diante dos seus olhos, os olhos familiares a cuspirem a palavra que mata, que é a que nos faz confirmar a suspeita que se havia confessado à mulher sábia: eu amo quem não me ama. a palavra desenha-lhe o corpo em muitos anos abafados através de uma garganta jovem, bonita, hoje castigada de veias de ódio a dizerem-lhe: tu não tens o direito de ser assim, que é como quem diz: tu não tens o direito de ser. invoca-se o passado da agedida para agredir e consegue-se agredir, e é nesse instante que o sangue de cristo que nos amou desde há 25 anos pode ser puxado por um cano de esgoto. os pulsos dela estão cortados por mãos alheias, as mesmas que lhe ampararam a cabeça, lá atrás, quase morta. essas mãos, hoje, são jovens, têm botões de punho, vivem com medo do medo dos outros, do que os outros vão dizer-lhe à conta dela, e por isso não estão a cuidar dela, mas delas, das mãos que se descobrem nos novíssimos botões de punho, das mãos que hoje ameaçaram bater numa mulher.
terça-feira, fevereiro 17, 2009
sexta-feira, fevereiro 13, 2009
dois anos ontem
ontem não escrevi a dizer-te: beijo a tua fotografia há dois anos (já?). ontem fiquei antes em silêncio, até uma criança tua cantar com a força que eu não tenho, recusando-se a dizer adeus. volto a prometer-te que nunca te conjugarei no futuro e daqui a um ano direi o mesmo. ainda a semana passada senti a tua mão sobre a minha, quando passei numa estrada e não via como manobrar as mudanças do meu carro. meu amor.
terça-feira, janeiro 27, 2009
depois
no dia seguinte, vem o medo de si. afinal (afinal?!, ainda não aprendeu?) não tem controlo sobre os efeitos dos seus feitos e diz: vem aí a minha doença, mãe. vem aí tudo, tudo outra vez, a minha conquista a desfazer-se de frente para trás, que medo.
agarra a respiração e recorda-se dos longos curtos minutos em que escapou à solidão e vê no plasma em frente do cadeirão velho o seu preço sob a forma de um colete de forças.
não começa a chorar, antes confessa-se àquela mulher, que lhe diz: eu não te deixo cair, estás muito bonita, forte, chegaste até aqui, já passou, eu não te deixo cair.
quinta-feira, janeiro 15, 2009
s. t.
o piso estava molhado e o carro ganhou vida. acabou num buraco, varrida a auto-estrada e caída numa encosta a 120 km/h. tudo se partiu e morreu naquele carro. menos ela que insiste em sobreviver. saiu do carro reduzido a metade e a arriscar um incêndio, trepou a montanha e aguardou deitada pela ambulância: eu, eu ,eu.
as dores de cabeça intensas, duas feridas no corpo e os músculos desenhados por dez dias a dizerem: tu, tu, eu, eu.
a morte passa-lhe ao lado mais uma vez. há uma voz familiar, feminina, que está a ficar velhinha e que se não conforma que ela não tenha meditado sobre o facto de Deus, deus, ter escolhido que o fim não fosse a sua morte.
passam muitos dias. a casa continua preta, como escolheu. o corpo continua quieto, como vem escolhendo.
- isto não pode ter continuação.
- eu sei.
- já passaram dois anos, acho.
- faz o que quiseres.
- tenho de ir, um horror esta pressa.
- não faz mal, é bom fingir que se é de alguém por um bocado.
(estes meus músculos doridos)
a noite chega e o preto do céu entra pela janela e casa-se com a casa preta.
(entra o amigo)
(sai o amigo)
- vai embora, antes que me doa ficar só numa casa enorme.- enorme és tu.
quarta-feira, dezembro 24, 2008
preferias não ter sofrido?
o que eu queria era derrubar as palavras todas e com elas a gramática, as figuras de estilo, eliminar os adjectivos, inventar tudo de novo, porque não há palavras para a palavra de sempre que é a palavra dor. o projecto falha e tenho de dizer que esta dor dói mais do que as outras porque engana com intrevalos que fazem acreditar na sua derrota, mas ela cai a pesar uma tonelada no sábado de manhã, e sem aviso volta-se ao princípio da doença e ouve-se uma voz que nos diz que isto é cíclico e a nossa voz interior chora por andar nisto que é cíclico há mais de cinco anos. preferias não ter sofrido? ouve-se essa pergunta e sabe-se que não, mas sabe-se também que sim, que quanto a esta dor cílica, que nos nasce na alma, preferíamos não ter sofrido, não sofrer, não ter nascido. fica um deserto de esperança, o optimismo está entalado numa centena de bulas esquecidas nas gavetas dos anos de luta escondida. vai-se trabalhar de manhã e chora-se à hora do almoço e de noite. é-se forte, sim. muito; então em dias como os de natal...
