dar a nossa a vida a quem pergunta por ela
(eu perguntei por ela sem grande sentir)
explicar a nossa dor a quem se deu o gesto
(eu ouvia mas mas mudava a frequência da rádio ao mesmo tempo)
esperar que o telefone toque como naquela semana parecida com esta
( )
doer ter feito um desenho com as mãos com tanto jeito
doer ter dado conta da nossa dor
doer ter pensado que a dor doía no outro
ocupado
a escapar-se
entender o silêncio
e depois:
viver o silêncio
quinta-feira, outubro 30, 2008
domingo, outubro 26, 2008
Inferno
pensava que conhecia o inferno, mas estes anos todos andou pelo purgatório. sabe o que é um ataque, sabe o que é quase morrer, mas o seu corpo estava sempre encostado a qualquer coisa, e nunca cegava. era atirada sem piedade contra paredes cobertas de espinhos, mas as paredes são condição de espaço, e por isso ela estava ali e via dali.
- estou péssima: eis o anúncio do início da semana
- é uma fase, isso passa.
chegam os três dias temidos e entra num não-lugar; tudo é dor e chamamento para morrer imediatamente, antevendo os cerimoniais em todos os seus sons, em todas as cores dos tecidos deles. não há esquinas, não há paredes, não há onde amparar o corpo para ganhar perspectiva e cega-se. há, o que é violentíssimo, gravidade, mas não cai num qualquer chão, não choca com nada, quando a dor insuportável a faz circular a alta velocidade e lhe dita morre imediatamente. não há qualquer apoio, ponto de chegada ou ponto de partida.
(a dor em infinita vertigem).
grita mãe, mãe, mãe, esmurrando a cabeça, até a mãe aparecer. ao fundo, o olhar seguro do homem que veio de avião em seu auxílio. não chega. chora muito alto, agarra-se à barriga da mãe e quer muito entrar lá dentro para começar tudo de novo.
domingo, outubro 19, 2008
domingo só
chegou a única mensagem que não lhe traz nada senão a morte. o dia começou azul fresco numa praia onde ao longe as gaivotas não ameaçadas a deixaram dormir em vez de morrer. às cinco da tarde já viu um filme enrolada numa manta a recordar-se de como a temperatura mudou entre o meio-dia e aquela hora: começa a pensar e a fumar. está descalça e o coração acelera sem aviso. o silêncio é tão espesso que as lágrimas correm de fora para dentro. lembra-se do princípio dos três dias que matam as semanas e não sente calor. lembra-se da única mensagem que não lhe traz nada senão a morte. à hora do almoço sorria com um amigo e uma voz interior perguntava-lhe se pensava mais na morte ou se pensava mais na velhice. quando chegar a velha os vizinhos terão paz. mas a sua voz sussura-lhe que não verá num espelho uma velha. não recebe a carta que lhe daria talvez uma semana de vida. não recebe a mensagem que lhe daria talvez uma hora de alegria. chegou a única mensagem que não lhe traz nada senão a morte. morde a língua para fingir que quebra o cimento do silêncio. quando era pequena, havia a missa das sete. agora bebe um copo à mesma hora. de manhã, bem vistas as coisas, já estava enjoada. secou-se após o banho a ver a sua amiga morta mesmo antes de rumar à praia. fazia o creme circular à volta dos olhos e via aqueles olhos verdes. hidratava a boca seca e ouvia a boca da amiga morta falar da certeza da vida eterna. então perguntou-se nua se a amiga morta ainda a amaria integralmente, agora que podia ver tudo o que por cá fazia. esse pensamento foi o roupão a cobri-la da tristeza que cresceu em silêncio pelo dia fora. quase seis da tarde e a dor, ou o vazio, que são sinónimos, é enorme.
sexta-feira, outubro 17, 2008
Sonhos IV
cada Sábado um instante, mas depois uma facada, enche-se de sangue, as palavras estão gastas, são muitos séculos e muitas pessoas a utilizarem palavras, por isso é com muito ódio que se força a dizer que depois do sangue vem o tal cansaço e a raíz da ansiedade semanal, mais um frasquinho de veneno para a soma dos instantantes inúteis, como este homem, que lhe ataca os vícios como um soco nos rins e que está de perfil. ela olha-o e vê quatro olhos na sua face. dois onde devem estar e mais dois um pouco mais abaixo e o homem fala como se ter quatro olhos fosse normal, mas ele tem mesmo quatro olhos, e talvez ao acordar ela se dê conta que aquele peixe gigante que a sangra como nenhum outro tem sempre duas intenções, e daí o horror de quatro olhos; casa sábado um instante e o sangue dá nestes sonhos. deita-se no divã e perguntam-lhe pelo seu poder. a música soa sempre muita alta, ela tem, sim, muito poder, mas depois vem uma facada, enche-se de sangue, sonha com um rosto com quatro olhos, atira as pessoas pela janela, faz de todos os rituais o retrato da sua tese sobre os afectos e vai à sua vida, com a raíz da ansiedade semanal bem semeada.
bebe muita água.
