uma mulher sente, uma mulher sabe...
hoje pareces-me um outono inclinado, enganado, a véspera do inverno.
uma mulher sente, uma mulher treme...
resta um pouco de dia, uma pompeia por submergir: tu a examinares o quê?
uma mulher sente, uma mulher sabe...
( não há sorriso burguês que apague a certeza que lhes oferece esse silêncio)
uma mulher sente, uma mulher sabe...
hoje pareces-me uma penugem de cisne a pesar como chumbo; hoje pareces-me a bengala de ti mesmo.
uma mulher sente, uma mulher sabe...
insensata toda a palavra que não o grito que não é palavra
insensata toda a desculpa que não a culpa de não ter culpa
insensato todo o pedido que não seja: isso, isso, isso, minha besta...
uma mulher sente, uma mulher sente, uma mullher sente...
tão mais que o sentir que queres que sinta na pergunta: sentes, sentes, SENTES, querida?
uma mulher sente, uma mulher recorda
uma morte pelas pernas, uma vida pela boca
uma mulher insensata sente, uma mulher triste recorda
e sabe que não sentes.
sexta-feira, dezembro 29, 2006
quarta-feira, dezembro 27, 2006
veneno
com uma reforma de dez dias para gozar, pede ajuda sempre que acorda: o silêncio de não ter de se apressar e, nesse silêncio, que é o vazio dos pretextos, está aterrorizada.
saberá alguém dessa (sua) reclusão?
os demónios todos a aproveitarem o carro que não sai do parque em frente:
- hoje ficas por cá?
a cabeça cheia do seu veneno, o medo de se perder nele, o tempo sem o amparo dos horários.
- vais chorar, doida?
talvez ficar de pé, a provar o equilíbrio; talvez correr à frente do medo, a cansar a ansiedade; talvez pegar no telefone, a descobrir uma pessoa.
isto dói.
segunda-feira, dezembro 25, 2006
vício, amor?
pode o amor nascer de um vício? ou: pode o amor ser já esse vício? ou: pode um vício ser amor?
querer repetir é miserável, de pouco que exprime o querer da viciada; quer que a repetição seja só o princípio da pronunciação da próxima vez. transportada nesse momento incerto, não lhe chega a memória aflita da pele a arder; quer, é isso que quer, dar mais, provar mais fundo, ousar como se não ousa, dar-se até ao gesto que o outro se proíbe, menos ali, onde se vê adiada, suada.
pode o amor ser um vício?
tantas histórias de amor, os sintomas todos outros, aqui um pulsar diferente, por ver no outro o mesmo abismo: quem se mata primeiro, meu amor?
pode o amor ser pensar pela boca, pode o amor ser respirar pelo cérebro? não é desejo, porque o desejo não mata os cenários depois dele, e os cenários andam mutilados, aos bocados, uma guerra: uma guerra pacífica, por isso de amor?
querer, querer, querer, em paz, isso, em paz, querer, fazer tudo o que nos seja exigido, por este fogo, pelo outro, por nós, por uma cabeça assim como a nossa, a mesma transgressão, e a paz de se saber um espelho, e a paz de querer o repouso e o verbo naqueles braços: é isso, o amor?
ou: isso também é amor?
mesmo sem a imposição de dar nome a um bicho novo, não sei o que faça com os antigos.
sábado, dezembro 23, 2006
eclipse
- estou tão doente, minha querida. que é feito do negro dos meus cabelos?
o outro homem, na cadeira a metro e meio de distância opaca, olha a frase a cortar o ar do quarto e vinca com a sua dor todas as rugas que lhe mascaram as agressões.
- tu tens a beleza e a força da juventude e sim, vê-se bem a tua violência, não te darei o que esperarias de mim, uma ilegitimidade, os meus lábios nos teus, digo-te apenas que estou tão doente, minha querida, que me pesa o silêncio do telefone.
a mulher pousa a mão nos dedos dele, treme, como sempre, a não se atrever no gesto longo sem o medo de quebrar a rotina da solidão.
