sexta-feira, agosto 17, 2007

Agosto II

em Agosto é usual, dizem-lhe, tirar um dia de férias para isto. uma multidão no número da primeira de três senhas: 365. um ano de pessoas e agarrada à sua vez, senta-se a um canto
E pensa:

- vem aí, vem aí, vem aí.

(as costelas apertam lentamente, mais e mais, o seu coração, respira a lutar contra essa opressão)

E pensa:

- nunca vou ficar boa, nunca vou ficar boa, nunca vou ficar boa.

(não vê as pessoas, mas os pormenores delas que as matam, que a deixam viva em agonia, vê o salto agulha de uma menina apressada, vê o som do verniz a escamar, da mulher ao lado, vê os olhos cegos da rapariga “prioritária”, vê o choro da criança ao colo de um colo qualquer, vê o homem de olhos amarelos, esbugalhados, a ser medido e a gritar um metro e sessenta, vê a pessoa que lhe morreu nisso tudo, vê a sua própria lágrima cair-lhe nas costas da mão que treme, vai à casa de banho e sai de lá um avental a dizer que aquela é só de serviço, mas o avental tem pena dela e diz sente-se aqui e chore à vontade)

E pensa:
- isto dói tanto, isto dói tanto, isto dói tanto.
(às vezes pensa na sua mãe, pensa no seu pai, dizendo, muda, mãe, pai, pai, mãe; às vezes entre dois gritos agudos da máquina que dita o número do cidadão a atender vê-se morta, um alívio, diz: porque não aguento mais esta dor. mas dói mais saber que não morrerá, pai, mãe, mãe, pai; às vezes o telefone toca e há uma voz que lhe permite explodir a chorar e confessar)

O que pensa:
- eu não ando nada bem. nada. tenho muito medo. estou muito só. eu não ando nada bem e tenho ataques de pânico difíceis de soletrar.

E ouve:
- por que não telefonas? é que não me interessa nada viver assim.

E pensa:
- preciso tanto do meu irmão.

(alargou as costelas depois das cinco, já sem febre, e do número 365, chorando muito este ano de morte, de medo e de desencontros)

quinta-feira, agosto 16, 2007

Agosto

Esteve fora e hoje parece-lhe que nunca saiu do parapeito da janela
Lá onde se acumula o pó a contar a sua ausência
E hoje a dizer-lhe: regressaste e olha o que fizeste
O que nos fizeste
Ou: por onde andaste?
Andou por um lugar qualquer e desses dias interessa apenas
O instante em que olhou o céu
Estava caída numa areia branca muito preta pela noite
E não sentiu absolutamente nada
Sorriu para umas palavras que lhe chegavam de cima
Numa outra língua
Não as ouviu
Ou ouviu o rumor delas a não atrapalhar aquele céu
E pensou: eu, aqui.
Depois voltou e disse
Estive fora e parece-me que nunca saí do parapeito da janela
Estou para aqui decomposta neste pó que me conta a ausência
Andei por um lugar qualquer a amassar-me toda
Um dia deixei de respirar
Depois dormi muito e nadei o mais que pude
E houve o instante em que olhei o céu
Cheio de estrelas mudas, estava tudo muito quieto
E eu não sentia nada, nada, nada
Olhava e pensava: eu, aqui.