sábado, outubro 07, 2006

Pausa: para quê esta escrita?

Por quê escrever? Para quê? Ou: para quê publicar assinando o nome real? Impõe-se uma pausa para tentar compreender - e pedir o mesmo a quem lê - a insistência numa prosa assente na verdade e por isso perturbadora, corrosiva, às vezes com traços de castigo. A escrita que é uma verdade é sempre sobre quem escreve, mesmo quando ficciona o vagabundo que morre numa masturbação, a empregada de balcão que perdeu o sonho de ser alguém à conta de um ferro nas costas, uma mulher comida pela guerra, a solidão sexual: todos os cenários de observação são escolhidos por identificação e, nessa medida, são extensões de quem escreve. É essa a condição de alguma escrita, da única que me interessa, a que quando descreve um morto, nesse momento, é também uma autodescrição. É, em suma, verdade.
Escreve-se, em primeiro lugar, por vocação. Há, organicamente, um chamamento. Irrecusável. Não se pode declinar a escrita como se não pode suster a respiração por três minutos. Não escrever é, ontologicamente, um abandono de si próprio. Depois, quem escreve precisa, por alguma razão, de comunicar. É neste ponto que a escrita se depara com a contingência da publicação e nela com a da exposição. O escritor, por definição, comunica, fala para alguém, precisa de alguém, quer alguém: o leitor. É de certa forma, talvez com arrogância, um incompreendido. Ou pode ser. A escrita por cumprir é como um pecado por confessar. Dói em crescendo até encontrar o remédio de um lugar onde se expor ao julgamento. Até encontrar o outro. Espera-se, neste tipo de escrita, não só o consolo de alguém que lê e compreende a alma de quem escreveu, como se espera, noutro plano, que o que se escreveu console alguém que se sentia estrangeiro até àquela descrição. Quem escreve pode não ter realmente perdido a alma num momento tão cru como o de uma pessoa se transformar em silêncio depois de lhe dar cabo do corpo, mas é verdade que cabe no seu sentir a possibilidade de integrar esse tipo de dor e de a descrever normalizando-a, impedindo que um anónimo que dê com o texto se vete ao horror de se considerar indígena. A vontade insaciável desta escrita é sempre, por isso, descrever qualquer estado de alma com a sombra da exclusão, convidando-o à humanidade da companhia de outros que são vizinhos, que lhe poderiam dizer: eu sei o que estás a sentir. Esta é uma razão para se publicar: é a razão assente na função, errada ou não, que se atribui a uma escrita. É a segunda razão, ligada à anterior, a da comunicação, que inverte a solidão inevitável de quem sente todos os dias um mundo de descrições silenciosas por acrescentar. Por isso, jamais bastaria escrever e rasgar de seguida, ou ocultar, os textos, como quem se alivia de uma dor, um copo que fosse, uma linha de coca, a escrita não é isso, a escrita é palavra, a palavra tem interlocutor.
Resta saber por que não usar outro nome, por que não temer a exposição, as interpretações que sempre se farão associadas ao nome real de quem escreve. Há muitos escritores que usam um nome falso e nele escondem a pessoa que são. Há outros, porém, que não conseguem. Mais: que não podem. Não se esconde atrás de um nome falso quem não traça uma divisão, por mais ínfima que seja, entre a sua escrita e o seu ser; sobretudo quem tem uma escrita violentamente envolta no drama da identidade. Uma prosa aflita com a identidade sob um nome falso seria uma condenação.
Em cada linha que escrevo avanço um passo nessa descoberta e só o posso fazer com o nome que posto no fim de um texto recorda-me da palavra que aflige tanta gente: eu.

2 comentários:

Лев Давидович disse...

Deixe-me que lhe diga que com a sua qualidade de escrita e profundidade atingida em cada post, há uma boa quantidade de questões que ficam resolvidas.
Por fim, não faço a mais pequena ideia como pode afligir tanta gente.
Pessoalmente, afligir-em-ia o facto de não a ler.

Isabel Moreira disse...

Obrigada. A última linha do seu comentário é uma dádiva.