quinta-feira, junho 28, 2007

Diálogos II

- E tu, de onde és?
- Sou de uma terra lá do interior, que não existia até passar a existir, por causa de uma linha de comboio.
- Estás a gostar de Portugal?
- Ainda só conheço Lisboa. Nunca fui à praia. Não sei nadar.
- Tens sido bem tratado?
- Não me tratam mal. Estranham-me. Mas eu estranho-os com mais estranheza. São quase todos casados e são todos dos que levam.
- Tens cuidado contigo?
- Nunca me roubaram nada. Quer dizer, até hoje, só me roubaram oito bicicletas.

sábado, junho 23, 2007

TU POSSÍVEL

ONTEM, QUANDO FALEI DE TI, FIQUEI ASSIM POR DENTRO, UMA EXPANSÃO O TU SERES UM TU QUE É POSSÍVEL, MESMO QUANDO ESTÁS FEITO NUMA PALAVRA, QUE É O TEU NOME: DIGO ASSIM: POR ACASO FALEI SOBRE ISSO HOJE COM O N., E QUANDO O TEU NOME SAI DOS MEUS LÁBIOS, INTERROMPO A EXPRESSÃO MUSCULAR QUE OS OUVINTES ESPERAM DAS MINHAS SOBRANCELHAS, PORQUE ME EXPLODES NUMA VAGA DENSA, QUENTE, UMA MEMÓRIA JÁ, COMO SÓ QUEM É UM TU POSSÍVEL PODE SER, ESTOU ALI NUMA MESA, ADORMECES-ME O CORPO PORQUE ME DÓIS, SÓ ME DÓI O QUE É VERDADE, E CRESCES ASSIM SEM AVISO, NO MEIO DE DUAS PALAVRAS: POR ACASO HOJE FALEI SOBRE ISSO COM O N.: E PARECE-ME OUVIR: ISABEL, EM QUE PENSAS?, MAS SERIA MAIS CERTO: ISABEL, ONDE ESTÁS? TU NÃO IMAGINAS O QUE ME ACONTECEU ENTRE DUAS PALAVRAS: POR ACASO HOJE FALEI SOBRE ISSO COM O N.: O MUNDO CONGELOU-SE NUM SEGUNDO E, COMO EXPLICAR?, ESTA DOR, TU, AS NOSSAS MESAS, NÃO, TU, O QUE SINTO POR TI, NÃO, TU, UM INVASOR SEM ARMAS DE FOGO, ATÉ NÃO RESTAR NADA DE MIM, FIQUEI PARA ALI OCUPADA POR TI, QUANDO O TEU NOME SAIU DOS MEUS LÁBIOS ENTRE DUAS PALAVRAS: POR ACASO HOJE FALEI SOBRE ISSO COM O N.: ESTÁ A DOER-ME NÃO CONSEGUIR EXPLICAR ISTO, PORQUE QUASE ME NÃO PERTENCE, TALVEZ ENTENDAS, PORQUE ME ENTENDES TUDO, ERAS TU A ABRANDARES A ÂNSIA COM QUE FALO NAS MESAS TODAS, SEM PARAGENS QUE ME DENUNCIEM, ERAS TU A ACAMARES-ME EM TI, NO QUE SINTO EM TI, CONTIGO, PODE SER ISTO O AMOR?, UMA NOSTALGIA PELA QUAL SE CHORA SEM RESSENTIMENTO, ANTES COM INTENSA COMOÇÃO, ERAS TU, OU A MEMÓRIA DE TI, AS NOSSAS MESAS, UM TU POSSÍVEL, NÃO, ERAS TU, MAS O QUE ME DOEU FOI SENTIR QUE ERAS EU, SEM NINGUÉM PODER ENTENDER UMA COISA DESTAS, ISABEL, ONDE FOSTE?, SABER QUE FUI EU POR DOIS MINUTOS E SABER QUE SÓ TU ENTENDERIAS ESTE TEXTO CARDÍACO E SABER, QUASE CHORANDO, O QUANTO PRECISO DE UM ABRAÇO TEU, FOSSE QUANDO AS COSTAS DAS MINHAS CADEIRAS NÃO ME AMPARAM.

segunda-feira, junho 18, 2007

Diálogos I

- E hoje tens medo de quê?
- Hoje tenho medo de ter chegado a casa.
- Só?
- É muito. Ter medo de ter chegado a casa é muita coisa. E tive medo de ficar de pé numa cozinha a ouvir o som, a voz da mulher de sempre. Tive medo que ela visse o meu medo. Calha que a conversa está presa a uma dor comum e enquanto se aquece a água para o chá cria-se um espaço onde se chora sem estranhar esse choro inaugural. Rompo assim a teia de aço do meu medo.
- Uma bela imagem.
- Uma teia de aço, assim o meu medo. Cheia de fios e buracos desenhados com rigor, o ar a passar entre eles sem que se sinta que passa e o mundo para lá da teia sufocado nela e desenhado por ela: a minha grade. Quando a conversa da dor comum se inicia, o aço rompe-se, explode sem som, e eu começo a chorar, umas lágrimas a descomprimirem a aflição deste peso, e digo o que posso dizer, mas por dentro digo: que alívio, mãe, estava quase a gritar socorro e a dizer-te que estou muitas vezes por um fio, não de aço, um fio fraco como a contenção do meu choro, isto dói que farta.
- E agora?
- Lembrei-me de uma cena desgraçada do filme que quero fazer. Um filme irrealizável. A mão a passar na testa do homem ressuscitado, a descobrir nela duas entradas cavadas num tempo passado longe de mim.
- Tu tens saudades, não tens?
- Tenho uma dor. Uma dor muito forte, uma ilha num mar de gente e de coisas por que devo estar grata, mas como dizia um homem no filme real que vi ontem no cinema, elas não passam da minha pele. O mundo bate-me à porta, a minha pele, e não entra.

Eu não consigo.

quarta-feira, junho 06, 2007

Intervalo

Os dias perderam-se numa torneira ferrugenta
E sinto o gotejar deles, os dias, dia-a-dia
Numa torneira ferrugenta, a minha garganta
A minha memória feita em cano cheio de atritos
Os atritos a sentirem aquele gotejar neles, por eles
Protection – Massive Attack, ouço
Por um fio, massive, massive attack, penso
Os dias são plurais, não por serem muitos
Uns atrás dos outros
Os dias são muitos porque tudo isto e eles também
Pesa de mais
Um mais um são dois a pesar, são dois a doer
A corroer
Pingos muito lentos, de noite, na minha cama
Cada dia mais difícil, cada noite mais escura
Mais pesada
A pedir protecção, a pedir por uma protecção
Cansada de medo: massive, massive attack
Até que acontece qualquer coisa
Uma mesa muito familiar, a hora antes da hora
Das outras mesas
E uma pessoa que me vence o tremer e o temer
E há um desejo forte de ficar ali para sempre
Ou ficar para sempre como ali
Sem tremer nem temer
Hoje é dia de intervalo, penso
Os dias uns atrás dos outros caídos numa torneira
Numa torneira ferrugenta, a minha garganta
O meu corpo, a minha angústia, isso: a minha vida
Mas hoje é dia de intervalo
E ainda se dá o caso de ter dado por não haver sal
Na minha mesa familiar
E de ter recordado o sal que ali fazia falta
Nuns poros tão aflitos como os meus