sábado, fevereiro 12, 2011

Meu amor, a tua data. É assim.

Não é esperar que seja dia 12 e dizer foste há 4 anos. É acontecer morrer de noite, sem saber que bate o dia seguinte, que é dia 12. Somos para sempre loucos, desde um dia em que os telefones tocaram uns atrás dos outros, mas a loucura é silenciosa, aprende a fazer coisas extraordinárias, como viver; mas ela sabe sozinha o dia de dizer foste há 4 anos e nesse dia abre as grades e varre as ruas a gritar, a gritar. Estamos loucos, meu amor.

segunda-feira, outubro 25, 2010

ST

Ela vem de uma estrada que lhe comeu as solas dos pés; está flagelada, um Cristo feito mulher caindo para a direita e para a esquerda, para a direita e para a esquerda, é tanta a poeira no ar, fecha os olhos com força, sabendo-se há muito cega, cega, cega e a tombar, mas anda como se aguenta, uma música, um poema, a recordação do único beijo sem requisitos, a poeira infecta as chagas daquele andar, ajoelha-se por uns minutos, que são um ano ou dois ou quatro, e cospe nos dedos de unhas partidas; passa os dedos molhados pelos joelhos todos uma crosta em construção e recorda-se quando a brisa fura os eucaliptos e depois o seu cabelo, recorda-se de um pedido junto ao ouvido, um pedido amado, um pedido a amar, o seu corpo tão excitado, sem entender ainda tanta humidade conduzida com amor, então a voz pedia-lhe que molhasse os dedos e que os enfiasse nela, e assim fazia, aflita, nervosa, o mundo acabara ali, ali nesse gesto de cuspo, o mundo acabara ali, ali disse que teria um telefone novo, que teria uma agenda nova, que teria uma rotina nova, que teria uma morada nova, que teria uma cidade nova, que ficaria por aqui, que seria esta mulher regressada afinal ao mesmo Tejo, à mesma Alfama, ao mesmo inferno feito céu num dedo húmido a pedido; foi assim que o mundo acabou e foi assim que um dia a mulher descobriu que tinha os ossos de fora, tão novo isso de amar que emagrece, emagrece, e depois a aflição, regressar à copa dos seus milhares de eucaliptos para morrer vivendo, dizer adeus amando, prometer andando de costas, chorar descontroladamente e esfregar urtigas no sexo, na boca, e ver sangue e poeira e perguntar na terceira pessoa pelo reconhecimento desta mulher ferida feita Cristo ajoelhada. Eu?

segunda-feira, setembro 27, 2010

Pinheiros

Talvez fosse Maio e o seu corpo repousasse como nunca ali onde às vezes são outros os sons, outros os passos, animais e visitantes que não os dos seus dias; talvez fosse Maio, cigarras, grilos, que nomes dar àquelas coisas que faziam um musical murmurado?

(um dia o Homem disse-lhe que preferia o campo ao mar – o campo tem mais nomes).

Talvez fosse Maio, parece que sim, recorda-se de uma brisa, de um antes e de um depois, de esse tempo ser apenas reflectido no sangue a correr mais depressa ou num ruído acrescentado ao dos bichos, ao do feno, ao do abanar leve da copa dos pinheiros

- A minha mãe junta amor aos pinheiros, teve saudades deles quando emigrada, é deles que fala quando descreve Roma, olha que lindos aqueles monumentos na várzea.

Talvez fosse Maio, não se recorda de picos no corpo, recorda-se da singularidade de um outro corpo ser-lhe contíguo, isto é: não era só um depois distante, um depois para ir embora, um depois para encostar as costas ao peito, era um corpo contíguo, isso: podia temperar os olhos desse homem numa tigela pequena de barro e deitar fora os caroços, por isso nada mudou em adjectivos, em nosso redor, em redor deles, nada mudou em adjectivos: pinheiros; erva; várzea; cigarras; e grilos, o cenário ficou com o que dele diríamos antes, o que mudou foi aquela contiguidade, daí que acrescentássemos sem estranheza silêncio ao silêncio, e o que merecia adjectivo era o sermos encosto sentido um do outro, tão sentido que um carro parou mas não parou e disse talvez.

- Quem era aquele rapaz tão bonito?

