domingo, dezembro 17, 2006

o tempo que resta ou o poço numa mulher

pedes-me que escreva sobre o poço que vês no sexo de uma mulher. escuto-te e sei do que falas, sei do que sentes. mas não posso escapar à minha madrugada, despertei inquieta, tão cedo, e revisitei o filme que sempre me faz pedir aos olhares cativos que experimentem, que experimentem, sair de outros poços que não este de que falamos e que ousem sentir as esquinas de corações de carne igual, em corpos que vivem nos quadros que são atirados para o que não merece acolhimento. o amor de dois homens, ali, no filme, o desejo de dois corpos masculinos, só um sabendo que o tem no abismo do tempo que lhe resta; estou em silêncio, começo a chorar, antes de ser pela morte anunciada, já pela solidão a que está sempre vetado quem ama fora das imagens que merecem a partilha abençoada de todos, começo a chorar por todos os tempos esgotados em amores vividos sem um gesto paterno, um sorriso materno, uma refeição familiar, e este filme sem cedência alguma, a dar espaço à ganância de dois corpos masculinos sempre indigna de imagem.
o tempo a esgotar-se e só uma avó sabe dele, escolhida para o anúncio por estar próxima também da morte - diz; mentira, escolhida por ter vivido também fora de uma moldura, a fugir do filho que lhe recordava todas as expressões do marido morto, a entregar a viuvez ao sexo inconsequente, uma puta, enfim; antes uma mulher a sobreviver, para quem tem olhos de gente, um poço misterioso a contar uma história, o sexo desta velha.
o morto em breve sempre a regressar-se à infância, sem espaços nessa voz muda, o outro eu a consolá-lo, os poços dele, as memórias, as metáforas que fez dos ensinamentos da infância; como tu, com os teus poços, o perigo deles, o mistério neles, a vertigem da morte, hoje, para ti, o sexo de uma mulher. como um poço, uma viagem certa, uma dependência, com avisos na inclinação, não se vá nele cair, ninguém nada no fundo de um poço, ninguém conhece o fundo de um poço, ninguém se salva no fundo de um poço, e todas as crianças espreitam os poços na tentação do mistério desse fundo escuro, como em adulto espreitas o sexo de uma mulher, sabendo bem que dele só conhecerás as franjas, por mais que o mistério de um útero inteiro te derrote, não saberias sobreviver nele, podem apenas os teus dedos e o teu sexo entrar e sair, espreitar a morte e regressar à vida, ou tocar a vida antes de um espaço mais longínquo de morte e voltar à ignorância do exterior.
talvez morra, numa praia, com a mão no meu sexo.

1 comentário:

rita disse...

O poço nas pessoas é mais que o sexo; é o abismo de escuridão que alberga os mais estranhos segredos. Espreitar, suicidar a curiosidade num mergulho sem sentido, é quase sempre permanecer ignorante perante a complexidade humana.

Um beijo*