Eis o poema repousado. Letras nenhumas moviam uma pele, um sentir, como aqui, esta tela que me chegou, que me mudou. Para sempre. Olho-te: obrigas-me a aligeirar os passos, a silenciar os vizinhos, a pousar o copo de café. Agarras-me com a força da tua luz multiforme, e eu a regredir nela, a avançar nela, sou, agora, diante da minha lua, uma súbita leveza. Estou a chorar, sem poemas, sem prosa, sem música. O silêncio desmedido desta tela gera-me ao contrário, entro-lhe toda pela cabeça, sobram-me as pernas, sem dor alguma, e volto a sair, leve, leve. Sento-me noutro ângulo e a luz da janela descobre-lhe uma sombra que se oferece como uma absolvição. O poder desta tela é imenso: o sombreado acastanhado é a minha franja de infância, recordada aqui com novidade. Trepo por um pinheiro, sem nostalgia, estou a sorrir, e vejo o dia a despedir-se do mundo, Deus a apagar o seu nome, como já se escreveu, e os meus joelhos sujos da correria, e o mundo todo lá de cima, do último ramo, uma paz. Esse ramo, esta sombra, estou a flutuar, este negro que não oprime, antes projecta a justiça enorme da lua que se não põe de manhã. O futuro destemido. A minha esperança. Uma palavra nova no meu vocabulário. Um quadro que salva. Eu a vê-lo, ele a habitar-me. Os relevos no centro dele, a nossa vida relevada, as trajectórias desta alma? Uma tela cheia de justiça, e por isso nela as trajectórias acolhidas de todas as almas que para ali olham. Parar. Subir com esta tela. Chorar o seu único peso: a beleza. Chorar por quem tem nas mãos a arte de inspirar para sempre o outro a não se escapar. Eis o papel da minha lua. Diz-me: não te escapes. Para sempre, na parede onde suspende, a verdade acontece sem que ninguém a pronuncie. Para sempre, na parede onde sobe quieta, o silêncio poupa todos os tumultos. Para sempre, na parede, uma prisão absolutamente livre.
sábado, outubro 14, 2006
LUA (Zé Lourenço)
Eis o poema repousado. Letras nenhumas moviam uma pele, um sentir, como aqui, esta tela que me chegou, que me mudou. Para sempre. Olho-te: obrigas-me a aligeirar os passos, a silenciar os vizinhos, a pousar o copo de café. Agarras-me com a força da tua luz multiforme, e eu a regredir nela, a avançar nela, sou, agora, diante da minha lua, uma súbita leveza. Estou a chorar, sem poemas, sem prosa, sem música. O silêncio desmedido desta tela gera-me ao contrário, entro-lhe toda pela cabeça, sobram-me as pernas, sem dor alguma, e volto a sair, leve, leve. Sento-me noutro ângulo e a luz da janela descobre-lhe uma sombra que se oferece como uma absolvição. O poder desta tela é imenso: o sombreado acastanhado é a minha franja de infância, recordada aqui com novidade. Trepo por um pinheiro, sem nostalgia, estou a sorrir, e vejo o dia a despedir-se do mundo, Deus a apagar o seu nome, como já se escreveu, e os meus joelhos sujos da correria, e o mundo todo lá de cima, do último ramo, uma paz. Esse ramo, esta sombra, estou a flutuar, este negro que não oprime, antes projecta a justiça enorme da lua que se não põe de manhã. O futuro destemido. A minha esperança. Uma palavra nova no meu vocabulário. Um quadro que salva. Eu a vê-lo, ele a habitar-me. Os relevos no centro dele, a nossa vida relevada, as trajectórias desta alma? Uma tela cheia de justiça, e por isso nela as trajectórias acolhidas de todas as almas que para ali olham. Parar. Subir com esta tela. Chorar o seu único peso: a beleza. Chorar por quem tem nas mãos a arte de inspirar para sempre o outro a não se escapar. Eis o papel da minha lua. Diz-me: não te escapes. Para sempre, na parede onde suspende, a verdade acontece sem que ninguém a pronuncie. Para sempre, na parede onde sobe quieta, o silêncio poupa todos os tumultos. Para sempre, na parede, uma prisão absolutamente livre.
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