sábado, janeiro 27, 2007

podes falar?

podes falar?, escreve.
não há sinal de resposta na longa noite que cresce para ser, no final, uma sombra num lençol apertado.
podes falar?, relê o que escreveu.
encolhe-se com dores numa vértebra, com dores afinal em duas vértebras, com vértebras a dizerem a palavra dor, continuamente. bombas silenciosas, as janelas que desaparecem, a distância entre os seus olhos e todas as distâncias morrem, ou vão morrendo: sobra o mundo inteiro, o espaço onde a resposta não surge, onde as letras de uma simples atenção não acontece, onde a sua solidão não encontrou interrupção.
cega. nada mais para ver. vê o que recorda. existe no cérebro sem odores.
eis as imagens:
podes falar?
naquele tempo, em que a pergunta lhe era dirigida, respondia: claro. sempre. cansada, alegre, triste, ocupada, no inferno, debaixo de um corpo, respondia sempre: claro. uma voz doce surgia no telefone, interessada nela, encantada por ela, preocupada com o que acontecia por dentro de dentro do que ninguém alcança. nesse tempo, essa voz fazia dela uma pessoa. como essas vozes todas fazem das pessoas uma pessoa.
podes falar?
naquele tempo, havia uma voz que não queria terminar o dia sem se assegurar de que ela estaria inteira e era assim que nesse tempo essa voz a fazia inteira.
a voz tinha um dono, uma boca, um rosto, uma expressão, um sorriso, uma delicadeza, uma intimidade que pedia que fosse protegida para sempre, um carinho, um respeito, e agora, e agora, e agora, onde pousa o rosto quem não tem uma pergunta que lhe garante a sua verdade? onde soletra os episódios aflitos que aquela voz entendia quem nem desistindo de esperar por ela e se atrevendo a escrever
podes falar?
não tem sinal de resposta? como pousar a roupa na cadeira em paz com os ossos? não chegando a voz, nada sobra desta história se não dois corpos?
ou um apenas?
não havendo resposta alguma, como recordar uma tarde encantadora de palavras antes de se permitir despida sem a temer em ti perdida?
passou a noite num sorriso melancólico. sem verter uma lágrima. não há qualquer novidade na desilusão. nem na sua banalidade. há apenas, por vezes, a esperança de se ter encontrado alguém que entende verdadeiramente o que é ver o outro. há apenas, por vezes, banalidades bem disfarçadas; e por momentos, por longos momentos, são de uma beleza vertiginosa.
por isso, na realidade, terminada a noite, sempre lhe cai uma lágrima.

quinta-feira, janeiro 25, 2007

por que te tremem as mãos?

por que te tremem as mãos?
a interrogação em que se vê há vários anos, uma pergunta que é um espelho atrás da porta que se não esperava abrir. uma surpresa. não sabe que treme até lhe perguntarem:
por que te tremem as mãos?
não sente esse tremer, pior, não o vê. sabe dele assim, quando um olhar o faz acontecer. tremerá como linguagem do que é uma profunda melodia interior.
hoje talvez precisasse de alguém que lhe cantasse uma canção suave, encostada ao ouvido: ser o som de uma boca o que não é afinal precário. hoje talvez o fim de dia pesasse menos se alguém lhe desse a provar um vinho de um copo usado: ali o sabor interposto de uma língua, sem pedir a dela, sem exigir mais nada.
por que te tremem as mãos?
talvez lhe tremam as mãos porque não tem onde as pousar. talvez por isso os cigarros uns atrás dos outros sejam os rumos tristes de uns dedos sem outros fiéis. talvez por isso lhe tremam as mãos, como lhe treme um outro ser dentro de si, que insiste em negar-lhe um agasalho.

quarta-feira, janeiro 24, 2007

escrever sem medo: ser

entre a verdade e a verdade da mentira: a ficção que ainda é verdade apenas, a minha exposição, o teu temor por mim, que agradeço, o meu cansaço das sombras, o impulso ontológico de ser, de ser assim, de gritar sem medo, de escrever o que pode merecer um enforcamento, a tensão do desiquilíbro de escrever, a morte da omissão.
entre a verdade e a verdade da mentira: eu sou assim. ou: eu preciso de ser assim? digo que não tenho medo, temendo em cada aviso que me me fazes, temo porém muito mais passar por aqui sem ser, sem ousar ser assim, meu bom conselheiro, estou numa vertigem, vem aí um escrito, faço-o como quem tem de assinar uma intimação judicial, sem pensar, um dever, sob pena de ser julgada, aqui, por dentro, por um fantasma que se chama diluição, ou não construção, ou apagamento, da identidade, por isso me lanço, sem inlclinações, sem meditar no risco, seja o que deus quiser, o canto de cisne, ou o encanto de uma vida que mereça a pena, por isso me lanço, entre uma lágrima e um sorriso, a tremer e a erguer-me, sempre instável, sempre viva, isso, é por isso, assim estou a pulsar, está a pulsar, uma presença dentro de mim, maior do que a dor que me encurralou naqueles tempos, e pode ser que me amem na minha ousadia, e pode ser que me amem na minha dor, e pode ser que me amem nas minhas agressões, e pode ser que me aceitem, e pode ser que me acolham, entre a verdade e a verdade e a verdade, pode ser que perca a raiva à cegueira colectiva, pode ser que outros se consolem por vizinhança, e pode ser que perca o medo de mim, e pode ser que vingue a tese da coragem de se ser como se é, assinando sem outro medo que não o de nós mesmos e enfrentando-o assim mesmo: soletrando-o.