quinta-feira, outubro 16, 2008
"talvez a ternura nos salve"
um dia ela estava como uma balão por soprar e o escritor escreveu-lhe talvez a ternura nos salve. ela explica-lhe que são quase dois mil dias de balão por soprar, essa coisa de já não amar mas de ter a imagem tão certa do que foi isso, mesmo que lhe digam talvez ficciones o passado, tanto faz, são quase dois mil dias de balão por soprar, e lá atrás havia um poema de manhã, sempre, ou muitas vezes, colado no espelho da casa de banho. de noite havia um veludo escurecido pelo tempo, não era só genética, umas costas que olhava depois de adormecidas para falar com elas e dizer-lhes tão-só obrigada. são quase dois mil dias de balão por soprar, mas talvez a ternura nos salve, de certeza que a ternura nos salva, diria, porque as pernas sabem do ofício de andar, não desistem. são quase dois mil dias, são, mas a ternura talvez nos salve, por exemplo numas mãos que deslizam a construir a palavra ternura numa pessoa que nos diz como estás? é muito.
terça-feira, outubro 14, 2008
A não perder
Ver: alguns dos quadros do Zé Lourenço que vão amanhã a exposição na Sociedade de Geografia de Lisboa na Rua das Portas de Santo Antão às 16h30
segunda-feira, outubro 13, 2008
Mudança
Ela às vezes olha para o lençol e diz-se assim: que cansaço. Ela às vezes apaga aquele cansaço com uma noite a sorrir. Nessa noite a sorrir não está só, como estava na noite do lençol com quatro meias perdidas, por ali. Que cansaço. Nessa noite, a sorrir, encosta a cabeça numa cintura que tem mais de trezentos dias e ampara no colo a cabeça com um cabelo que já foi mais curto, mais comprido, mais curto, mais comprido. Respira devagar e a ansiedade da memória da véspera vê-a derreter-se num gelado que não comeu, porque ela às vezes olha para o lençol e diz-se assim: que cansaço. Há um perfil que não sabe que tem o perfil que lhe empresta o olhar dela, vira-o de frente e atira-o para trezentos dias antes, numa cadeira um em frente ao outro, apenas para recordar um olhar que foi tão sorvedor que fez de mãos, ali, numa sala ao lado -lembras-te?Respira um pouco mais depressa e depois entrega-se ao silêncio, com a boca muito seca, por isso é que respirou por instantes mais depressa, é que ela à vezes olha para o lençol e diz-se assim: que cansada.
quarta-feira, outubro 08, 2008
Belgrado II
nós, sempre na linha da frente
há mais de quatro séculos nisto - é assim, é por isso, que é assim que nos vêem
dizes
in time of roses drink my wine, Dragan
os poemas teus em cima da mesa do pai morto
tinhas dezanove anos e soavam todos a garganta de velhos
falas, falas, falas, dás uma aula de literatura sérvia a um grupo de alunos croatas
e os alunos foram repudiados pelas suas famílias - o ódio, tanto ódio, e soa a guitarra
we should stop this and listen to your fado, Isabel
nós combatemos sempre na linha da frente, entendes? - e soa a tua guitarra
in time of roses drink my wine, Dragan
pode nem sempre ter sido como disseram que foi, é isso?
não choras
não gritas
curvas-te todo numa guitarra- vamos?
vou falar-te dos meus poemas sobre mortes acidentais
elas todas têm um sentido, mas aqui não se fala de mortes acidentais
vou falar-te da morte de um dentista
não choras
não gritas
mordes os lábios, mordes mais de quatro séculos na linha da frente
e eu digo: põe esse peso sobre mim
eu aguento
há mais de quatro séculos nisto - é assim, é por isso, que é assim que nos vêem
dizes
in time of roses drink my wine, Dragan
os poemas teus em cima da mesa do pai morto
tinhas dezanove anos e soavam todos a garganta de velhos
falas, falas, falas, dás uma aula de literatura sérvia a um grupo de alunos croatas
e os alunos foram repudiados pelas suas famílias - o ódio, tanto ódio, e soa a guitarra
we should stop this and listen to your fado, Isabel
nós combatemos sempre na linha da frente, entendes? - e soa a tua guitarra
in time of roses drink my wine, Dragan
pode nem sempre ter sido como disseram que foi, é isso?
não choras
não gritas
curvas-te todo numa guitarra- vamos?
vou falar-te dos meus poemas sobre mortes acidentais
elas todas têm um sentido, mas aqui não se fala de mortes acidentais
vou falar-te da morte de um dentista
não choras
não gritas
mordes os lábios, mordes mais de quatro séculos na linha da frente
e eu digo: põe esse peso sobre mim
eu aguento
quarta-feira, outubro 01, 2008
volta, antes que me ponha a rezar, volta, antes que me ajoelhe, ali onde não gosto, volta com a energia dos meus vinte anos perdidos em projectos enganados, volta, por favor volta, pára de morrer, minha querida, volta, volta, volta, amanhã, quem sabe, não desistas, não desistas, mas isto dói, mas isto dói, mas isto dói, não caias, não caias, amanhã, juro-te, amanhã, nessa cara um sorriso, eu não aguento até amanhã, eu não vivo até amanhã, pensa nos furos que tens nas orelhas, pensa no número que calças, pensa nos centímetros da tua cintura, podes ir chorando assim, assim, assim, assim, isso, isso, isso, volta, volta, por favor volta-me!
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