Tinha 23 anos e entrei na sala de aula, isto é, há 10 anos entrei na sala de aula e ninguém me seguiu, uma aluna, pensaram, voltei atrás e disse: entrem, entrou a minha primeira turma, tinham 18 anos, hoje são tão mais velhos do que eu era então e sabem tão mais do que eu sabia então, olhei-os e pensei: a minha primeira aula. Hoje, tenho naquela sala amigos.
Nos meus 10 anos na Faculdade de Direito, na Clássica, como se diz, o que me entrou no sangue foram momentos, gestos, sons, dos alunos e dos funcionários, das telefonistas: o aluno que ficou uma hora e meia a ser interrogado no 1º ano, frágil, forte, parecia um candidato a mestre, a debater-se com a sabedoria e a ciência de anos de leituras, e tinha só 18 anos e teve o 17 que nunca se atribuía; a aluna do sul, aflita com a frieza da exigência de tantos livros em tantas disciplinas em simultâneo, com medo de desiludir os pais, sentada num banco a chorar a sua distância, tão jovem para desistir, tão fácil uma palavra, que ninguém lhe dava na pressa dos corredores, na urgência da competição, os olhos mais doces que conheci, dizia assim: ó professora: e chorava sem som, até conseguir ser o que é, capaz e sensível, combinação difícil naquele curso; a filha que foi estudar amedrontada, inteligente sem saber disso, e então o pai foi estudar com ela, fui professora dos dois ao mesmo tempo, uma ferida a sangrar água, que acabou bem por isso, que acabou tão bem; a romântica multifacetada que fez metade do curso com dores de cabeça crónicas, sem desistir nunca, tinha uma beleza dos anos vinte e vestia-se de preto, como quem sabe literariamente o que é a dor; o desarrumado mental, irrequieto, nervoso, com bons instintos, que estudava de véspera, que me irritava em cada 10, sempre a pedir para entrar atrasado para mais um cigarro, a bondade a sobrar-lhe na cara; os tímidos crónicos; o timorense sorridente, perdido no português, corajoso nesta emigração, com o seu sonho de voltar à pátria com um saber para servir; o rapaz mais sucinto que conheci, com olhos de quem vê 110%, pouco interventivo, infalível no 14; os alunos da noite, uma espécie de heróis, chegados dos seus empregos, vindos de dois ou três transportes para um curso destes, com uma maturidade que o dia desconhecia, sem tempo para reivindicações, perguntava-me a que horas estudariam.
São só exemplos de milhares de pessoas, pessoas, pessoas, gravadas na minha memória. No anfiteatro 1, enquanto o Regente falava, perdia-me a olhar para cada rosto, ano após ano, imaginando a vida de um, o futuro de cada um ali começado, às vezes ameaçado.
Depois, os funcionários. No início, as senhoras que guardam os livros das assinaturas das presenças iam às salas de aula, por isso conheciam os alunos que diziam: bom dia senhora tal e tal. Depois passaram a estar amarradas a uma cadeira. Ficaram tristes com isso. Como sou ansiosa com as horas, chegava sempre muito antes das minhas aulas e ficava para ali a falar com as senhoras dos livros das assinaturas. Guardo com um respeito e carinho enormes a vida que me confiaram nas suas palavras. Também me agarrava o cansaço, muitas vezes, o sorriso pronto e muito audível das senhoras do bar: então, doutora, como lá um bolinho! Pessoas tão boas.
O Direito constitucional e o Direito internacional público, para mim, foram essencialmente pretextos. O que eu queria era comunicar. Chegar àqueles jovens, àquelas pessoas. Ter a certeza de que dava por eles. Agora que me vou embora, espero apenas ter conseguido. Obrigada a todos os Professores, colegas, funcionários e alunos que marcam para sempre a minha vida.
Nos meus 10 anos na Faculdade de Direito, na Clássica, como se diz, o que me entrou no sangue foram momentos, gestos, sons, dos alunos e dos funcionários, das telefonistas: o aluno que ficou uma hora e meia a ser interrogado no 1º ano, frágil, forte, parecia um candidato a mestre, a debater-se com a sabedoria e a ciência de anos de leituras, e tinha só 18 anos e teve o 17 que nunca se atribuía; a aluna do sul, aflita com a frieza da exigência de tantos livros em tantas disciplinas em simultâneo, com medo de desiludir os pais, sentada num banco a chorar a sua distância, tão jovem para desistir, tão fácil uma palavra, que ninguém lhe dava na pressa dos corredores, na urgência da competição, os olhos mais doces que conheci, dizia assim: ó professora: e chorava sem som, até conseguir ser o que é, capaz e sensível, combinação difícil naquele curso; a filha que foi estudar amedrontada, inteligente sem saber disso, e então o pai foi estudar com ela, fui professora dos dois ao mesmo tempo, uma ferida a sangrar água, que acabou bem por isso, que acabou tão bem; a romântica multifacetada que fez metade do curso com dores de cabeça crónicas, sem desistir nunca, tinha uma beleza dos anos vinte e vestia-se de preto, como quem sabe literariamente o que é a dor; o desarrumado mental, irrequieto, nervoso, com bons instintos, que estudava de véspera, que me irritava em cada 10, sempre a pedir para entrar atrasado para mais um cigarro, a bondade a sobrar-lhe na cara; os tímidos crónicos; o timorense sorridente, perdido no português, corajoso nesta emigração, com o seu sonho de voltar à pátria com um saber para servir; o rapaz mais sucinto que conheci, com olhos de quem vê 110%, pouco interventivo, infalível no 14; os alunos da noite, uma espécie de heróis, chegados dos seus empregos, vindos de dois ou três transportes para um curso destes, com uma maturidade que o dia desconhecia, sem tempo para reivindicações, perguntava-me a que horas estudariam.
São só exemplos de milhares de pessoas, pessoas, pessoas, gravadas na minha memória. No anfiteatro 1, enquanto o Regente falava, perdia-me a olhar para cada rosto, ano após ano, imaginando a vida de um, o futuro de cada um ali começado, às vezes ameaçado.
Depois, os funcionários. No início, as senhoras que guardam os livros das assinaturas das presenças iam às salas de aula, por isso conheciam os alunos que diziam: bom dia senhora tal e tal. Depois passaram a estar amarradas a uma cadeira. Ficaram tristes com isso. Como sou ansiosa com as horas, chegava sempre muito antes das minhas aulas e ficava para ali a falar com as senhoras dos livros das assinaturas. Guardo com um respeito e carinho enormes a vida que me confiaram nas suas palavras. Também me agarrava o cansaço, muitas vezes, o sorriso pronto e muito audível das senhoras do bar: então, doutora, como lá um bolinho! Pessoas tão boas.
O Direito constitucional e o Direito internacional público, para mim, foram essencialmente pretextos. O que eu queria era comunicar. Chegar àqueles jovens, àquelas pessoas. Ter a certeza de que dava por eles. Agora que me vou embora, espero apenas ter conseguido. Obrigada a todos os Professores, colegas, funcionários e alunos que marcam para sempre a minha vida.