segunda-feira, novembro 27, 2006

onde ficou a tua voz?

está a chover, de repente, já voas, esse avião, de que falava ontem. está a chover, entendes?
onde ficou a tua voz?
está chover, de repente, um castigo, uma chicotada contínua na última memória do teu olhar.
onde ficou a tua voz?
está a chover, de repente, uma aflição, estou a entristecer, a envelhecer: estou a morrer.
onde ficou a tua voz?
está a chover, de repente, e tu sentado, num banco, esse avião, quem te ladeia?
volta, meu amor, está a chover, estou a morrer, fica, porque não sei, de repente, enquanto chove,
onde ficou a tua voz.

domingo, novembro 26, 2006

até que voltes

estás quase a apanhar o avião que te leva destas tuas interrupções; sei que não dura muito mais a tua vizinhança; sei porque começo a chorar subitamente, o coração acelera, está na hora: quando voltas?
estás quase a voltar para esse país frio e quando acontece o estares quase a voltar para esse país frio há uma faca que me apanha distraída, na alegria que dizes predominar-me, e que corta todas as arestas do meu sorriso, da minha tranquilidade, da minha vontade. é assim um terramoto num pormenor: estou a fumar um cigarro, confortável na minha sensualidade, e deixo de ouvir a voz que fuma comigo. resta-lhe apenas um calacanhar e nele vejo o peso, o espaço, a textura, o horror da tua ausência.

quinta-feira, novembro 23, 2006

Aqui, ao longe

ao longe, o ruído contínuo do combóio não te leva. és esse som distante, mas audível, e que assim se estabiliza num estar paralelo a mim.
ao longe, o ruído contínuo do combóio não te leva. pouso as pálpebras na escuridão delas, com força, com peso: o ruído ganha proximidade, as faíscas que produzo nas retinas magoadas; assim o meu corpo os carris do combóio que te não leva. inisisto e pressiono mais as pálbebras; o ruído tem agora a forma da deformação do meu equilíbrio. estou a perder a postura, vou cair, tonta, e ser a forma do combóio do ruído em que me estás.
ao perto, de olhos fechados, o combóio não te leva, nem pára: está parado em movimento.
ao longe, uma mulher de olhos abertos ficou interrompida.
ao perto, o ruído do combóio faz-se sobre o meu corpo deitado a faiscar sem agressões.
e tu deslizas.

quarta-feira, novembro 22, 2006

Eis o amor

e leio o poema ao telefone. a tua voz arredonda-se e entra dentro de mim, fura-me a cabeça; partícula a partícula a tua voz corrói a ansiedade silenciosa do medo; partícula a partícula, a tua voz costura-me o tecido da ansiedade silenciosa da verdade: a paz de te sentir. um sorriso a escutar-te, os meus olhos tristes mesmo quando solto uma gargalhada, uma tristeza harmoniosa; eis o que faz do amor uma dor: eis o amor.
e leio o poema ao telefone. a tua voz tem intervalos, respiras, e eu inspiro o ar que expiras; um dia depois ainda o amacio na minha língua ou amacio a língua com o ar que expiras. não dói a vida que me escapa no homem que me visita dizendo que linda mãe darias. só tu me dóis, o amor é uma dor: eis o amor.
e leio o poema ao telefone, escorrego os dedos na janela embaciada quando termino, passo-os na tua cara distante e penso: abraça-me com força, não me mordas, como já te pedi, mas abraça-me com muita força, em silêncio, e deixa-me chorar convulsivamente este amor, abraça-me com muita força, em silêncio, é só isso, permite-me essa força: o meu futuro.

