sexta-feira, setembro 29, 2006
Este mapa II
(Talvez )
Quando parar de pensar, alguém olhe por este mapa e conte a história dele.
(Talvez)
Seja verdade que a dormir sou mais eterna que acordada.
(Talvez)
Os dedos à noite não estejam a olhar por mim, mas a olhar para mim.
(Talvez)
Sejam diurnos os mapas cobrados nos sonhos e nem na morte vencidos.
(Talvez)
Não haja terror igual ao de uma cirurgia póstuma da nudez.
quinta-feira, setembro 28, 2006
Na nossa mesa
Ontem viu um sonho com menos dez quilos. Um mês depois, no local de encontro, lá estava quem sobrevive por acaso de encontro para encontro.
Seria bom ver o seu andar, antes daquela hora, a descer a calçada? E ver o que é a rotina que antecipa o trancar da porta do seu encontro?
Olhou o homem, o nome, a pessoa, sorriu: silêncio. Induz devagar um abraço a quem se inclina por vocação apenas para um beijo.
Seria bom ver o seu andar, antes daquela hora, a descer a calçada? E ver o que é a rotina que antecipa o trancar da porta do seu encontro?
Olhou o homem, o nome, a pessoa, sorriu: silêncio. Induz devagar um abraço a quem se inclina por vocação apenas para um beijo.
É aqui que começa mais uma noite de diálogo, primeiro com duas palavras por minuto, cortadas pela respiração do seu cansaço, depois vencedora, apaziguadora de todas as dores. Uma hora depois, estão soltas as nossas gargalhadas, e nem a inevitável conversa sobre a doença do meu sonho com menos dez quilos as interrompem. Naquela mesa, não há fim de noite, não há o próximo mês sem notícias, não há espaço para o espaço da notícia fatal.
De manhã, já não estou à mesa, já posso chorar. Ao mesmo tempo, a força da intemporalidade daquela mesa dá-me a resposta: o que nos salva é não te ver e nada saber de ti até àquela hora.
De manhã, já não estou à mesa, já posso chorar. Ao mesmo tempo, a força da intemporalidade daquela mesa dá-me a resposta: o que nos salva é não te ver e nada saber de ti até àquela hora.
quarta-feira, setembro 27, 2006
Corpotexto
Talvez o paradigma do desgosto seja uma unha encravada no pé.
-Há muito corpo nos teus textos. É mau sinal.
- Ando mais ou menos. Ando mal. Ando muito mal.
- Tem cuidado contigo. O que andas a fazer?
- Eu aqui não tenho medo.
Há muito corpo, por aqui. Se é nele que tudo se exprime, que fazer? Não escrever? Hoje? Mudar de tema? E se hoje abrisses esta janela e visses um texto sobre o mar? Teria de ser uma outra janela, talvez uma janela da Sofia, há nas dela poemas de sobra sobre o mar; por aqui será sempre a pele, o corpo, a história dele, a minha história, a nossa vida, a de toda a gente. O corpo, do cabelo ao sexo, é a morada de todas as descrições; não sei por quê, sei que é no fígado que me dói a criança que morre dentro de um saco de plástico.
-Há muito corpo nos teus textos. É mau sinal.
- Ando mais ou menos. Ando mal. Ando muito mal.
- Tem cuidado contigo. O que andas a fazer?
- Eu aqui não tenho medo.
Há muito corpo, por aqui. Se é nele que tudo se exprime, que fazer? Não escrever? Hoje? Mudar de tema? E se hoje abrisses esta janela e visses um texto sobre o mar? Teria de ser uma outra janela, talvez uma janela da Sofia, há nas dela poemas de sobra sobre o mar; por aqui será sempre a pele, o corpo, a história dele, a minha história, a nossa vida, a de toda a gente. O corpo, do cabelo ao sexo, é a morada de todas as descrições; não sei por quê, sei que é no fígado que me dói a criança que morre dentro de um saco de plástico.
Este meu corpo absorvente, uma esponja do mundo; este meu corpo que precisa de sentir de mais para lhe fugir tanta memória colectiva.
segunda-feira, setembro 25, 2006
Desencontro
-Sou EU, entendes?
- O que andas a fazer?
