Põe a chave na porta à terceira vez, é sempre à terceira vez, na mão livre uma ocupação qualquer, e essa coisa qualquer pesa sempre, pesa e irrita, por isso irrita que seja à terceira que a chave entre na porta e sobre no elevador e diz tenho estas manchas na cara, parece que se chama tapete, eu era tão novinha. Era e ouvia: que sorte, mesmo a tempo e tens a vida toda, tão novinha. Sobe pelo elevador e passa a porta que é sua, cruza um prédio qualquer e procura um vizinho, faz hoje um mês que se fechou neste entra e sai, nunca se sentou numa esplanada, mas não dá por isso, isso: faz hoje um mês que se fechou neste entra e sai, e vê o amigo febril e esconde que teria de ir para uma escola aprender como se faz para viver se o amigo um dia não lhe abrisse a porta, portanto sorri porque vive como se este chegar a casa fosse para sempre; aliás: é para sempre. Ele é o para sempre dela. Cai no sofá, que quente a casa, ela, ela na casa, os dois vagamente encostados: correu bem o dia, sim, não desesperes, a febre passa, olha o meu telefone a tocar. Há um mês que não ouvia a voz transformada em inglês para que se entendam, realmente nunca lhe ouviu a língua verdadeira, e ele diz-lhe que a tinha perdido, o telemóvel, os códigos, tudo, e ela responde agitada que lhe enviara um mail, que bom ouvi-lo respirar, mas ouve mais que isso, ouve: estou em Lisboa. Em Lisboa? O sofá puxa pelo seu corpo que ali desmaia cinco minutos, despede-se do amigo para uma energia desconhecida, tomar um duche, usar uma base e tudo, faz hoje um mês que se fechou neste entra e sai, como e onde ir, que é feito de Lisboa em Agosto? Parte uma unha enquanto faz da sua casa uma coisa e ele entra e integra-a num abraço. Afasta de si línguas, dedos, o que seja, quer muito ir jantar fora, tanto que está cega pelas lágrimas, you look so beautiful, sim, sim, mas eu queria mesmo era uma esplanada, um copo de vinho, levas-me? You look so beautiful, vamos, vamos, assim mesmo ao som do voltar atrás do elástico junto a uma anca, o meu quarto anda ocupadíssimo por toda eu, vamos para junto do rio? No elevador somos duas pessoas, duas pessoas? Duas pessoas, o meu rosto está outro, vamos num carro que não é meu, que coisa esta de me levarem? Antes mesmo de jantar contigo, antes mesmo de rir numa mesa arejada pelo rio, olho para ti sem que me vejas nessa morte e volto às minhas mãos com a minha solidão feita em pedra porque chegaste. É isso: passas por cá tu inteiro, que partes amanhã, e és o retrato do meu vazio. De resto, foi só nos teus braços que me dei conta de que o meu telefone não toca.
- It doesn´t ring?
- No.
1 comentário:
Cara Isabel,
Os seus textos são densos e corajosos. Oxalá pudesse soprar-lhes, entre linhas, um pouco de luz. Vejo que a matéria-prima não é pera-doce (isto não é um gracejo).
Cruzámo-nos há uns anos, na Faculdade de Direito, mas isso,claro, não tem a miníma relevância.
Joana
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