domingo, novembro 19, 2006

Este (teu) espaço

Ouço sempre este, este, este espaço na tua voz, o sítio onde não sou, onde não somos? Onde não somos. Ouvirás o mesmo espaço, não na minha voz, mas na tua, és tu que o crias, és tu que o queres, na minha voz ouvirás o que temes, o que teimas em temer. Nevoeiro, hoje, e mais um dia para percorrer sem saberes o que faço na tua emigração, por onde ando, por onde choro, por onde te ocupo. És o único amante que não tenho, és todos os que tenho não amando. Estou a doer. Estás a doer. Volta. Como se já tivesses sido. Agarra o dedo que limpa a grainha de laranja que se colou na tua pálpebra e beija-o com humidade. Os teus gestos secos compensados todos nessa voz que cria o espaço para me evadir no homem que chega e que se atreve, naturalmente. Tu nas formas todas que me visitam, durante as horas do espaço que a tua voz, tijolo a tijolo, demarcou para a minha vida.
Ouço sempre, sempre, este, este, este espaço na tua voz. Nevoeiro, hoje, e estás a doer-me difusamente. Vou gritar de fora para dentro, ou vou perder a harmonia da dor e furar o nevoeiro com um grito cheio de prazer. E de sangue. Depois, deito-me na cama que desconheces e vejo embriagada o tecto da tua infância cheio de varejeiras: merda, merda, merda, digo. Deita-te de uma vez por todas, cala-te no espaço onde falas e fala no espaço onde me matas.

sexta-feira, novembro 17, 2006

Para a Catarina

por um dia que fosse, vestiria a tua pele e tomaria a tua dor. esta impotência perante o peso dos anos que agora vês apedrejados sem aviso faz da tua imagem uma exortação.
ninguém te vê amparar a mágoa numa corcunda, essa que se forma nas pessoas comuns, eu olho-te e penso: como manuseias esse sorriso sofrido, como equilibras a coluna quando te condenam à força da gravidade que nos leva ao centro escuro do mundo? cada movimento do teu corpo desenha a história da tua história e a doença que predomina todas as doenças: a solidão. dói culposamente saber que andávamos lá, nos anos nos dias e nas horas em que sofrias calada. dói reconhecer que fomos espectadores imóveis. e sorris. hoje. hoje que te roubam o desígnio de uma vida, sorris para nós. quando te vejo, vejo o quanto sou pequena e o pouco que ainda fiz por um dia ser olhada como te olho. hoje és as minhas lágrimas. a tua dor é pesada, mas é também de uma beleza difícil de acolher: um espaço de luz há muito negado onde apareces a inspirar quem passa por ti.

quinta-feira, novembro 16, 2006

Para a L.

olha a menina de 11 anos: tem o corpo frágil, cresce com dificuldade, no olhar que pede em silêncio vai a dor por se sentir olhada como uma fraca. rejeita tudo o que pode ser rejeitado do mundo exterior, esse que lhe dita a condição de baixinha e de lenta, sobretudo de mais baixinha e de mais lenta do que os outros.
olha a menina de 11 anos: encontra-lhe em sombreado uma outra menina, presa naquela pele transparente, a menina que criou no seu mundo interior onde não há medida nem velocidade. o medo que pesa na criança dita-lhe um vocabulário invulgar, sofrido, porque contido. criança alguma diz, perante o presente que sonhou, que gostou bastante; criança alguma, atacada pelo colega que a esmaga quotidianamente se lhe refere como um menino chato; criança alguma projecta a dor que o padrão em redor lhe incute numa exigência ética de grau quase irreal, como que a querer que fracos os passos que dê sejam pelo menos fracos passos de menina boa.
Olha a menina com 11 anos e inicia-se o diálogo:
- que fazes?
- escrevo no meu diário.
- que escreves?
- os meus pensamentos e os problemas, também dos outros.
- preferes escrever a falar sobre o que sentes?
- sim. prefiro escrever a falar.
- por quê?
- porque às vezes os nossos pensamentos podem magoar as pessoas.

terça-feira, novembro 14, 2006

o que fazer amanhã com os meus ontens?


o que aqui nos assalta não é o medo. vértebra a vértebra se constrói uma hesitação. os azulejos brancos confirmam, insistem, na nudez de uma hesitação que nos assalta. a visão do chão que não existe mais nas casas de agora é a metáfora do enclave de quem se agarra toda numa vertigem: o que fazer amanhã com os meus ontens? o lugar onde pousa o corpo nu permitirá o som de um gotejar que vinca a banheira num fio amarelo. nenhum outro som, e o silêncio do tempo passado da geometria desta casa de banho. a janela fechada permite habitar para sempre a hesitação. uma das maçanetas está porém aberta: eis o futuro a obrigar uma resposta.