Nós estamos perdidas, eu vim aqui dizer-te isto, a esta hora, depois de acordar no cenário da tua casa, no rumor do teu filho a rodopiar pela sala igual à da nossa avó. Eu vim aqui dizer-te que estamos perdidas, como devemos estar, que a nossa conversa foi uma violência, porque foi o retrato de duas cadeiras vazias e a esperança da força de uma infância a fazer correr qualquer coisa: o nosso desencontro. Estamos perdidas nisso de podermos falar da mesma coisa, sentir a mesma coisa, integrar a outra quando a sua voz decompõe a matéria em desalento.
- De que falas?
Eu ando sempre atrás da infância, por isso andas sempre colada à minha pele, a esta que agora se gasta, para ti inutilmente, para mim melhor que nada, eu ando sempre atrás da infância, lá onde era pequenina, de franja, onde não doía, onde éramos iguais. Eu corro atrás de ti, como há dois dias, por um telefone, e o telefone, há dois dias, era a rampa dos jardins da nossa infância, por isso quando te ligo a gritar SOCORRO, tenho o impulso de quem diz COITO e bate na árvore onde se contava até cem no jogo das escondidas. Mas nesse jogo, tarde ou cedo, lá aparecias; no telefonema, não respondes, não podes, como na outra vez, como em episódios que doem tanto que estão estranhamente inscritos em três textos. Estás sempre retratada nos meus regressos, nas minhas solidões, nos meus desejos impossíveis de que tudo volte a ter a dinâmica da infância.
- Desculpa?
- Não. Sou eu. Eu tenho de pedir desculpa, porque esta vida que seguiu oposta ao nosso plano de há vinte anos faz-me simular a nossa antiga simbiose à hora de agora e não aceitar que estradas tão diferentes não vão dar a terrenos comunicáveis.
Resta-me amar-te pelo que significas, sempre, pelo amor que me tens, que é dos que se tem porque se tem; resta-me evitar passar-te à frente dos olhos os episódios de uma vida que as tuas cortinas não acolhem. Resta-me encontrar-te nos Natais e nos almoços onde moldura alguma nos agride. Nunca mais poderei arriscar correr para a árvore a gritar socorro e ouvir-te dizer ligo já e depois o abandono; nunca mais poderei falar olhando-te no olhar e ver nele uma parede; nunca mais poderei esquecer que nós, como fomos, estamos perdidas.
- O que andas a fazer?
Nós estamos perdidas, eu vim aqui dizer-te isto, a esta hora, depois de acordar no cenário da tua casa, no rumor do teu filho a rodopiar pela sala igual à da nossa avó. Eu vim aqui dizer-te que estamos perdidas, como devemos estar, que a nossa conversa foi uma violência, porque foi o retrato de duas cadeiras vazias e a esperança da força de uma infância a fazer correr qualquer coisa: o nosso desencontro. Estamos perdidas nisso de podermos falar da mesma coisa, sentir a mesma coisa, integrar a outra quando a sua voz decompõe a matéria em desalento.
- De que falas?
Eu ando sempre atrás da infância, por isso andas sempre colada à minha pele, a esta que agora se gasta, para ti inutilmente, para mim melhor que nada, eu ando sempre atrás da infância, lá onde era pequenina, de franja, onde não doía, onde éramos iguais. Eu corro atrás de ti, como há dois dias, por um telefone, e o telefone, há dois dias, era a rampa dos jardins da nossa infância, por isso quando te ligo a gritar SOCORRO, tenho o impulso de quem diz COITO e bate na árvore onde se contava até cem no jogo das escondidas. Mas nesse jogo, tarde ou cedo, lá aparecias; no telefonema, não respondes, não podes, como na outra vez, como em episódios que doem tanto que estão estranhamente inscritos em três textos. Estás sempre retratada nos meus regressos, nas minhas solidões, nos meus desejos impossíveis de que tudo volte a ter a dinâmica da infância.
- Desculpa?
- Não. Sou eu. Eu tenho de pedir desculpa, porque esta vida que seguiu oposta ao nosso plano de há vinte anos faz-me simular a nossa antiga simbiose à hora de agora e não aceitar que estradas tão diferentes não vão dar a terrenos comunicáveis.
Resta-me amar-te pelo que significas, sempre, pelo amor que me tens, que é dos que se tem porque se tem; resta-me evitar passar-te à frente dos olhos os episódios de uma vida que as tuas cortinas não acolhem. Resta-me encontrar-te nos Natais e nos almoços onde moldura alguma nos agride. Nunca mais poderei arriscar correr para a árvore a gritar socorro e ouvir-te dizer ligo já e depois o abandono; nunca mais poderei falar olhando-te no olhar e ver nele uma parede; nunca mais poderei esquecer que nós, como fomos, estamos perdidas.
