segunda-feira, outubro 29, 2007

Memórias

Um dia encostou a cabeça nos meus joelhos. Quinze anos depois, uma frase de alguém a dizer-nos o que se não ouve: eu estou ali com a tua cabeça nos meus joelhos, enterro os dedos num cabelo muito espesso e espero. O gesto foi apenas esse.
Há pouco tempo dizia-lhe: se tu morresses seria como amputarem-nos um braço. Dias depois, é ela a amputada. Quase a chorar sobre uma lápide e num ápice é já de manhã, houve um serão entre parêntesis, gostava de te ver decomposta? Diz não, pousa os joelhos nas datas brancas e de manhã a tua morte interrompe-se: sou a mãe dele. E numa frase assim começa a escrever: um dia encostou a cabeça nos meus joelhos. Quinze anos depois é o mesmo corpo, talvez mais bonito, e pensa: que bom seria beijar-te.
Ele regressaria à sua vida sem a possibilidade de sentir a dor daquela morte. Dir-te-ia: morreu-me uma mulher. Então, talvez com a cabeça encostada no meu peito nu, me pudesses dizer: fala-me dela.

segunda-feira, outubro 22, 2007

J.

A frase:

- és tão alegre
.

Depois lembrou-se de um texto antigo: você tem um potencial de alegria deslumbrante, mas todos os dias mata a sua felicidade. Nesse texto, reproduzida, a voz que escuta com mais atenção.

E de repente, tantas alegrias mortas, tantas mortes passadas:

- és tão alegre.

No seu silêncio, a escutar a frase, uma contenção violenta para não explodir a chorar. Ou para não assustar aquela boca de sabedoria instintiva dizendo: se tu soubesses a alegria que me dá dares pela minha alegria. Porque de repente sou eu, de novo, assim: tu a fazeres de espelho num lençol desgastado. Entendes isto? Se tu soubesses da missa metade, mas não sabes, pouco importa, estou tão cansada de contar de me contar de contar-me e depois nada, psicologias suadas, inúteis, presunçosas e a falta que afinal me fazia quem antes de saber dessa falta diz de repente:

-és tão alegre.

sábado, outubro 20, 2007

Sábado

E chega uma dessas manhãs. É nelas que se abatem os cinco dias sem tempo para abaterem, sem corredores onde respirar. Respirar. A tristeza é um cobertor que varia em camadas: uma manta fina sexta de noite que acorda feita em lã grossa, muito pesada. As noites de sexta são então o início da tristeza.
E chega uma dessas manhãs. É nelas que se abatem os planos da véspera, morrem, um a um, o peso atira-nos para o chão. Sem ar. Há uma febre que nasceu de noite, quando a vida ficou mais ou menos absurda: uma nova licenciatura por cumprir, à conta de provas de esforço ou uma, duas, três rejeições choradas sem equilíbrio, um não quero ver-te a fazer sangue, a mãe a internar a filha, e assim chega uma dessas manhãs.
É nela que dor a dor se faz cada raiz de cada cabelo. Consciência do corpo é o mandamento em cima de um tapete azul, por isso consciência absoluta da febre, dos pulmões fechados, dos poros sebáceos. Dói, dói, dói e assim começa o início do meio da tarde. Os cinco dias sem tempo, sem tempos, a engrossarem o cobertor até ao segundo muito situado em que a música nos ouvidos fica mais baixa: este grito lancinante acompanha a febre que cresce e o corpo chora pelos olhos, vagueando entre os móveis abandonados, olhando uma fotografia até a desfazer em pedaços.
E acaba uma dessas manhãs. Quase, quase louca: afinal de pé, com todos os planos por incumprir.