(uma história tão longa, meu amor)

Ela rompe a chorar porque não entende de que cidade da Estónia chega a voz na terceira língua. Uma voz a interromper as cigarras e os grilos, uma voz é uma história, outro fim assegurado, quero tanto que me agarres, pois claro, e és tão interessante, este diz és tão latina, que coisa tão estranha, uma mulher latina a tratar de ser expulsa, que dizes, Estónia? Que fará esse homem na Estónia, como era o sorriso dele, não se recorda de um Maio, recorda-se de se não lhe adivinhar as dores. Nada conseguiu ouvir sobre o que queria saber: queria saber acerca das árvores da Estónia.

As pessoas andam muito ocupadas

- Uma língua a subir-lhe a barriga e a dizer-lhe que ela é isto e aquilo.

Uma porta a bater.

O rapaz bonito apanhou um barco.

Só para ela os pinheiros terão cheiro.

quinta-feira, setembro 02, 2010

Eu não sabia

Põe a chave na porta à terceira vez, é sempre à terceira vez, na mão livre uma ocupação qualquer, e essa coisa qualquer pesa sempre, pesa e irrita, por isso irrita que seja à terceira que a chave entre na porta e sobre no elevador e diz tenho estas manchas na cara, parece que se chama tapete, eu era tão novinha. Era e ouvia: que sorte, mesmo a tempo e tens a vida toda, tão novinha. Sobe pelo elevador e passa a porta que é sua, cruza um prédio qualquer e procura um vizinho, faz hoje um mês que se fechou neste entra e sai, nunca se sentou numa esplanada, mas não dá por isso, isso: faz hoje um mês que se fechou neste entra e sai, e vê o amigo febril e esconde que teria de ir para uma escola aprender como se faz para viver se o amigo um dia não lhe abrisse a porta, portanto sorri porque vive como se este chegar a casa fosse para sempre; aliás: é para sempre. Ele é o para sempre dela. Cai no sofá, que quente a casa, ela, ela na casa, os dois vagamente encostados: correu bem o dia, sim, não desesperes, a febre passa, olha o meu telefone a tocar. Há um mês que não ouvia a voz transformada em inglês para que se entendam, realmente nunca lhe ouviu a língua verdadeira, e ele diz-lhe que a tinha perdido, o telemóvel, os códigos, tudo, e ela responde agitada que lhe enviara um mail, que bom ouvi-lo respirar, mas ouve mais que isso, ouve: estou em Lisboa. Em Lisboa? O sofá puxa pelo seu corpo que ali desmaia cinco minutos, despede-se do amigo para uma energia desconhecida, tomar um duche, usar uma base e tudo, faz hoje um mês que se fechou neste entra e sai, como e onde ir, que é feito de Lisboa em Agosto? Parte uma unha enquanto faz da sua casa uma coisa e ele entra e integra-a num abraço. Afasta de si línguas, dedos, o que seja, quer muito ir jantar fora, tanto que está cega pelas lágrimas, you look so beautiful, sim, sim, mas eu queria mesmo era uma esplanada, um copo de vinho, levas-me? You look so beautiful, vamos, vamos, assim mesmo ao som do voltar atrás do elástico junto a uma anca, o meu quarto anda ocupadíssimo por toda eu, vamos para junto do rio? No elevador somos duas pessoas, duas pessoas? Duas pessoas, o meu rosto está outro, vamos num carro que não é meu, que coisa esta de me levarem? Antes mesmo de jantar contigo, antes mesmo de rir numa mesa arejada pelo rio, olho para ti sem que me vejas nessa morte e volto às minhas mãos com a minha solidão feita em pedra porque chegaste. É isso: passas por cá tu inteiro, que partes amanhã, e és o retrato do meu vazio. De resto, foi só nos teus braços que me dei conta de que o meu telefone não toca.

- It doesn´t ring?

- No.

segunda-feira, agosto 09, 2010

telefone

correu as ruas todas em redor do seu ofício: um pretexto, uma manicure ou manicura, ou como é que se diz, sabe lá, qualquer coisa que lhe beliscasse o corpo, talvez pelas cutículas lhe saísse o medo, antes que o medo vingue em terror; não tem hora marcada nem sabia que havia tanto sítio para limar as unhas nas ruas em redor do seu ofício, só com marcação, ouve, mas como se marca o final de uma dor?;
andou, andou, não pode correr, como lhe bate o coração e lhe sua o corpo inteiro, recorda-se de um cigarro e logo a seguir da memória do medo aumentado por um cigarro junto ao danúbio, olha para o cigarro e tem pena que não haja vício que lhe valha;
ou há?
- o que faz sem falar é um vício?
não, não;
sabe apenas que diz sempre que haverá o dia em que se lembrará deste dia, que se soma a tantos, mas quando vive uma das somas não aguenta nem mais um e resiste à salvação do telefone, dos números que sabe na ponta dos lábios ressequidos, nove, um, começa, desiste, deita o corpo no sofá que ficou em casa e despede-se de quem nunca se foi embora num pedido de perdão aflitivo.