terça-feira, janeiro 23, 2007

no sítio onde não soas

dormir de tarde e fazer do princípio da noite uma manhã. o método sem remédio dos remédios para chegar aqui sem a tua voz. o espaço onde não há o sinal de existires – de existir para ti – chama-se a minha casa: está deserta de tantos sons sem conteúdo a ameaçarem a utilidade de um cérebro a que me rendi. uma dor na nuca a pedir que mude de posição, o corpo torto no sofá, uma sepultura filha de pais incógnitos, uma terra de ninguém, o lugar incerto dos mapas minuciosos. as estantes cheias de poemas a poderem dar movimento ao areal em que (e)s(t)ou, nada, escorrem as horas e rendo-me à programação que for, ela é só uma casca de ovo, eu uma gema circular, a circular, a entristecer, a envelhecer. nem um som, sinal algum, um escrito, uma preocupação, um amor inventado, sem urgência, uma sabedoria; nada, é noite, uma fadiga penosa, os meus hinos à noite, e ontem conheci uma pessoa qualquer, e ontem morreu um cão que por aqui passava, e há três dias não deste conta de que cuspiste a palavra adeus quando eu partilhava um episódio importante, e na semana passada uma oliveira milenar foi demolida para se erguer uma casa; frases estas a tirarem-me pelos olhos outros deste espaço que não tem sequer a poesia da desagregação; estou inteira, um bloco, duro, resistente, de solidão compactada. perguntar se estás bem é dizer-te que estou a descontar o tempo que resta da minha paz por magoar. preciso de um beijo, já não do teu, preciso de uns braços, lembrei-me dos dele, da sua pele sempre macia, do seu corpo harmonioso, da sua ausência agora mesmo, lembrei-me dos braços do outro que me confessa que seriam meus, não fosse a doença que tem, lembrei-me dos meus braços, passei a língua num vinho azedado e entrei na insanidade que é conjecturar o cenário em que te diria tudo o que te vem faltando ouvir; depois lembrei-me de uma menina a morrer há muitos anos, invadiu-me a imagem de uma criança que se excitava com nove anos sem saber que magia era aquela que lhe aquecia o sexo, depois vi-te feito demónio a invadir o sexo de uma menina desaparecida.

domingo, janeiro 21, 2007

espelho teu

tem calma, dirás?
um frio inesperado: descobrir a mácula do amor.
o frio no quarto do hospital tem a culpa dessa face obscura do amor.
quem permite ver-se amado assim é um tirano disfarçado.
(cambaleante, está a desamar-te).
este frio tão repentino, sombreado de mágoa; que serei para ti que não um espelho?
espelho teu, espelho teu, dois pregos caídos nesta cama, os meus braços sem préstimo, a tua crepitação, a tua respiração ofegante a revogar o medo da meia-idade.
fazer do outro um espelho é despotismo, espelho teu, espelho teu.

quarta-feira, janeiro 10, 2007

como o sentires: assim o mundo

as coisas não estão assim tão negras, minha linda.
eu digo-te isto e não creio em nada do que os meus lábios vão mentindo. queres lá saber se a descrição das imagens, mesmo com sangue nelas, é outra que não um cume cheio de gelo; dirás, como Rimbaud, acredito que estou no inferno, por isso estou nele. vou talvez parar esta boca tão social a querer agarrar-te e dar-te uma outra voz, essa já percorrida na vizinhança da verdadeira realidade: outra há que não a que sentimos? não, pois não, minha linda, e recordo bem a estrada velha de sintra cheia de curvas nos únicos momentos de irreais rectas; então poderia acelerar o carro, o meu corpo ficaria intacto, diria a geografia, mas eu acreditava que estava numa tão precisa curva, por isso estava, que fazer se não travar a fundo, antes que morta, e pior que um corpo dilacerado é um cérebro assustado.
as coisa estão negras, minha linda, se assim o dizes. fala-me desse mundo negro para que foste atirada, chora o que te obrigar a dor e mata sem piedade quem se atrever a dizer-te louca.