terça-feira, outubro 09, 2007

Consolação

Está à beira de um ataque. Um ataque é uma loucura instalada a prazo nesse corpo. Ser a prazo não alivia em nada a dor do ataque, porque nesse prazo a dor é infinita, mas hoje o espaço é o que se sente antes, mesmo antes do ataque.
Está onde deve estar. O que inicia a sensação real de peso interior é estar onde deve estar. A sua pele, os seus olhos, pior, o seu olhar, tudo isso deve estar aqui, onde um computador dita ordens por cumprir e onde uma porta se abre de dez em dez minutos a marcar a normalidade que é isto: trabalhar.
O que seria normal, no entanto, está a dizer-se por dentro, mudo, mas com a força de uma gritaria numa sala almofadada, um quadrado perfeito, branca, muito só. O que seria normal está a desenhar uma fuga: o carro aqui tão perto, pensa, era só ter forças para chegar a ele, acelerar, passar a cancela, entrar em casa e mergulhar na prisão voluntária da sua cama, ali onde vomita o peso do medo e hoje, particularmente, o peso do cansaço, que também é medo.
(Tudo é medo).
Não quer morrer. Quer adormecer. Parece simples este querer, mas não é, porque o demónio do quotidiano sai-lhe pelos lábios verbalizado num sim, claro, almoço às horas tal e tal.
Engole um remédio branco para aliviar a exigência de descanso que saiu do remédio azul e para poder circular sem cair dos saltos dos sapatos, a pedir aos gritos que a levem daqui para um lugar onde possa dormir; não é morrer, é dormir.
Os sonhos da noite passada estão magoados por uma voz materna que lhe diz estás louca, é esse o sonho que treme nos nós dos dedos e que se interrompe quando o rapaz entra na sua sala e pergunta: estás bem?
Não mente, diz que está como está, mas a resposta sem a fronteira da sobrevivência num vestido, mesmo de algodão, seria assim: hoje estou com a cabeça pesada, mas pesada num sentido que não dá para esvaziar em palavras. Olha, estou com o peso que me avisa que a qualquer momento vou gritar e dizer eu não posso mais, eu ando para aqui cheia de medo e de mortos às costas, a minha cabeça parece uma areia movediça e engole-me pelos pés. Vou ali e já volto, mergulhar no mar, ou numa cama, e preciso de chorar muito, e preciso de ganhar coragem e dizer que este ano devia estar sossegada e não fazer mais que isto. Eu odeio chegar a casa às onze da noite com medo do meu corpo, do meu corpo dentro da minha cabeça. Eu preciso de fugir de mim, da minha família, do sangue lento que é a dor de todos eles, eu preciso de fugir das minhas plateias, eu preciso de agredir a ausência a que me agarrei tantos anos, e que se chama Deus, esse filho da mãe, literalmente, e culpá-lo de tudo, foder a pensar nele, ou Nele, já viste que alívio e que dor culpar uma ausência por esta merda toda?
É isto. A dor antes do ataque é assim.
Eu não quero morrer. Eu quero, eu preciso de adormecer.

quarta-feira, outubro 03, 2007

Evangelho

silêncio. silêncio. silêncio. depois, adormeceu. então, o silêncio deixou de dizer-lhe o que magoa.
de manhã, o silêncio chama-se contenção. à hora do almoço, o peso do silêncio finalmente parte-se. consegue. chorar.
dá com o evagelho de hoje. lembra-se de quando era seguidora.
lê:
Evangelho segundo S. Lucas 9,57-62.
Enquanto iam a caminho, disse-lhe alguém: «Hei-de seguir-te para onde quer que
fores.»
Jesus respondeu-lhe: «As raposas têm tocas e as aves do céu têm ninhos, mas o
Filho do Homem não tem onde reclinar a cabeça.»
E disse a outro: «Segue-me.» Mas ele respondeu: «Senhor, deixa-me ir primeiro
sepultar o meu pai.»
Jesus disse-lhe: «Deixa que os mortos sepultem os seus mortos. Quanto a ti,
vai anunciar o Reino de Deus.»
Disse-lhe ainda outro: «Eu vou seguir-te, Senhor, mas primeiro permite que me
despeça da minha família.»
Jesus respondeu-lhe: «Quem olha para trás, depois de deitar a mão ao arado,
não está apto para o Reino de Deus.»
termina a leitura. recorda-se das interpretações que salvavam o texto.
sente uma vaga náusea.
e regressa ao silêncio.