A minha vida permite compreender a tua. É fácil. E cruel.
domingo, setembro 24, 2006
Este mapa
Volto a mim no único sítio em que sou uma paz. Escrevo. Silêncio. Respira-se com alguma dor, com uma má memória fácil de ter sido evitada, das que desaparecem como passageiros enganados no comboio que vai para o campo. Hoje o meu corpo é um mapa. Reflicto nele e no que lhe aconteceu. Da observação vem o silêncio comprometido, há qualquer coisa que me impele para a não-comunicação. Sou este mapa de histórias e queria pedir perdão por algumas, sobretudo pelas mais pequenas, pelas que, sem nome, pesam de mais. Há uma vertigem nesta manhã que parece avisar-me de qualquer mudança. Não sei o que me diga. Não encontro o choro como conforto, hoje, apenas o silêncio e a não-comunicação. A minha vida? É isso que uma pedra que dói neste mapa parece perguntar? A minha vida? Nunca mais é o mandamento que a sala vazia pronuncia. Não faças isso, diz um morto numa moldura. Afinal, não uma lágrima, mas uma humidade nos meus olhos. É o não-abraço desse morto, é o não-beijo do vivo que não conheço, que não chega. E por aqui tanta pele, tanto amor por devolver. Estou com sono, um sono medicado, que me não dá porta para sair daqui. Por isso chega alguém, que tem a delicadeza de gostar de mim, e passa as mãos no meu cabelo com a harmonia oposta à agressão da véspera e eu adormeço para a recuperação. Amanhã. O futuro. Ou o destino. E este mapa que tratei mal. A minha vida. A minha incógnita. A minha pele. O que vou permitindo. Os meus amigos. A minha alegria. Os meus sorrisos em câmara lenta. Eu. E este lugar escondido onde não sou assim: a minha casa.
quinta-feira, setembro 21, 2006
Como Deus: desce daí.
Desce daí. Não tenhas medo. Não tenhas medo do teu medo. Não tenhas medo do medo dos outros. Não tenhas medo do medo de Deus (nos outros). À imagem e semelhança de Deus, recorda-te. És tão marginal como Ele, como eu, como a tua mãe. À imagem e semelhança de Deus, recordas-te? Desce daí. Não tenhas medo. Se Deus não é bissexual, por falta de interlocutor, é, porque estás aí e eu aqui, pelo menos bissexuado.
4 mulheres e um tapete
Quatro mulheres sentadas num tapete, vidas ritmadas em tempos diferentes, franjas comuns, no entanto, e ontem a similitude, ou a empatia, desta e daquela dor estava na gargalhada, nas gargalhadas comuns, tão femininas, tão ganhas. As quatro mulheres ao telefone com o pintor que acordou para a loucura delas, talvez o único homem que pudesse rir como se ri quem se vinga das dores em episódios inesperados. Foi tanta a nossa liberdade naquele telefonema (não foi, meu amor?). O telefone a rodar de mão em mão (parecia um charro e tu o efeito dele).
O que diria Cristo daquele encontro inesperado de mulheres num tapete? Pareciam Martas, ou Marias (irmãs de Lázaro), ou Madalenas. Dois mil anos depois.
terça-feira, setembro 19, 2006
Fracções de um mito
Está sempre à procura de fracções de quem não encontra em quem vai encontrando. Há um rosto que tem calor, sem um pensamento que o ampare; há uma inteligência que a fascina, sem a ternura que a aquece; há o dom para escrever, sem o carácter que se quer no poeta dos poemas. Vai amando um ser ideal em fracções dele descontinuadas, loiras, morenas, carecas, às vezes com mau hálito. No meio de um lençol, pode esquecer uma frase absurda se está a criar uma parte vital do seu mito. Passa depois o tempo e com ele vem a visão real do feito e diz que horror ao que quando vivia dizia que lindo. Tanta gente, meu deus do céu, tanta gente, até quem se aflige todo na sua imaturidade. Basta um cenário, basta o clima da ficção, basta uma distância que permita fazê-lo sublime e cai num enredo inadmissível porque sabe bem por uns dias parecer que se está a viver alguma coisa digna de um filme. Do seu filme. Atura tudo: quem declama Pessoa e beija mal; quem é todo emoção e escreve jeito com g; quem fala de forma quase inédita do amor pela namorada para acabar a pedir o seu corpo perdendo a alma; quem na hora de verdade simplesmente cheira mal. Tanta gente, tanta gente, meu deus do céu. Tantas fracções do homem que procura e tanto custo, tanto cuspo. Tanta gente, tanta gente, e este lugar-comum de saber que anda à procura do pai.