quinta-feira, agosto 05, 2010

leste

- o que tens?
- tu.
- obrigado.
- pelo quê?
- vou então à minha cidade, tantos anos sem ver a minha cidade, tantos anos sem falar a minha língua e foram tantos os anos que a minha filha não pede afectos pelo telefone; quer uma cena moderna, electrónica.
- não pronuncias o nome da tua cidade, do teu país; fala-me na tua língua, sempre foram semanas a gritar com os gajos dos imigrantes.
- 58 dias, foi o que me disseram, não cumpri o prazo de dois meses, não é assim? dois meses para o meu cartão renovado, 8 anos em Portugal, dois dias ao telefone, o senhor está em lista de espera, assim fiquei, dois dias ao telefone, por isso 58 dias e dois dias fora do prazo.
- por dois dias ficaste um papel perdido nos corredores, sim, um bilhete de avião perdido, quantos ofícios feitos para esse bilhete?
(como é que se lambe lágrimas que não correm?)
- já está, novo bilhete, muitos gritos, vou à minha terra? que terra essa, que não vejo há tantos anos; ou é a terra que me não vê há tantos anos? não vou dizer-te o nome da minha cidade, para pensares nele como eu, muda; que queres que diga na minha língua?
- no domingo gostava de ir à tua praia secreta.
- (…………………….)
- que língua é essa? é russo?
- sim. porque os meus pais eram russos e foram ali parar. também falo a língua do meu país, mas a minha língua é russo.
- no domingo gostava que viesses comigo à minha praia deserta e que perdesses o peso de tantos anos nas mãos e que nadasses a ansiedade do rosto que a tua filha terá e que soubesses que a cena electrónica é um afecto que uma miúda distante conhece.
- falas inglês?
- sim.
- eu não.
- e então?
- gostava de falar.
- sabes dizer costas?
- sim.
- é muito.

segunda-feira, julho 19, 2010

Diálogos curtos II

_ Diz lá outra vez a palavra que mais disseste na vida.
- Adeus.
- Tem a ver com o amor, por exemplo?
- O amor é insuportável.
- És uma cobarde?
- Sou muito magra.

quinta-feira, junho 17, 2010

O que fazes amanhã?

perguntou-lhe entre os ruídos de um meio de comunicação revelador da distância de tantos continentes o que fazes amanhã e a mulher respondeu como num telegrama da segunda guerra mundial que faria nada de especial, mas pressentiu uma imprudência chamada desejo, calou-a, no entanto, que silêncio depois de uma resposta cheia de riscos?, isto é, cheia de interferências a cortarem duas vozes, ou que contra-resposta?; e se amanhã? veio então a proposta chamada desejo, com ponto de interrogação, um avião, dois aviões, três aviões, quantos forem necessários, e se amanhã?, e a mulher já a ver um amanhã, o amanhã, as vozes que podem dizer tudo, porque a voz vai sempre à frente dos corpos, as vozes feitas uma presença, duas pessoas, um homem e uma mulher, muito tarde e um aeroporto, numa língua em que se entendam, um comprimido para ansiedade, a palavra do desejo dela, um dia inteiro, um século lento à espera da noite escura no aeroporto, qual era mesmo a cidade de onde vinha o avião? unhas comidas, ou as peles em redor delas, pesa-lhe muito o cabelo longo, cada mulher que sai pela porta é o homem prometido, assim mesmo, as saias são calças com pénis vincados, as blusas abertas têm peitos amputados, tudo é ele, tudo és tu, esse desejo impudente, um avião, dois aviões, três aviões, quantos forem necessários, o amanhã é agora, eis que te vê sair por uma porta, és diferente da voz com interferências, espera-os e espera-nos vinho e queijo de Azeitão, amanhã três aviões de regresso às interferências, um hoje eterno é tudo o que o desejo impõe ou pede ou deseja, tens um sorriso muito inocente e quando não gritas gritas muito e sais e ela fica com a casa povoada.