segunda-feira, novembro 13, 2006

liberdade breve

ter um segredo no teu ombro é-me hoje uma calma ansiosa. começaste num toque de cotovelo. libertada a besta que há em dois familiares, sais e não dizes grande coisa. dizes: eu não digo isso. e pensar que o apoio dos cotovelos foi a intimidade idêntica com as palavras. onde está hoje a palavra depois da vírgula? as tuas frases começam a morrer do fim para o início, lá onde sou um vocativo.
quem nos encontra é o nosso carrasco, mas nós oferecemo-nos a essas mortes, porque da prisão anterior ao encontro até ao lugar da decapitação há um breve passeio em liberdade.

terça-feira, novembro 07, 2006

Vê-me II

eu sei que vens cá hoje de noite. eu preciso que venhas cá hoje de noite. que me leias: que me vejas. que história tenho para contar se não a não-história que é conhecer-te inteiro numa intuição que desconheço? brinco com as palavras?
- você é uma provocadora.
- nem sempre.
há um mistério na tua presença que só encontra analogia numa melodia que ouvi pela primeira vez numa costa assustada por nevoeiro. límpida, no entanto, esta vontade, leve, de falar, de falar-te. não: de ouvir-te. como hoje:
(eu estava ali a ouvir-te acalmada pelo teu som não sei por quê, talvez porque me causes uma ansiedade que derrota a ansiedade dominante, a que magoa. eu estava ali a ouvir-te e questionei todos os teus gestos, decifrei cirurgicamente os teus não-gestos e perguntei: perguntas-te o que estou a pensar? perguntas-te o instinto que mato reclinada na cadeira? ou sabes que os teus olhos deviam-se perigosos para a tua boca? ou sabes que ao lado da imagem do espaço que ocupamos há uma outra que se vai criando sem acontecendo, onde um momento cala o pretexto de todos os verbos?)
não tenhas medo, penso. eu vivo de momentos, atrevo-me.
(sussurrasse uma mulher - hoje de cinzento - ao ouvido dele: não tenhas medo de mim. não me tires essa exclusividade)

segunda-feira, novembro 06, 2006

Nós

a identidade. mais um passo. uma explosão entre pessoas cruzadas na circunstância de uma sensibilidade. a comunicação quase chorada. porque se descobriu num grupo que há reflexos de cada um em cada um, eu nos teus olhos castanhos, tu na minha dor passada, nós frenéticos a corrermos nesta descoberta. um homem, uma mulher, outro homem, outro homem, nada importa, idades distantes, nada importa, nós, nós estamos aqui, nós estamos vivos, nós não sentimos aquele abismo sem um par, afinal faltava fazer do medo um verbo, dizermos eu também, e correr, correr como quiseremos para os braços uns dos outros, correndo nesses braços ao nosso próprio encontro.

sexta-feira, novembro 03, 2006

eu anoiteço de manhã

é de manhã que começa a anoitecer. finalmente. ou: eu anoiteço de manhã? é de manhã que o silêncio apaga a luz e não de noite, quando o terreno de uma gritaria de imagens com movimento novo se prepara todo numa almofada. duas pessoas suspensas na tábua posta à altura de uma nuvem e o alentejo lá em baixo, a nossa amiga a chamar por nós, que não saltamos, porque a água não tem profundidade. tu, sem medo, explicas isso mesmo e moves o corpo para o limite da nossa tábua, sempre sorrindo. não há vento, nem calor, eu tenho medo. e ela está a chamar por nós.
é de manhã que começa a anoitecer. só de manhã. o silêncio que acolhe o medo do dia sonoro, sonoro, sonoro, de toda a minha noite. ou: eu anoiteço de manhã? nos ossos há elásticos imperceptíveis que os prendem à viagem adormecida, daí a dor no caminhar, a resposta diferida à interpelação casual. é que eu anoiteço de manhã. condenada a dar resposta ao que se me impõe como sendo dia, sem silêncio.
uma força imensa puxa-me a memória para aquela tábua; essa força, de dia, chama-se febre.