- arrisca-te, nesta violência, pior não ficas, conta-me todas as tuas mortes.
- essa tua crença nas palavras, que eu não tenho, estou tão doente, minha querida, essa tua crença na confissão, católica, eu não acredito em nada disso.
- o que queres de mim?
- que fiques aí, a ouvir, a dar-me proximidade; eu acredito no poder da proximidade, esquece a possibilidade de uma história, a minha vida tramada, estou tão doente, minha querida.
o outro homem lambe a mortalha e apaga-se do cenário, até ser chamado, um grito numa mão que lhe ampara as costas, a da mulher, que lhe inveja o corpo, o único que o outro não estranha.
- ajuda-me, diz.
seis janelas após o alcool a calar os argumentos; seis tumores sobre o mundo daquela sala: os olhos deles.
a segurança de se receber um corpo novo pela mão de um antigo.
quinta-feira, dezembro 21, 2006
Quietos: ele chegou
porque te vi, todos os outros, hoje, são uma ironia.
podia dizer-lhes:
- parem quietos, não percebem que não sou nada disto?
um beijo, o teu, o de ninguém, estou aqui, como sabes.
até ao teu próximo regresso.
podia dizer-lhes:
- parem quietos, não percebem que não sou nada disto?
um beijo, o teu, o de ninguém, estou aqui, como sabes.
até ao teu próximo regresso.
quarta-feira, dezembro 20, 2006
os teus regressos
regressaste.
cansado, sempre, ausente desta pátria contenciosa, a tua voz, alguns minutos, a permitirem na minha voz uma pátria?
a geografia reduzida a poucos metros, mas os teus sons são tão estrangeiros nesta terra, por que sofres, por que ficas longe, tão longe, quando te aproximas?
irei ter contigo, a rotina nunca rotineira, a nossa calçada, o medo da tua morte, ou nada disso, o medo que morras sem diluires este peso?
talvez o rio, o travão do carro a travar-me, talvez a tua palavra a calar-me, talvez o teu silêncio a dizer tudo?
voltaremos, mais uma vez, a doer, a doer, a doer: os nossos passos?
domingo, dezembro 17, 2006
o tempo que resta ou o poço numa mulher
pedes-me que escreva sobre o poço que vês no sexo de uma mulher. escuto-te e sei do que falas, sei do que sentes. mas não posso escapar à minha madrugada, despertei inquieta, tão cedo, e revisitei o filme que sempre me faz pedir aos olhares cativos que experimentem, que experimentem, sair de outros poços que não este de que falamos e que ousem sentir as esquinas de corações de carne igual, em corpos que vivem nos quadros que são atirados para o que não merece acolhimento. o amor de dois homens, ali, no filme, o desejo de dois corpos masculinos, só um sabendo que o tem no abismo do tempo que lhe resta; estou em silêncio, começo a chorar, antes de ser pela morte anunciada, já pela solidão a que está sempre vetado quem ama fora das imagens que merecem a partilha abençoada de todos, começo a chorar por todos os tempos esgotados em amores vividos sem um gesto paterno, um sorriso materno, uma refeição familiar, e este filme sem cedência alguma, a dar espaço à ganância de dois corpos masculinos sempre indigna de imagem.
o tempo a esgotar-se e só uma avó sabe dele, escolhida para o anúncio por estar próxima também da morte - diz; mentira, escolhida por ter vivido também fora de uma moldura, a fugir do filho que lhe recordava todas as expressões do marido morto, a entregar a viuvez ao sexo inconsequente, uma puta, enfim; antes uma mulher a sobreviver, para quem tem olhos de gente, um poço misterioso a contar uma história, o sexo desta velha.