domingo, setembro 17, 2006
Olha-me(nos)
Eu acordo a chorar, em silêncio profundo. Em silêncio profundo. Acordo a chorar com a noite como única memória recente. Nada mais para me afligir; a noite de ontem, apenas, mas tão envolta na sua ausência, a minha noite perdida sem amor, sem braços que amparem a carne que envelhece e que tu esqueces e eu, eu acordo a chorar, em silêncio profundo, em silêncio profundo. Dobro-me toda nas minhas dores que são todas a dor de te não ter, todos eles foram não seres tu, ninguém te ocupou, e ainda há corpos por chegar, eu sei, eu choro em silêncio profundo, em silêncio tão profundo a solidão que sou em todos que não tu e todas as minhas dores de hoje são memórias boas que me flagelam e que não posso expulsar expulsando-me. Eu acordo a chorar no teu silêncio profundo, o tempo passou só em ti, eu estou aqui, no mesmo ponto, onde me situaste, eu estou a sofrer agarrada ao meu corpo que é onde te tenho e a sofrer sorrindo porque recordo-nos. Então, sou a minha dor. Eu não posso seguir em frente, como dizem todas as vozes que são exteriores ao nosso mundo para ti perdido, eu sei que era para ser o que não foi, eu e só eu experimento a revivência gestual de tudo, eu acordo a chorar passem as vidas que passarem, em silêncio profundo, e dentro de mim uma gritaria de sons, um mármore de caminhos nossos, eu não posso partir e puxo pela dor que é puxar por ti. Por isso, digo, calada, magoa-me ficando, assim os anos que fiz de ti o meu ar são verdade, eu tenho de acordar a chorar para o resto da minha vida e magoar-me em todos os corpos que me surjam, porque eu sei, por mais que tu não saibas, que eras tu. És tu, e se me ficas como um tumor é assim que te quero, é assim que te posso, é assim que te choro, em silêncio profundo, em silêncio profundo.
sábado, setembro 16, 2006
Submissão
Brincar com com o corpo; manipulá-lo; tapar uma narina e inspirar fundo com a outra; apertar os dedos até a mão tremer sem intenção; comprimir a barriga e castigar os intestinos; roçar o calcanhar no chão até esquecer a perna dele; trincar um lábio e provar-nos por dentro; morder a língua e calar palavras; fechar os olhos com a força que nos condena à tontura; engolir nada a arranhar a garganta; encostar os joelhos um no outro com violência; sentir as nádegas; inspirar de mais e ficar aflito; não usar as mãos em nada disto; vencer o corpo que é nosso; esticar os braços para doer amanhã; suster a respiração por um minuto; e ser vencido.
Respirar.
quarta-feira, setembro 13, 2006
Z.L.
Dava-te a pele toda como tela,
(sobre nós, um espaço de tamanho exacto, sem chuva, feito de luz)
Dava-te, sorrindo, a minha energia,
(eu ficava para ali estendida, descansada, finalmente, feita apenas para ser a tua tela)
Dava-te o meu sangue,
(sopravas pelo meu corpo vazio o ar do Alentejo e davas-me a forma exacta da tua doçura)
Dava-te a minha vida,
(mas tu devolvias-me, com um dos teus gestos, a vida que me calhou e que é tanto em ti)
Eternidade
Nós somos os que chegamos depois, dizia a filha da mulher superior que ontem terminou a sua vida. Cinco meses foi o tempo da sua doença, da sua espera em silêncio comunicante. Olhei para a filha que citava o filósofo e vi a sua eternidade perdida.
Agarrei a mão da minha mãe.
Ainda sou eterna.
terça-feira, setembro 12, 2006
7 anos depois
segunda-feira, setembro 11, 2006
Retrospectiva
O tempo desmente os quadros que eram perfeitos. Encontro só agora as manchas que calam a pronunciação:
- era perfeito.
Quando os sábados deslizavam nos nossos aconteceres domésticos, pensando bem, vendo bem, não me assaltavas o corpo sem medo.