segunda-feira, dezembro 15, 2008
s.t.
atreve-se, sai do caixão devagarinho, navega para uma sala desconhecida, de peso sente apenas um leve rímel nos olhos, ouve uma história pesada, não esperava por isso, por aquela história, vinda daquela boca, consegue não chorar, enquanto se enterra no relato, porque sai da sua própria dor e entra numa dor anónima, embora agora sua, como sempre faz às dores, dobra-se no sofá, ouve, a história e a música que a anima para viver, ouve também o som do cinto que se desaperta, preciso de afecto, eu também, o copo de água é grande, como a história de dor que escuta, cada vez mais colada à sua pele, sobretudo quando há silêncio, a história continua atrás das suas orelhas, na sua cintura irrequieta, no grito que não abafa, nos lábios que teimam em não se fechar, ser de alguém por uma vez que seja, há muito tempo, pensa, há tanto tempo, preciso de peso, pensa, cola-te à dor que te não contei e entra, entra, entra, fazes depois uma pausa e não sabes que estou a chorar por dentro, que três dias antes, como o 3 do teu quadro, eu estava morta, era só isto que eu queria, ouvir e sentir a tua história e diluir a minha assim.
quarta-feira, dezembro 10, 2008
s. t.
agarra o braço da mãe com muita força e caminha pelas ruas de Praga. ampara braço e corpo dessa maneira, sem ter prazer em nada, numa visão que seja, uma solidão demasidao ruidosa, uma outra cidade, inventada, por dentro, com as suas esquinas a acabarem todas numa prancha para saltar: a morte. as copas das árvores abanam e assobiam a palavra morte ou o verbo morre, toma consciência da perna direita e da perna esquerda, aflige-se até chegar ao hotel, para então curvar-se toda no seu desejo de saltar e agarrar o corpo da sua mãe com muita força e confessar-lhe ao ouvido que em minuto algum daquele passeio fez outra coisa que não treinar a sua morte: não aguenta mais, mãe. há um homem ao telefone que lhe sopra a certeza de que isso passa, que só ela não vê que a dor medieval que sente é provisória, que de fora é fácil ter uma outra certeza que se chama vida. ela diz-lhe que a sua provisoriedade vem sendo eterna, que não aguenta o peso de uma folha outonal, um sorriso estrangeiro numa sala anónima, um restaurante que lhe roube a segurança do quarto escuro, a maquilhagem que a impede de chorar.
mãe, eu vivo no inferno.
por ti.
quarta-feira, dezembro 03, 2008
proximidade II
a tia afastada-próxima morreu, ouve. morreu, ouve. morreu, ouve. morreu, ouve, morreu, chora.
o verbo é um choque que não mata a pessoa, apenas nos atira para a última vez vimos a pessoa. morreu, ouve. morreu, ouve, morreu, lembra-se: no átrio do hospital a palavra que não disse àquela dignidade comida por um cancro feroz, rápido, e agora as palavras da filha que lhe chegam aos ouvidos: eu não quero viver sem a minha mãe. diria assim: eu não quero viver sem a minha mãe. com esse pensamento abraça a prima afastada-próxima. a morta deitada ainda parecia cansada, de tanto que sofreu; pô-la a andar no átrio do hospital e recordou-se de pensar: a próxima vez que te vir estarás deitada entre quatro velas. um cartão a clamar que God couldn´t be everywhere, therefore he made mothers. abraçou a mãe da tia afastada-próxima, que perdera o marido quinze dias antes, e que misteriosamente lhe dedicou desde sempre um amor intuitivo, uma fraqueza, como diz, e na sua dor imensa, a um centímetro do rosto da filha morta, agarrou no seu rosto, que estava firme, sem uma lágrima, por ela, e disse-lhe: Deus lhe dê forças, minha querida.