quarta-feira, junho 09, 2010

sexta-feira, maio 28, 2010

Da cobardia e da coragem

Começa, desde logo, pela escravatura da gramática. Pela escolha das palavras. Eis o início da cobardia ou do medo de se dizer o que se é, o que se pensa, por causa daquilo que tem um nome: consequências. Numa pátria de gramática, a cobardia é uma cobra, os cobardes são escravos da língua, encostamo-nos para trás ao fim de um dia de opiniões e o ar está poluído de silêncios, isto é, do ruído enorme das palavras subsidiárias, as que acautelam as malditas consequências, as que asseguram que não se criam inimigos, as que não afunilam oportunidades futuras de convívios, desde logo profissionais. Eis então o silêncio desse ruído, todos os dias.
Nos murmúrios das mesas de café, dezenas de afirmações categóricas, dedos em riste, tanta gente afirmativa, tanta gente de peito aberto às balas, mas, depois, as faces desses murmúrios dão a sua fotografia aos textos que as desmentem, às intervenções que as integram no sistema dos bons costumes, faces sorridentes em apertos de mãos aos inimigos dos murmúrios das vésperas secretas, tudo assegurado, os amigos oportunos, os convívios para o que possa ser, os empregos de amanhã.
Há quem não tenha medo de uma máquina que não perdoa essa falta de medo passem os anos que passarem. Em bom rigor, há quem viva, mesmo, sem uma película de plástico transparente, porque genuinamente pensa, diz, escreve e fala sem a percepção de um sistema que regista, que pune, que cobra e que demite.
Os loucos, livres, ingénuos, na verdade, corajosos na vida pública porque o são numa mesa de café como o são na defesa de um amigo que leva uma facada numa esquina, são gente pouco atenta à manipulação dos cobardes com vestes de gente brava. São como as crianças recrutadas para os exércitos. Motivam-nos para darem a cara, para escreverem, para dizerem, para gritarem, aplaudem-nos em telefonemas privados, dão sugestões, dizem do que diriam no seu lugar, mas reservam esse lugar para os tais loucos, loucos de tão livres, que se esquecem, ou não sabem sequer pensar sobre isso, que cada palavra tem um preço, que cada intervenção assertiva cria um inimigo, que cada luta desinteressada interessa a alguém e é sempre olhada como interessada por tantos outros.
Os loucos de tão loucos pela liberdade caracterizam-se pela generosidade. Não sabem dizer não a qualquer pedido no qual vejam justiça. Emagrecem até ao limiar dos ossos pelos outros, se for necessário, e um dia, às vezes, acordam no espantoso acontecimento de um pedido deles não ser atendido pelo camarada, descobrem com a mesma perplexidade de um navegador que a bitola ética do outro não é a sua, verificam que há vinte portas fechadas por causa de uma denúncia justa, ligam para quarenta caixas de mensagens, encontram, enfim, um outro silêncio, o seu preço, e esse dá pelo nome de solidão.
É aí, nesse lugar, nesse lugar que é uma doença, a doença que predomina todas as doenças, a solidão, que o louco pela liberdade faz uma escolha: descobre o polvo que o rodeia e avança com os passos de sempre ou adere à poluição dos silêncios e junta-se em mesas de cafés, com a sua acutilância, de dedo em riste, denunciando as injustiças, as corrupções, as mentiras, murmurando-as, portanto, mas escorrendo-as no dia seguinte subordinado à gramática do compromisso, a ver se assegura portas abertas, chamadas atendidas, convívios sociais, amigos que dão jeito, trabalhos futuros.
Quando, nesse lugar, nesse lugar doloroso, mas de amadurecimento, o louco pela liberdade, o anterior ingénuo que tinha por normal não sofrer por carregar apenas a sua consciência, escolhe subordinar a gramática e não se subordinar a ela, escolhe riscar a palavra consequências do seu dicionário de convicções, temos um corajoso.
Em seu redor, um degelo. Ficarão poucos; os que contam. Mas, recordando Shakespeare, ele experimentará a morte apenas uma vez na vida. Já os cobardes, esses morrem várias vezes antes da sua morte.