- não era perfeito.
Não quero ser
Não quero ser a mulher de oitenta anos que se debruça toda no balcão da farmácia amparando a surdez e as varizes. Não quero perguntar aos gritos pela pomada que começa por "f" ao Senhor João e não saber que uma fila se agiganta na minha corcunda sem piedade do seu próprio futuro. Não quero perder o controlo da cera que espreita e ironiza a surdez, pior, que faz pensar: que nojo. Não quero ser a causa da impaciência de quem anda ao ritmo que quer, de quem arfa e se queixa de velha que não sai dali,
AQUELA CHATA.
Não quero ser uma mulher de trinta anos que também suspirou impaciente, em vez de sorrir perante o único ser amável naquela multidão de velhos adiados que se chama Senhor João.
Hoje a pele serve-me mal.
Melancolia
Às vezes, apetece tremer toda em soluços, apenas por ouvir uma voz de alguém ao telefone por quem não se chegou a sentir o que seja, nada.
(amor)
Mas a soma das dores aproveita todas as alforrias e a voz do homem que nunca tocou no seu joelho dói-lhe de um ouvido ao outro, como todos os destinos desviados. Devo estar doida, pensa
(sem o dizer ao espelho),
mas a terra que abranda o seu sangue chama-se melancolia e ela até de ninguém tem saudades.
(amor)
Mas a soma das dores aproveita todas as alforrias e a voz do homem que nunca tocou no seu joelho dói-lhe de um ouvido ao outro, como todos os destinos desviados. Devo estar doida, pensa
(sem o dizer ao espelho),
mas a terra que abranda o seu sangue chama-se melancolia e ela até de ninguém tem saudades.
quinta-feira, setembro 07, 2006
quarta-feira, setembro 06, 2006
84 anos
Às vezes pareces-me pronto a explodir. Mesmo quando sorris, mexes sempre os dois polegares como quem neles circula o que pensas estar por cumprir. Olho para ti sempre que almoçamos e penso que é no teu olhar que nunca sou estrangeira, porque na distância de 54 anos há a proximidade que nunca encontrei nos não-homens da minha vida. Homens que na minha escrita chamo de lobos, porque me magoaram como feras. E lá estás, a fazer circular o mistério da tua ansiedade que é a minha entre os dedos que subitamente são os do teu pai. Há sempre dor no teu sorriso, como há sempre aflição na minha calma.
Aprendi a sabedoria de dizer esta sou eu, sem medo, e queria que soubesses e sentisses que sou tão feliz na nossa ansiedade partilhada como o era após o jantar sentada no teu colo com a tua gravata gravada na minha face. Não há tempos díspares, portanto, entre nós, como um dia escrevi; há antes uma intensa proximidade, calhando apenas que eu falo mais porque conto com a tua prudência e porque sinto que te faz bem o choque emocional feito em verbo.
Sempre que nos sentamos a almoçar, observo-te reclamando toda a tua vida. Pareces-me pronto a explodir, digo. Mas quero explicar que é esse teu estado limite que te torna um ser com o rosto de que não prescindo à minha secretária. Escreves sobre o humanismo e a esperança que é sempre uma criança que nasce, mas no concreto da tua pele não foges, porque não podes, ao pessimismo que te assombra a visão do que esteve para ser e o acaso não permitiu ou do que simplesmente surge preto por mais que um poeta clame por claridade. É essa contradição remoída nos teus dedos que amo. Que faz de ti uma pessoa muito antes de seres um intelectual. E sei que a dor que te não permite veres a evidência da luz que foi, é e será sempre a tua vida sangra de uma ferida que se chama exigência. Hoje gostava que soubesses que sofro dessa ferida, dessa exigência violenta que me não deixa descontrair e reconhecer o que faço, jamais, como muito bom, mas apenas, aqui e ali, como o que pude fazer.
Não trocava a minha ansiedade e a dor dela pela calma feliz que tem o preço da não-reflexão. O mesmo é dizer que gosto de ti sempre pronto a explodir.
terça-feira, setembro 05, 2006
O terror da luz
-Que fazes aqui, cambaleante?
- Manuseio o meu cansaço. Emigro, de pé, a fadiga do meu cérebro para os meus joelhos.
- Que palavra essa que não soletras?
- Já não chego à claridade?
