domingo, maio 20, 2007

Ouve-se Sempre a Distância Numa Voz (Rui Nunes)


É a segunda vez que escrevo sobre um livro de Rui Nunes. Escrevi, a primeira, sobre o “A Boca na Cinza”, no Jornal de Notícias, explicando que não tenho pretensões de crítica literária, nem posso, explicando que falta, ou pode haver, o espaço do diálogo directo escritor/leitor, este último atirando-se ao texto, em resposta, na genuína intimidade que o escrito gera.
Escrever sobre este livro é, como sempre, escrever sobre o Autor, que nos marca pela verdade dura dos seus textos, textos escritos contra o medo, talvez o medo que se pressente tentado contra o escritor; sem sucesso. Haja tempo para ler este livro.
O Livro, então:
Esta é a soma, ou o percurso por todos os livros de Rui Nunes. Quem os conhece, termina a leitura com essa amargura: há aqui uma procissão pelas palavras da sua vida e nela se reconstrói uma vida, numa nova história, que é a mesma, a soma de todas, para dizer adeus, com o peso de todas, a dor a atravessar nestas linhas as outras a que se chamou Enredos, ou Grito, ou Álbum de Retratos, ou o Mensageiro Diferido, um legado de legados, e se se ouve sempre aquela distância, quem lê o livro com a voz dele não pode deixar de escutar o anúncio de um qualquer último suspiro.
O espectro do livro é um quarto, onde estão um homem e uma mulher, os únicos corpos que poderiam ter proximidade nesta história, o casulo aberto da história, o lugar onde o diálogo acontece, onde o esquecimento é soletrado no presente, o lugar onde as coisas aparentemente são reais, porque há cheiro, porque há sexo, o lugar onde a pele é molhada, mas o quarto é o ponto de partida para o percurso da memória pela história da sua vida, mesmo quando a história da sua vida é o olhar que pesa muito a pousar sobre as vidas outras, como a metáfora do abandono do nosso tempo, os ucranianos e croatas, as gentes dos subúrbios, os emigrantes a morrerem nas praias prometidas; não é importante, para o efeito, o olhar sim, eles todos, ou elas, as descrições são o que entra pelo quarto adentro, pelas paredes móveis deste quarto alucinado, a fazerem uma pessoa, o homem que está ali, posto naquela mulher, morto pelas suas histórias, que o não deixam ter a proximidade de alguém e por isso a descrição do frio das mãos tem o capítulo da perspectiva dele e o capítulo da perspectiva dela, e na distância de um capítulo pelo meio também se constrói a distância de duas vozes, é ele que obriga a essa distância, sem remédio, ele não se esqueceu da sua história, a sua história esqueceu-o e por isso diz: o meu tu é um desejo (p. 59).
Da memória há dois quadros que vão crescendo ao longo do livro, entrando e saindo do quarto, talvez os quadros que mais vincam a criança que se espreita pela janela feito homem. Duas histórias de abuso, um caçador e um padre, ou dois caçadores, afinal, caçadores de uma memória inocente: o que nos assalta com violência não é a criança a perder-se em dois crimes, é a perspectiva dessa criança: é a descrição minuciosa dessa perspectiva, porque a minúcia é o preço da dor, e por isso quando o caçador se aproxima do rapaz que sabia os nomes das árvores todas, que ia apenas no seu caminho para casa, a dor não é saber que a sua cabeça foi empurrada até um sexo, a dor é sobretudo ler que esse gesto é recordado com a visão exacta da poeira nos atacadores do caçador, com o olfacto presente da pólvora, com a textura ainda na pele da mão que começou nesse dia a matar-lhe a ternura. A ausência dessa ternura é um peso para a vida toda, para as paisagens que se escolhe sem escolher, pára-se onde falta a ternura. Por isso, quando se regressa à infância e se reinventa o pai, reinventa-se o pai com uma ternura que não teve lugar: invento, invento o meu pai e a sua ternura, carrego um gesto e a sua ternura, carrego um gesto que existiu de uma ternura que não lhe pertence (p. 90).
Custa muito soletrar estes episódios, ou os episódios são duros a soletrarem esta pessoa, e por isso eles vão crescendo, devagar, cheios de dor, parecem um terço e as suas contas, suspenso para descansarmos noutras distâncias. Entre nós e o outro há estas distâncias todas: a batina do padre a interromper a voz da mulher – é aqui a tua casa? -, os botões dessa batina ao som das perguntas: quantas vezes pecaste por pensamentos? Quantas por palavras? Quantas por obras? As perguntas a empurrarem a cabeça do rapaz, as perguntas empurram mais do que a mão, para baixo, e o homem que está no quarto com a mulher ainda sabe quantos botões tinha, e tem, aquela batina.
Deus também morre nestes episódios. Ou nunca houve um episódio que permitisse Deus. Este livro tem a memória carregada da memória da dor, da memória de dores continuadas, do pai doente muitos anos, a morte adiada é uma mortalha daquela infância, este homem que tem no tu um desejo está carregado de mortos, dos seus e dos mortos dos outros, os mortos herdados. A morte da avó é um quadro que se constrói a dar-nos a densidade da memória da morte, do que ela faz às pessoas que morrem, às pessoas que ficam – E aquilo acabou. A minha avó (p. 102).
Finalmente, as palavras: dir-se-ia que restam as palavras a uma pessoa cheia de memórias a interromperem o outro, para salvarem a sua proximidade possível, ou para explicarem essa impossibilidade, ou para se pedir perdão, mas cada palavra é também uma memória: é preciso ter medo de algumas palavras (p. 102), as palavras são também o rosto e a voz que a disse, um Hitler a conferi-lhe uma intenção, até essa palavra se tornar inofensiva, e voltar outra vez, a disfarçar o peso daquele rosto e daquela voz, daquela intenção, e crescer de repente com o terror de quem a disse em 1939, no dia em que morreram tantos, à conta da palavra, que agora reaparece numa boca nova. Por isso as palavras estão também cheias de distâncias, há palavras que são sempre murmúrios como outras são sempre imprecações (p. 103), e aqui uma luz imensa sobre este e todos os livros de Rui Nunes: a sua escrita insubordinada, o que ele faz com as palavras, a luta que se sente contra a opressão desta pátria de gramática, porque o que ele quererá, e consegue, é isto: perder as palavras, desorientá-las, destruí-las, desentendê-las, para recomeçar uma palavra que inicie a sua história nos meus lábios (p. 103).
Talvez se consiga com as palavras o que se não consegue com o outro. Nunca se vê o outro: o homem, no quarto, não vê a mulher, a mulher não vê o homem, vê-se sempre o outro perdido noutro qualquer, sem acesso a esse outro, com a raiva de o sentir naquele corpo ao lado. Por isso, a mulher diz, cheia de rancor: acorda, porque me sabe perdido em todos os sinais que te recompõem (p. 108). A história deste homem faz de quem lhe chega perto uma sombra, os fantasmas todos a procurarem na pele ou nos olhos que calhem um lugar para ressurgirem, só numa ficção poderia o homem levar o outro ao quarto e dizer “este é o meu fantasma”, para que uma história começasse ali para os dois ao mesmo tempo, quando ela o visse pela primeira vez, e assim não acontecesse com as pessoas o que acontece com as palavras.
O fim de vida, a velhice, só pode ser um quarto vazio cheio de nomes, salas vazias, e quando a mulher chama pelo seu nome, ninguém aparece, porque o tu nunca se cumpre.
Vou ler este livro o resto da minha vida.

1 comentário:

Luís Galego disse...

excelente post....registo com agrado as observações.