(como é que ela sabia?)
saíu dali a tropeçar nas lágrimas de três mulheres.
quinta-feira, novembro 27, 2008
I found peace about you
I found peace about you.
para ela não há qualquer racionalidade que a obrigue a sentar-se nas circunstâncias que ditam essa meditação que resulta na frase que escutou: I found peace about you. a impossibilidade de uma vida, de uns anos, de um ano, de uns meses, que importa?, ela vive a emoção daquela emoção, o desenho de uma boca que lhe fez um só corpo, aquele daquela cozinha que não é a mesma passados estes meses, assim como o corpo é outro depois do milagre do Tejo e do Danúbio a fazerem uma cozinha, ela não quer meditar e render-se a uma amizade com esse capítulo em que as unhas faziam sangue de raiva da distância, quando se encontravam e se amavam, em que os dentes não se preveniam a juntar o Tejo e o Danúbio, ela não quer dizer-lhe I did the same. porque ela não é assim, não cuida do futuro, entraria nos dois aviões para chegar do Tejo ao Danúbio, até que uma fatalidade a impedisse, e se no entretanto a vida lhe sobrasse atrapalhada e comida de ansiedade, tanto lhe faria, porque nos intervalos correria a guerra que sabe viver, a construir um corpo, uma cama, um sofá, uma cozinha. a traduzir poemas entre o Tejo e o Danúbio e a abrir a luz para te ver escorrendo nas costas um outro rio, aquele fio de sangue que era o meu grito.
domingo, novembro 23, 2008
proximidade
no átrio do hospital, a familiar curvada sobre o filho e a filha, cinquenta e poucos anos, a lamber o chão com os pés. à pergunta da mãe da observante respondeu com um sorriso comido pelo cancro, que lhe não comeu a bondade, mas que lhe escreveu a palavra cansaço em todos os gestos e que fez do seu corpo um grito de dor. viu-a quase morta a encontrar, curvada sobre o fiho e a filha, um banco.
a rapariga que observa não dirige uma palavra àquela dignidade; esconde os exames médicos que acabara de receber e sorri para a tia afastada-próxima.
segunda-feira, novembro 17, 2008
para a frente
uma mesa em brasileiro.
- anda para a frente, garota, foi ela; não foi você que fez aquilo.
(uma mesa em brasileiro muito redonda, confinada, pronta para ela dizer estou encurralada)
mas antes:
- é isso. é isso mesmo, não disse.
(olhou-(o)).
sentiu as costelas vivas na cadeira e ficou a ouvir o rapaz alegre e sábio, ela respirava contra a cadeira e estudava aquele sorriso corajoso, as suas costelas desenhavam uma vida ao contrário.
- é isso. é isso mesmo, não repetia.
- que vista linda.
- é.
- vamos?
- i m e d i a t a m e n t e, que o meu corpo não é só costelas.
terça-feira, novembro 04, 2008
s.t.
Constituição da República Portuguesa comentada, os últimos meses de Salazar, o Público, o Diário de Notícias, um site para conversar que não abre, um cinzeiro sujo, a colega em frente, o relógio, quatro relógios, um telefone a tocar, esta a sua mesa, nada que chegue para ocupar a cabeça, para desocupar a cabeça, dela, hoje uma menina faz treze anos, num minuto dirá a sorrir parabéns, meu amor, hoje também chegará a noite e o sono, para não dar pelo tempo por oito horas, aflita porque amanhã a mesa terá a Constituição da República Portuguesa comentada, os últimos meses de Salazar, o Público, o Diário de Notícias, um site para conversar que não abre, um cinzeiro sujo, a colega em frente, o relógio, quatro relógios, um telefone a tocar, nada que chegue para ocupar a cabeça, para desocupar a cabeça, dela, a sua inimiga indegolável, dia para dia maior o mapa da ocupação, teme dar-se por vencida, dorme de tarde enganando os relógios, acorda para jantar e há pessoas. dependências. está viva.
quinta-feira, outubro 30, 2008
inconsistência
dar a nossa a vida a quem pergunta por ela
(eu perguntei por ela sem grande sentir)
explicar a nossa dor a quem se deu o gesto
(eu ouvia mas mas mudava a frequência da rádio ao mesmo tempo)
esperar que o telefone toque como naquela semana parecida com esta
( )
doer ter feito um desenho com as mãos com tanto jeito
doer ter dado conta da nossa dor
doer ter pensado que a dor doía no outro
ocupado
a escapar-se
entender o silêncio
e depois:
viver o silêncio
(eu perguntei por ela sem grande sentir)
explicar a nossa dor a quem se deu o gesto
(eu ouvia mas mas mudava a frequência da rádio ao mesmo tempo)
esperar que o telefone toque como naquela semana parecida com esta
( )
doer ter feito um desenho com as mãos com tanto jeito
doer ter dado conta da nossa dor
doer ter pensado que a dor doía no outro
ocupado
a escapar-se
entender o silêncio
e depois:
viver o silêncio
domingo, outubro 26, 2008
Inferno
pensava que conhecia o inferno, mas estes anos todos andou pelo purgatório. sabe o que é um ataque, sabe o que é quase morrer, mas o seu corpo estava sempre encostado a qualquer coisa, e nunca cegava. era atirada sem piedade contra paredes cobertas de espinhos, mas as paredes são condição de espaço, e por isso ela estava ali e via dali.