- Pareces esmagada pelo terror da luz. Ele é o terror da luz?
- Não. O mundo ser povoado deles é esse terror.
- Tens as costas cheias de palavras por cumprir. Falas?
- Passou o tempo. As palavras eram para um ouvinte que fazia sentido porque as ecoava. Agora ando assim, como sempre me acontece, quando o verbo não se solta. As palavras geram uma corcunda e acabam por escorrer pelas minhas costas.
- Como uma cruz. O que fazes com os dedos?
- Recordo o meu avô. Recordo a claridade nele sem zonas de incerteza.
- Manuseio o meu cansaço. Emigro, de pé, a fadiga do meu cérebro para os meus joelhos.
- Que palavra essa que não soletras?
- Já não chego à claridade?
- Pareces esmagada pelo terror da luz. Ele é o terror da luz?
- Não. O mundo ser povoado deles é esse terror.
- Tens as costas cheias de palavras por cumprir. Falas?
- Passou o tempo. As palavras eram para um ouvinte que fazia sentido porque as ecoava. Agora ando assim, como sempre me acontece, quando o verbo não se solta. As palavras geram uma corcunda e acabam por escorrer pelas minhas costas.
- Como uma cruz. O que fazes com os dedos?
- Recordo o meu avô. Recordo a claridade nele sem zonas de incerteza.
segunda-feira, setembro 04, 2006
Fuga
Debaixo de um sol honesto e perante um rio sem segredos, um homem aflito começou a correr em direcçção a um carro. Corria sem parar, dizendo que vinha já. O carro arrancou com asma no motor. Pensou quem viu que o estranho homem fugia de um terramoto, ou da certeza de uma morte.
Fugia afinal de uma conversa na qual teria de olhar em frente.
Interrupção
O rapaz sentado na esquina da minha rua é suburbano. Acontece-lhe a noite, e o dia não se ocupa do seu corpo. Ele é um detrito da noite. Murmura sempre a mesma frase - por que fiz aquilo, pá? -, e poucos sabem que fala do dia em que não deu conta de que as asas da filha eram mentira e de que ela não podia livrar-se do cheiro a mijo do quarto alugado saindo pela janela.
O rapaz sentado na esquina onde a noite às vezes tem tremores dobra-se todo como uma vírgula,
O rapaz sentado na esquina onde a noite às vezes tem tremores dobra-se todo como uma vírgula,
(e eu penso és uma interrupção?)
suportando a arfar o peso da seringa. Passei por ele e descobri que tem olhos azuis, nnguém diria, não há azul no sujo. Penso em estender-lhe a mão ou falar, gesto ou palavra, nada. Ando a condenar o silêncio e aqui tenho geada na garganta enquanto ele tenta em vão, de olhos revirados, bater uma punheta, morto perante as risadas de três crianças-demónios que lhe apontam o dedo e mostram a língua.
(O demónio, hoje, é uma criança de dedo espetado e língua de fora)
Um dia vou conseguir fazer explodir atomicamente estas paisagens.
(O demónio, hoje, é uma criança de dedo espetado e língua de fora)
Um dia vou conseguir fazer explodir atomicamente estas paisagens.
sexta-feira, setembro 01, 2006
Pela sua voz
Quem tira as forças das memórias espera que quem desenha algumas aparentemente boas não as trate com azeite quente. A ansiedade corta-lhe o coração verticalmente e a dor tem essa direcção. Telefona à voz que ouve com mais atenção. Não é só a palavra que busca mas o consolo daquele respirar que entra no ouvido que há três dias era usado apenas para a exitar. Ouve:
- Ironize.
A ansiedade amarra-se no tórax. Diz:
- Vou deixar de respirar.
Deixa-se acalmar pela sabedoria da voz que ouve com mais atenção. O coração reconhece. Fuma na doença adiada a voz que insiste:
- Não tenha medo. É esse medo que os seus lobos querem que tenha.
Começa a respirar e a sentir. Sobretudo a sentir.
As ancas voltam ao lugar.
- Ironize.
A ansiedade amarra-se no tórax. Diz:
- Vou deixar de respirar.
Deixa-se acalmar pela sabedoria da voz que ouve com mais atenção. O coração reconhece. Fuma na doença adiada a voz que insiste:
- Não tenha medo. É esse medo que os seus lobos querem que tenha.
Começa a respirar e a sentir. Sobretudo a sentir.
As ancas voltam ao lugar.
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