domingo, maio 23, 2010

almofada verde

seria bom que me ligasses, tu e só tu que me podes tratar por tu e dizes assim:
- como está?
então, dir-te-ia que fiz aquele esforço, aceitar as pessoas ou uma pessoa na sua simplicidade, não querer que ela saiba do que tu sabes, do poço enorme ao qual descemos, do que significa dizermos amor, deus, morte ou proclamarmos, sem o peso da esperança, one of this beautiful nights.
-como está?
então, dir-te-ia que hoje uma vida inteira, acontece-nos muito, não é?, o dia está um carrasco, saí uma vez por causa do tabaco, nuvens e calor, não consigo mover-me daqui à minha praia, vejo sempre o carro cair numa ravina, merda de memória tão viva, do que aconteceu e do que não aconteceu, eu queria uma coisa muito simples, saber se ali, naquele sítio exacto, estariam apenas dois corpos e pegadas de gaivotas ou mais algumas pessoas como nós, que sabem daquilo, e o mar não tem nada que saber, hoje está com um ondulado largo, bom para me perdoar o peso.
fica para outro dia.
-como está?
estou aqui, N. o dia é esta almofada daquela cor do hotel de Faro.

segunda-feira, maio 03, 2010

Dia da mãe

Não envelhece quem envelhece ao nosso lado, respondeu um dia o meu pai a quem lhe perguntava acerca do como de tantos anos ao pé de ti. São quarenta e um a ditarem uma declaração do amor que tu espalhas à tua volta e que me sustenta há trinta e quatro.
Num parágrafo, já escrevi quarenta e um e há escrevi trinta e quatro, unidades de tempo, mas poderia ter escrito unidades de tempo como a semana passada ou o dia de ontem ou aquele ano em que me doía o corpo ou aquele telefonema que começou no meu choro e acabou no teu sorriso sempre de esperança ou, melhor, de força, de tanta força, refeito na minha cara finalmente seca.
O Cabo da Roca é o mistério da beleza sem par e só de aparente perigo, por isso mesmo, porque aquela ventania é uma montanha imemorial de vozes sábias, é assim que me surge, quando lá vou porque sim, não preciso de dizer a ninguém, não tenho medo do que parece, apenas parece um abismo, porque encosto o meu corpo ao limite da Europa e descanso o olhar no único elemento que me rouba à introspecção, esse mar que só tão tarde descobri não acabar na linha no horizonte, por isso eterno, calmo quando quer, revolto quando tem de ser, revolto, mas sem me transmitir medo algum, antes mensagens, avisos tantos, que me dizem quando devo esperar em silêncio, quando devo gritar até que uma rocha se parta, quando devo procurar uma luz no nevoeiro, ou mesmo quando devo ignorar este último, porque há o outro, sempre o outro, e nem a cegueira de uma parede opaca nos pode fazer hesitar nos passos.
Tu, sardenta, com o toque irlandês do teu pai, foste sempre o meu Cabo da Roca. Há uns anos escrevi-te: o meu cabo da roca.
Quando te pergunto como é possível perder tanta gente pela vida e não cair numa cama, como nós, não te dares ao direito de deprimir, não morreres por uns tempos, como é possível essa sensibilidade militante de te doer tudo, a tua dor e a dos outros, a tua empatia sem igual, numa viagem até ao dia do teu nascimento, e ainda assim não te tremerem as pernas, porque a vida segue, há sempre que tratar dos que ficam, dos tais que precisam de se deixar morrer por uns tempos, dos que não aguentam a tragédia do que não vem casado com a palavra anunciado, dizes apenas, num sorriso, que estou a disparatar, porque cada um nasce como nasce e não está em ti passar por mais do que chorar o que tens a chorar de noite e acordar para fazer o que há a fazer.
Devias ter nos teus nomes alegria, emoção, loucura saudável, generosidade e força. E para mim tens. (Ó meu deus, e quando pegas num lápis, distraída e desenhas obras de arte; ó, meu deus, e quando alucinaste com um monte de barro e fizeste em seis horas o busto do pai e tiveste por razoável, quando o mesmo foi transformado em bronze, marcar uma consulta no dentista e, para horror deste, sacar da broca e corrigir o olho da tua obra espontânea!)
O meu Cabo da Roca, tu que choras com a arte e que tens princípios de ataques cardíacos com um jogo de futebol, tu que sabes, como um mapa minucioso, das minúsculas e enormes diferenças quotidianas das alegrias e dores de seis filhos e doze netos. Tu que sabes que a ventania, a calma, o nevoeiro, o abismo, têm sempre a sua beleza – não tenhas medo, dizes.
Hoje, tal como no tempo em que se disputava o lugar no sofá ao pé de ti depois do jantar, a minha mão e a tua face conhecem-se e reconhecem-se, tantos foram os anos de cumplicidade a aproximarem-se.
Obrigada, meu Cabo da Roca.
E não te esqueças do meu pedido infantil: tu até aos cem e eu até aos setenta.