sábado, janeiro 06, 2007

liberdade breve II

parece que sim, que se oferece a um carrasco que diz:
já te digo qualquer coisa.
parece que sim, que o dia todo valeria nada sem essa maldade
por que se espera, sempre, e para sempre,
em cada tão magoado e adiado minuto
parece que sim, um barulho seu nas escadas, uma linha de pó
inalar-te sem espelho por baixo, ou tu o espelho,
mas só quando sais e se recorda em ti o que posta lá não foi assim tudo
parece que sim, uma doença que se ausenta num tempo breve
o passeio em liberdade, a resignação ao que possa ser
possa ser um coração menos apressado, uma paz neste palc0
já te digo qualquer coisa, parece que sim
meu amor

vem

não sei se haverá amanhã contigo, nem se sabes que tenho o túmulo que chama uma morte sem agonia, nem se sentes que andas seduzido pela morte errada, nem se entendes que falo de túmulo para te dar um outro lugar para morreres, nem se ouves o que te escrevo, isto que te salva, por trás de cada linha, uma presunção, este túmulo a chamar por ti amanhã e o meu rosto depois uma linda lápide.
não sei se haverá amanhã contigo, sei que me expando hoje de noite para essa possiblididade, sem saber se o aviso de que estás doente quer dizer que não há amanhã contigo, como um barco, prefiro pensar, que não perde o destino à conta do farol, vem ter comigo, estou a pedir, sem o som da tua adesão, sem a certeza de que estás comido pela mesma condição, eu espero que haja amanhã contigo e que morras neste túmulo um pouco cavernoso até que haja amanhã contigo e que possamos morrer a morrer.

sexta-feira, janeiro 05, 2007

retrato

este rosto que vês hoje, assim sem deixar adivinhar que sou magrinha
não sei bem como o vês: talvez nas tuas pálbebras um espelho, e o meu olhar trema como as mãos, assim triste, assim excitado, assim calmo, assim morto, assim a nascer
(para ti)
este rosto que vês hoje passou todo nas minhas costas
e ontem - imagina - os meus dedos não aqueciam, na cama, uma insónia à conta de dedos frios
uma agonia em extremidades
mãos frias, mãos mortas

vai bater àquela porta

não dou pelas mudanças - digo - excepto ontem e hoje, que as sinto todas
esta calma desconhecida, este vazio de ansiedade
este silêncio de medos
fosse uma pele cheia de cheiro a fazer-me assim, hoje tão ondulante,
mas sabes bem que não, que não, que não:
rendi-me.

terça-feira, janeiro 02, 2007

nos últimos dias

um agrafador une-te a este saco apertado, entre a garganta e o umbigo, fora e dentro, como o teu movimento
e lá fora, bem (lá) fora da minha cabeça, escuto com vaga atenção o cão rafeiro que tinha um nome.
ainda não deste por esta película, tão bonita a tapar o teu buraco, o meu buraco, o que fiz de mim: nos últimos dias.
aquele ganir mansinho que o jackie não abandonava, uma orelha meia comida por uma lepra de cão, o medo que ele tinha de ser apanhado em cima da cadeira dos casacos: saltava de repente e fugia encolhido, com uma pata que nasceu já sem uso a abanar deficiente.
e eu...naquele tempo...não chorava.
passei a mão nas escadas e senti os passos que não tens dado nelas; bati à porta de uma vizinha velha e disse-lhe: vim aqui desejar-lhe um ano de merda e continue a caluniar-me que eu gosto.
um sol de janeiro a acalmar uma margem qualquer, as pálbebras tristes do meu cão ressuscitado, um lenço nas minhas mãos trémulas e um sorriso só a olhar o paredão:
é que eu... naquele tempo...não chorava.

segunda-feira, janeiro 01, 2007

eu te digo

eu te digo, o primeiro dia é um amontoado de terra, escura, fria,
cá de baixo respira-se a ouvir o som de uma guitarra, ao longe um piano a ampará-la
(a amparar-me)
eu te digo, o primeiro dia decompõe em humidade tudo o que era seco no lugar certo, está a pesar, tanta terra, eu vou, já te digo onde porei os meus olhos...
contei todas as pedras de dois metros de calçada, os passos da minha infância, os gestos da tua agressão, os teus dedos a isolarem a unha que traça o corte, um risco, um risco quase fundo e tão arriscado cuspir a merda toda que os pratos da bateria explodem por mim …
eu te digo, o primeiro dia junta no céu a saudade do amor e o grito aflito de prazer, a histeria em que fica o corpo depois de se perder o ar…
arrumei a roupa da cama e descobri uma mancha tua, cheia de séculos, uma cicatriz nos meus lençóis, a pedir um luar que lhe dê menos insanidade…
eu te digo, eu vou tomar banho e enrolar o cordão do chuveiro no pescoço para te sentir passado com uma gaja nua de pescoço atado, antes que sem ar de vez, depois, eu te digo, um espelho, um gelado de laranja por vinte escudos, no fim de dia de praia, e afinal uma mulher já feita, posta para aqui a olhar para o que resta de ti, uma mancha na minha cama, mais morta que merda de pombo,
ou pegar numa fotografia e antes dizer:
eu nada te digo e esfrego-me na tua mancha e devolvo-lhe cheiro e passo-me numa pátria de loucura, a dimensão do teu esquecimento, a aflição do teu recado, eu vou, sem te dizer, eu a rir sem parar, enquanto me esfrego toda, a rir sem parar, i know some day you´ll have a beautiful life, a cantar, a gritar, é assim que me passo…
havias de ver.