o morto em breve sempre a regressar-se à infância, sem espaços nessa voz muda, o outro eu a consolá-lo, os poços dele, as memórias, as metáforas que fez dos ensinamentos da infância; como tu, com os teus poços, o perigo deles, o mistério neles, a vertigem da morte, hoje, para ti, o sexo de uma mulher. como um poço, uma viagem certa, uma dependência, com avisos na inclinação, não se vá nele cair, ninguém nada no fundo de um poço, ninguém conhece o fundo de um poço, ninguém se salva no fundo de um poço, e todas as crianças espreitam os poços na tentação do mistério desse fundo escuro, como em adulto espreitas o sexo de uma mulher, sabendo bem que dele só conhecerás as franjas, por mais que o mistério de um útero inteiro te derrote, não saberias sobreviver nele, podem apenas os teus dedos e o teu sexo entrar e sair, espreitar a morte e regressar à vida, ou tocar a vida antes de um espaço mais longínquo de morte e voltar à ignorância do exterior.
talvez morra, numa praia, com a mão no meu sexo.
sexta-feira, dezembro 15, 2006
até tudo
eu seco o teu cabelo. eu limpo os cantos da tua boca. eu desato os nós desses dedos.
se quiseres, fico calado, a assistir ao teu silêncio, quietinho, com um copo de leite morno na mão, à espera que digas passa-mo cá, à espera que nada digas e que o leite arrefeça, como os teus pés, azuis de frios.
eu lavo as tuas axilas. eu perfumo a tua barriga. eu humedeço as tuas chagas com a minha língua.
se quiseres, fico deitado, como tu, a olhar o mesmo tecto, e não me permito movimento algum, apenas o da tua respiração, até que me digas chega-te para lá, até que mais alguém te seja desconfortável.
eu massajo os teus joelhos. eu lavo os teus dentes. eu limpo os teus ouvidos.
se quiseres, levanto esse corpo da cama e levo-o a passear pelo corredor, até que me digas estamos exaustos, até que me digas deixa-me partir.
segunda-feira, dezembro 11, 2006
desejo
volta sempre à tua porta. esse mistério antes dela, as agulhas a baterem no chão, a cronometrarem o seu desejo. olha-te e na primeira pausa já entrou no teu cérebro: a dizer sim, a dizer isso mesmo.
sábado, dezembro 09, 2006
perdes(-me) o medo
que bom saber que o meu corpo te integra. imagina tu que quando o faço, mais não quero que integrar o meu.
que amizade, esta?
um esplendor.
que amizade, esta?
um esplendor.
quinta-feira, dezembro 07, 2006
o tempo do medo
entre a casa e a secretária onde trabalha, há uma fila de carros. no meio, um espaço, o carro dela, ela, um intervalo, um sítio para se não evitar. são longos minutos de medo. chove, trava-se a fundo, a cor que obriga é redonda: um sinal de trânsito, um sinal de loucura, a chegar, enquanto o trânsito estagna, ali, no intervalo, ganha tempo, esse habitante ocasional. um veneno a desfigurar o trajecto que queria breve, que tem de ser breve, antes que doente, outra vez, que medo, que medo tem destas paragens.
chega, limpa a lágrima da resistência, sobrevive: e começa o dia.
quarta-feira, dezembro 06, 2006
mesmo que te doa
é a segunda vez que promete amar como não se ama; isto é: não te tentando.
amar é querer o bem do outro, diz a banal e cristã sabedoria. mas amar não é senão querer o outro, mesmo contra o outro, e ela aceita tentar não tentá-lo apenas para o não perder e não para o poupar.
(a tua dor é-me apenas uma ameaça)
vai andando.
com estas pernas.
sábado, dezembro 02, 2006
Ontem
nunca cumpre as noites de sexta e de sábado.
morre nessas noites.
como a burocracia.
uma tarde salva-lhe o silêncio.
a memória. sempre.
o seu corredor.
morre nessas noites.
como a burocracia.
uma tarde salva-lhe o silêncio.
a memória. sempre.
o seu corredor.
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