- estou péssima: eis o anúncio do início da semana
- é uma fase, isso passa.
chegam os três dias temidos e entra num não-lugar; tudo é dor e chamamento para morrer imediatamente, antevendo os cerimoniais em todos os seus sons, em todas as cores dos tecidos deles. não há esquinas, não há paredes, não há onde amparar o corpo para ganhar perspectiva e cega-se. há, o que é violentíssimo, gravidade, mas não cai num qualquer chão, não choca com nada, quando a dor insuportável a faz circular a alta velocidade e lhe dita morre imediatamente. não há qualquer apoio, ponto de chegada ou ponto de partida.
(a dor em infinita vertigem).
grita mãe, mãe, mãe, esmurrando a cabeça, até a mãe aparecer. ao fundo, o olhar seguro do homem que veio de avião em seu auxílio. não chega. chora muito alto, agarra-se à barriga da mãe e quer muito entrar lá dentro para começar tudo de novo.
domingo, outubro 19, 2008
domingo só
chegou a única mensagem que não lhe traz nada senão a morte. o dia começou azul fresco numa praia onde ao longe as gaivotas não ameaçadas a deixaram dormir em vez de morrer. às cinco da tarde já viu um filme enrolada numa manta a recordar-se de como a temperatura mudou entre o meio-dia e aquela hora: começa a pensar e a fumar. está descalça e o coração acelera sem aviso. o silêncio é tão espesso que as lágrimas correm de fora para dentro. lembra-se do princípio dos três dias que matam as semanas e não sente calor. lembra-se da única mensagem que não lhe traz nada senão a morte. à hora do almoço sorria com um amigo e uma voz interior perguntava-lhe se pensava mais na morte ou se pensava mais na velhice. quando chegar a velha os vizinhos terão paz. mas a sua voz sussura-lhe que não verá num espelho uma velha. não recebe a carta que lhe daria talvez uma semana de vida. não recebe a mensagem que lhe daria talvez uma hora de alegria. chegou a única mensagem que não lhe traz nada senão a morte. morde a língua para fingir que quebra o cimento do silêncio. quando era pequena, havia a missa das sete. agora bebe um copo à mesma hora. de manhã, bem vistas as coisas, já estava enjoada. secou-se após o banho a ver a sua amiga morta mesmo antes de rumar à praia. fazia o creme circular à volta dos olhos e via aqueles olhos verdes. hidratava a boca seca e ouvia a boca da amiga morta falar da certeza da vida eterna. então perguntou-se nua se a amiga morta ainda a amaria integralmente, agora que podia ver tudo o que por cá fazia. esse pensamento foi o roupão a cobri-la da tristeza que cresceu em silêncio pelo dia fora. quase seis da tarde e a dor, ou o vazio, que são sinónimos, é enorme.
sexta-feira, outubro 17, 2008
Sonhos IV
cada Sábado um instante, mas depois uma facada, enche-se de sangue, as palavras estão gastas, são muitos séculos e muitas pessoas a utilizarem palavras, por isso é com muito ódio que se força a dizer que depois do sangue vem o tal cansaço e a raíz da ansiedade semanal, mais um frasquinho de veneno para a soma dos instantantes inúteis, como este homem, que lhe ataca os vícios como um soco nos rins e que está de perfil. ela olha-o e vê quatro olhos na sua face. dois onde devem estar e mais dois um pouco mais abaixo e o homem fala como se ter quatro olhos fosse normal, mas ele tem mesmo quatro olhos, e talvez ao acordar ela se dê conta que aquele peixe gigante que a sangra como nenhum outro tem sempre duas intenções, e daí o horror de quatro olhos; casa sábado um instante e o sangue dá nestes sonhos. deita-se no divã e perguntam-lhe pelo seu poder. a música soa sempre muita alta, ela tem, sim, muito poder, mas depois vem uma facada, enche-se de sangue, sonha com um rosto com quatro olhos, atira as pessoas pela janela, faz de todos os rituais o retrato da sua tese sobre os afectos e vai à sua vida, com a raíz da ansiedade semanal bem semeada.
bebe muita água.
