quinta-feira, outubro 05, 2006

Lola


Vou pela rua desocupada dos cidadãos honestos, noites escura, procuro gente sem horários, gente sem casa para chegar, gente sem um molho de chaves a traduzir uma vida remediada.
Vou pela rua, assim, de olhos bem abertos, quieta nos meus sons, à espera que alguém me escolha, tenho sede de ouvir, de sair do espaço nove às cinco, onde Lisboa não tem este sangue, ou esta pena, ou esta ausência de Deus sem a desculpa de Ele não ter espaço para aparecer. O vazio de tudo, dos pecados da modernidade, e mesmo assim Deus sem aparecer, em alguma esquina, ou talvez ande ali, de saia curta, com a barba mal disfarçada.

- Outra vez por aqui?
- Trouxe-lhe as cuecas de renda, como prometi.
- E um pão?
- O mesmo de ontem. Tem esse novo arranhão, Lola.
- Não queria pagar, o cabrão. Nem queria gostar. Queria sentir-me um monstro, e não a ele. Com este par e esta coisa por desaparecer. Isto é uma solidão desgraçada. E sai-me do pêlo. Que difícil ser gaja.
- Pois eu agradeço-lhe.
- O quê, maluca, tu que falas com estranhos de noite?
- Querer tanto ser mulher. Há muitas distâncias minhas que são isso apenas: ser mulher. De manhã lido mal com a condição; de noite, melhor.
- És intelectual, não és, maluquinha?
- Não. Sou viciada em descrições. E penso sem arrumação, uma violência.

Sem comentários: