes atravesso-a e vejo o sítio onde vivi, vejo-me à janela e um vampiro a sugar-me o pescoço. A morada é onde sou. Essa rua é uma diluição.
- Vá, fala como gente normal. Diz-me: quantas foram as tuas moradas?
- Uma só.
- Do Torga foste para os lados da Junqueira, dali foste para o Restelo, rumaste a Alfama, regressaste a Belém, e agora estás nessa casa cheia de luz, cheia de quadros.
- Se conheces esse mapa sem sentidos, por que me questionas?
- Para te fazer falar. Andas silenciosa.
- Eu resido numa casa cheia de luz, eu vivo em dois quadrados almofadados, eu tenho uma morada que me faz perguntas carregadas de liberdade.
- De que falas, aluada?
- Da minha morada. De uma folha de papel que me faz ser. Falo de liberdade. Falo do que te falaria o escritor oprimido numa placa na rua errada.

Sem comentários: