segunda-feira, março 30, 2009

lobo

chegou ao fim, finalmente. sábado de manhã o seu corpo perdeu as forças. a sua inimiga indegolável defendeu-se e fez-se em células, para dormir, dormir, dormir. nos sonhos o homem é um lobo, pergunta por ela à sua mãe, quer saber, como é que está a sua filha?, depois mistura-se com a face do criminoso, inala uma linha de coca, o lobo que a matou, volta às vestes do criminoso, pousa na sua cama e sorri, e mata-a, como todos os lobos, também ele nos diálogos passados com pele de cordeiro, antes de ser lobo, lobo mau, lobo mau, onde vais, onde vais?
vai para a casa da sua infância, janta na cozinha, olha de lado a gravata do pai, encolhe-se toda na sua dor, pensa que partilhou tanto, mas não as sua bulas perdidas na gaveta, a sua doença, olha de lado a gravata do pai, que é como quem diz o colo do pai, vê o pai pestanejar enlouquecido com a sua morte, começa a chorar, lobo mau, lobo mau, foge para a copa,
mãe, desculpa, esta dor que nasceu comigo, mãe, abraça-me para sempre, esta dor que ninguém conhece, mãe, socorro, o meu cancro foi acordado, lobo mau, lobo mau, deixa-me adormecer, adeus, mãe, adeus, mãe, o problema não é o lobo, é o que o lobo me recorda, mãe, mãe, mãe.

sábado, março 28, 2009

manhã de sábado

dança, dança, dança, um copo de água tónica na mão, o seu gin a fingir, dança,dança, dança, um milhão de mosquitos colados à sua pele, um milhão de beijos tentados, dança, dança, dança, acende um cigarro proibido, pensa: como terei sobrevivido a este dia, ao meu cansaço?dança, dança, dança, nunca olha para o relógio, lembra-se da véspera, cola os pés ao chão
(a minha magreza)
dança, dança, dança, às vezes, muitas vezes, o medo de um surto de medo, dança, dança, dança, mas também alegria
(na minha fragilidade)
dança, dança, dança, ri perdendo o ar, dança, dança, dança, o seu amigo, está feliz por não cair, está feliz por se não ver na sua dança o seu cansaço, dança, dança, dança, pensa: terei forças para um volante? dança, dança, dança, a pensar no cansaço de amanhã.
é sábado de amanhã, mete a chave na porta e diz: fui eu que entrei.

sexta-feira, março 27, 2009

dedos

- não me lembro de isto estar aqui, nem isto nem aquilo.
- como não?
- não te via há dois anos.
- como não?
- não dás pelo tempo?
- não dou por mim.
- o que te aconteceu?
- no ano passado lembro-me de um aniversário a dormir.
(reconhecer o espaço que é um pessoa: cabelos, nariz, boca, peito, pernas, cabelo, olhos; reconhecer os movimentos que fazem uma pessoa: uma mão a afastar a franja, o peito a suar sobe desce sobe desce, duas pernas a empurrarem um prazer, o olhar seguro a reconhecer uma mulher)
- estás igual, sabes?
- não dei por nada. dois anos, dizes?
- estás cansada?
- não.
(dar atenção ao tempo naquele quadrado, fazer do espaço um ensaio de tempo, dez unhas a comerem umas costas revisitadas dizem meia noite e meia, mas também dizem um sorriso de três minutos, ou um grito de trinta segundos, muita atenção nos dedos entrelaçados que foi todo o tempo de todos os gestos: as mãos dele)
- eu estava apreensivo e tu foste como que ontem.
(os olhos dela nos dedos embrulhados)
- também eu.
- por que olhas tanto para os meus dedos?
- porque estão livres. porque estão livres.

quinta-feira, março 26, 2009

depois do jogo

não sabe. sabe. sempre soube. não sabe. ou: não investiga e só sabe depois, e depois diz sempre soube. hoje quando descobriu o que sempre soube passeou por uma rua difícil, vestida de branco, um bom amigo agarrava-lhe o braço. sorria o calor da tarde, ela sorria o calor da tarde e explicava: a minha memória anda tão mal, tão mal, ontem recordaram-me ao jantar de coisas minhas, soltaram-se gargalhadas, eu ri muito, não me lembrava de nada, depois apanhei um táxi.
não sabe. sabe. sempre soube. não sabe. um restaurante e um amigo bom. tinha saudades deste amigo. uma mesa, dois copos, dois pratos, peixe cru, peixe cru, uma pessoa crua, não esta, a diluir-se como um pedaço de arroz no molho de soja, por cima desse corpo palavras inteiras, corpos inteiros, por isso, sem a ameaça do toque, e a confissão dela. uma borboleta na janela, branca como o vestido dela. conta, conta, ouve-se. mas talvez já não se lembre. porque não foi o que foi, porque era para ter sido um caso único e não um episódio desportivo.
- passa-me a manteiga.
- passa-me a bola, disseste?

segunda-feira, março 23, 2009

depois do incêndio

a casa está desarrumada, por exemplo: umas meias do avesso a dizerem o gesto que foi despi-las, uma mulher cansada à beira da cama desequilibrou-se e quase caiu, lá viu as pernas e a sua pele que é muito lisa. a casa está desarrumada, por exemplo: um vestido caído no chão, recorda-se hoje já maquilhada de se ter virado na véspera para um espelho e de ter visto umas costas magras e uma fotografia possível, um princípio de nádegas, um princípio de atrevimento. a casa está muito desarrumada, por exemplo: hoje o edredão não diz que dormiu só no cantinho esquerdo da cama, e o fumo dos cigarros da sala confessam que se não deitou à primeira, andou de um lado para o outro, muitos copos, muita água, abre a janela e um pássaro grita e lembra-se ou pergunta-se: gritei e desarrumei o ar?

quinta-feira, março 19, 2009

não há título. nem conteúdo. talvez desistir de escrever. que disparate que acabou de escrever. seria desistir de não sofrer.

quarta-feira, março 18, 2009

escuro

viu o escuro do seu sono. não tirou as lentes de contacto e viu as pálpebras de rosadas a pretas. pedia muito dorme, dorme: 5 e qualquer coisa e um polvo nos olhos. volta a adormecer cansada de se dizer cansada tão cansada. encolhe-se reunida com os joelhos, abre os olhos e vê a mãe na parede. fecha os olhos e vê a barriga da mãe. abre os olhos e vê a mãe na parede. fecha os olhos e tem saudades de um outro tempo. adormece e entra em salas com pecados, com recados, com pecados. fecha e abre as portas. corre dali para fora. pedia muito: dorme, dorme: há um amigo numa sala que a olha de lado. pecado e recado. começa a chorar. acaba a gritar.
vai trabalhar.

terça-feira, março 17, 2009

vou dedicar-te um texto

vou dedicar-te um texto após alguns textos sobre as horas e os minutos e sobre o meu coração a morrer neles de madrugada tão aflita a pedir por um cardiologista já era por ti que chamava um texto hoje estou a correr para um ataque cardíaco sem pontos nem vírgulas na minha boca a comer o ar sem o deitar fora de cada vez vou dedicar-te um texto ou fazer de ti um texto
ontem acordou e pôs as mãos entre as pernas sentiu o quente do sangue e pensou passou um mês exactamente ou quase exactamente e também pensou disse mesmo não terias nojo deste sangue passou um mês exactamente és um texto de um mês e lá vai ela pela calçada a recordar-se de um texto zás uma mão zás uma perna zás o movimento de ancas zás a voz do texto a avisar que não aguenta mais é agora sua doida zás e agora o texto acabou e lembra-se que começou com uma frase absurda a comandar que não podemos não podemos isto e aquilo e em cada movimento o anúncio certo disso e daquilo e agora adeus antes que morta na alma como já se escreveu tantas vezes e agora adeus na mesma posição no cantinho esquerdo da cama à direita o teu sorriso ou gargalhadas e muita humidade e muita humidade e muita saudade

quinta-feira, março 12, 2009

a Voz

são 22h e 55 m. ela pensa talvez hoje a dor ocupe o lado esquerdo da cama e fique quieta e eu possa dormir. navega pelas páginas dos seus livros, tão odiadas pelo familiar de faca na mão, ao fundo vê, como sempre vê, uma ilha deserta, que não lhe dá conforto, mas o desconforto psicanalítico da memória mal escondida de um afogamento lá atrás. na véspera pediu consolação. não: amabilidade. é muito, para muitos.
são 4h e 32 minutos. cai uma lágrima lenta a escutar o coração tum, tum, tum, não dormi, não dormi, não dormi. vira-se de costas para o espelho e vê a voz que escuta com mais atenção, a tantos voos de distância, tão doente, a voz dos seus livros todos, a voz que diz: talvez a ternura nos salve. não se telefona a uma voz; escuta-se essa voz que lhe diz sempre ironize, ironize, e ela a olhar para os pêlos brancos no cimo de uma camisa de pescador, a olhar para as extremidades de quatro mãos que se tocaram pela ponte de um passarinho que pousa sempre nas nossas mesas, não é, meu amor? ela a pensar que a voz que escuta com mais atenção é a voz que escuta com mais atenção porque tem consistência: é amável há 20 anos; é verdadeira há 20 anos; é honesta há 20 anos; é autêntica há 20 anos; não tem outra estratégia que não a da verdade há 20 anos, a voz que ela escuta com mais atenção. às 4h e 34 minutos pede-lhe que ao fim de 20 anos deixe de ser uma voz e que se transforme num ombro. e num ouvido, no qual possa soprar sabes?, mais uma banalidade, mais uma inconsistência, e há um familiar com as veias do pescoço de fora que me não deixa dormir e o meu coração está por um fio.
tum, tum, tum, volta-se de frente para o espelho. sabe o que ouviria: integre a sua condição.
São 4h e 35 minutos, embrulha-se na voz que escuta com mais atenção e a banalidade fica assim: uma banalidade.

quarta-feira, março 11, 2009

e assim se vai

vai-se embora só com o dedo indicador, enquanto o homem de 80 anos lhe prende a mão esquerda ao telefone, uma amargura a vida dele, a luta de milhares de contos para a ver perdida na burocracia de um país menos deserto do que ele: morto; vai-se embora, só com o dedo indicador, o coração não descansou desde a véspera, sabe que não viverá muito mais. vai-se embora, assim, a escrever, enquanto 82 rugas lhe falam ao ouvido esquerdo, a dizer de um projecto de uma vida, do qual não se desiste nem depois de morto; trezentos volumes de requerimentos, qual a miséria maior? é secundário. ouve não lhe tiro mais tempo e até à próxima e pensa: - vou-me embora com o indicador comido a 120 batidas por minuto, fora os minutos em que fumo, vou embora não sem antes visitar o abismo de um cigarro e em cada morte inspirada recordar a inspiração do velho que me fala morto pela burocracia.
ela morta por um coração que não tem mais forças para o seu corpo que é todo ele uma cabeça.

terça-feira, março 10, 2009

defesa

o que ela queria mesmo era um cardiologista. não é possível viver muito mais tempo neste estado em que todos os vizinhos lhe escutam as batidas fora do normal. não há cardiologista algum na sua lista de telefones, há apenas a memória do desgosto de uma fúria que o familiar abateu sobre ela e que como sempre teve os seus danos tardiamente a fazerem estragos num coração que bate tanto, tanto, tanto. pelo meio, um homem inesperado que lhe promete e que a faz prometer a frase imatura, usual, mas à conta da promessa e à conta de não haver cardiologista algum, entra-lhe um jovem pela casa que lhe sopra ao ouvido, como um poema complicado, a tua vista é fixe; ela a dizer-lhe calada que a tua função é retirares função ao homem inesperado, mas o comando é muito difícil para a simplicidade de quem só se preocupa com o sol de sábado e com a previsão de um amanhã igual. a tua vista é fixe; lembra-se de um texto antigo, três mulheres e um tapete, e faz a metamorfose do rapaz em rapaz literário: dois amantes e um tapete? não chega, mas ajuda, ele bebe cola, ela bebe água, ele é muito bonito, soletra frases com três palavras, um rapaz bom. (a tua função é retirares função ao homem inesperado, ao homem da frase imatura que sempre se diz). disseste alguma coisa? ela responde que não disse nada e acompanha-o à porta.

segunda-feira, março 02, 2009

uma mensagem

a sua casa e a de todos os vizinhos ficou sem luz. a sua casa, que já é preta, escureceu contra a luz que lhe diz amanheceu e a rapariga, a mulher, pousou com vagar os pés por onde andava, meia nua, escutando o vento que nasce no cemitério. demorou a entender que a escuridão não era só da sua casa preta, mas do prédio inteiro, e ali ficou, sentada numa cadeira, molhada, meia nua, encontrada na luminusidade aglutinante do ecrã de um telemóvel.
uma alegria.
uma mensagem.
uma alegria.