quinta-feira, outubro 16, 2008
"talvez a ternura nos salve"
um dia ela estava como uma balão por soprar e o escritor escreveu-lhe talvez a ternura nos salve. ela explica-lhe que são quase dois mil dias de balão por soprar, essa coisa de já não amar mas de ter a imagem tão certa do que foi isso, mesmo que lhe digam talvez ficciones o passado, tanto faz, são quase dois mil dias de balão por soprar, e lá atrás havia um poema de manhã, sempre, ou muitas vezes, colado no espelho da casa de banho. de noite havia um veludo escurecido pelo tempo, não era só genética, umas costas que olhava depois de adormecidas para falar com elas e dizer-lhes tão-só obrigada. são quase dois mil dias de balão por soprar, mas talvez a ternura nos salve, de certeza que a ternura nos salva, diria, porque as pernas sabem do ofício de andar, não desistem. são quase dois mil dias, são, mas a ternura talvez nos salve, por exemplo numas mãos que deslizam a construir a palavra ternura numa pessoa que nos diz como estás? é muito.
terça-feira, outubro 14, 2008
A não perder
Ver: alguns dos quadros do Zé Lourenço que vão amanhã a exposição na Sociedade de Geografia de Lisboa na Rua das Portas de Santo Antão às 16h30
segunda-feira, outubro 13, 2008
Mudança
Ela às vezes olha para o lençol e diz-se assim: que cansaço. Ela às vezes apaga aquele cansaço com uma noite a sorrir. Nessa noite a sorrir não está só, como estava na noite do lençol com quatro meias perdidas, por ali. Que cansaço. Nessa noite, a sorrir, encosta a cabeça numa cintura que tem mais de trezentos dias e ampara no colo a cabeça com um cabelo que já foi mais curto, mais comprido, mais curto, mais comprido. Respira devagar e a ansiedade da memória da véspera vê-a derreter-se num gelado que não comeu, porque ela às vezes olha para o lençol e diz-se assim: que cansaço. Há um perfil que não sabe que tem o perfil que lhe empresta o olhar dela, vira-o de frente e atira-o para trezentos dias antes, numa cadeira um em frente ao outro, apenas para recordar um olhar que foi tão sorvedor que fez de mãos, ali, numa sala ao lado -lembras-te?Respira um pouco mais depressa e depois entrega-se ao silêncio, com a boca muito seca, por isso é que respirou por instantes mais depressa, é que ela à vezes olha para o lençol e diz-se assim: que cansada.
quarta-feira, outubro 08, 2008
Belgrado II
nós, sempre na linha da frente
há mais de quatro séculos nisto - é assim, é por isso, que é assim que nos vêem
dizes
in time of roses drink my wine, Dragan
os poemas teus em cima da mesa do pai morto
tinhas dezanove anos e soavam todos a garganta de velhos
falas, falas, falas, dás uma aula de literatura sérvia a um grupo de alunos croatas
e os alunos foram repudiados pelas suas famílias - o ódio, tanto ódio, e soa a guitarra
we should stop this and listen to your fado, Isabel
nós combatemos sempre na linha da frente, entendes? - e soa a tua guitarra
in time of roses drink my wine, Dragan
pode nem sempre ter sido como disseram que foi, é isso?
não choras
não gritas
curvas-te todo numa guitarra- vamos?
vou falar-te dos meus poemas sobre mortes acidentais
elas todas têm um sentido, mas aqui não se fala de mortes acidentais
vou falar-te da morte de um dentista
não choras
não gritas
mordes os lábios, mordes mais de quatro séculos na linha da frente
e eu digo: põe esse peso sobre mim
eu aguento
há mais de quatro séculos nisto - é assim, é por isso, que é assim que nos vêem
dizes
in time of roses drink my wine, Dragan
os poemas teus em cima da mesa do pai morto
tinhas dezanove anos e soavam todos a garganta de velhos
falas, falas, falas, dás uma aula de literatura sérvia a um grupo de alunos croatas
e os alunos foram repudiados pelas suas famílias - o ódio, tanto ódio, e soa a guitarra
we should stop this and listen to your fado, Isabel
nós combatemos sempre na linha da frente, entendes? - e soa a tua guitarra
in time of roses drink my wine, Dragan
pode nem sempre ter sido como disseram que foi, é isso?
não choras
não gritas
curvas-te todo numa guitarra- vamos?
vou falar-te dos meus poemas sobre mortes acidentais
elas todas têm um sentido, mas aqui não se fala de mortes acidentais
vou falar-te da morte de um dentista
não choras
não gritas
mordes os lábios, mordes mais de quatro séculos na linha da frente
e eu digo: põe esse peso sobre mim
eu aguento
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