terça-feira, fevereiro 16, 2010

da subjugação

uma picada um pouco abaixo do externo, permanente. instala-se depois de se instalar, nela, isso, nela, o amor, o princípio do amor. perde solidez e um corpo desfaz-se em cera queimada, lentamente, às ordens da opinião do outro. talvez seja o que ele diz, talvez sim, talvez então tudo mais pequeno, o que fez, o que faz, uma ameixa e não um pomar, de uma semana de entrega o outro regista um gesto que parece ter sido desconfortável. ela não deu por isso e derrete-se toda na lembrança verbalizada ali, à sua frente, ainda ofegante de uma tarefa qualquer. diz-lhe, muda, olha para mim, para mim, para mim, a picada é tão forte quando me engano na fruta que compro, porque dói doer em vez de te bater.

segunda-feira, fevereiro 15, 2010

12 de Fervereiro

3 anos e eu não disse tu, ela ou nós, a ver se morrias de vez, a ver se eu vivia sem ti, mas morri eu sem te dar uma palavra, porque há três anos morremos ambas e teremos de aprender a viver com isso.

terça-feira, novembro 17, 2009

a coisa mais difícil

- eu sei o que vejo no espelho, sabes? demorou, mas eu sei o que vejo no espelho, entendes?
- parte-o, dizes.
é a mim que pedes que caia. eu, em pedaços, num chão de azulejos antigos.

quinta-feira, novembro 12, 2009

impulso

recebi a tua mensagem e tive muita pena de ter uma marcação com cabelos curtos
(ela está um grito)
não te enviei uma verdade: a minha mão pousada sem culpas e o teu cabelo comprido
(ela seria um abismo)
vou embora como se te pudesse abraçar: também a tua maturidade a ver-me decrescer
(nunca seremos)

quarta-feira, outubro 21, 2009

da intensidade

olha fixamente a mãe, esconde um coração que marcou cento e cinquenta num papelinho, cruza os dedos já sem peles, olha fixamente a mãe e diz: eu não quero falar nisso, nisto. tem uma análise mortal diante de si e insiste: eu não quero pronunciar-me sobre isto. chegou o tempo de não ser a minha vez; chegou o tempo de mudar de interlocutor.
fecha os olhos e senta-se, com 10 anos, no cimo das escadas. o pai pediu-lhe que falasse sobre o texto que escrevera na escola. muito bem escrito, filha. mas passa-se alguma coisa contigo? estás triste? por que é que descreveste com tantos pormenores uma pessoa a morrer lentamente nos braços da melhor amiga? viste alguma coisa na televisão?
este é o primeiro episódio. da sua intensidade.

domingo, outubro 18, 2009

parecendo um regresso

anda pela casa quando tu, meu amor, finalmente foste embora. chama-te de meu amor pensando no quadro que viu contigo, da Paula Rego, que se chama precisamente "Amor" e por isso inscreve-te naquele olhar, na sua história, uma tragédia: amem-me, sim?
anda pela casa, repousa um pouco, hesita quanto ao seu plano secreto, dele nada soubeste estes dias, fala ao telefone, grita o que te ocultou num sorriso hora após hora, grita, grita, grita. vai à cozinha e vê a sua mão decidir da escuridão daquele espaço: quanto tempo de vida, esta mão?
o seu corpo está quase imóvel. porém, rodou o pescoço e viu um vestido de noiva.
hoje o seu corpo seria outro.

quinta-feira, julho 23, 2009

O meu adeus à Faculdade de Direito

Tinha 23 anos e entrei na sala de aula, isto é, há 10 anos entrei na sala de aula e ninguém me seguiu, uma aluna, pensaram, voltei atrás e disse: entrem, entrou a minha primeira turma, tinham 18 anos, hoje são tão mais velhos do que eu era então e sabem tão mais do que eu sabia então, olhei-os e pensei: a minha primeira aula. Hoje, tenho naquela sala amigos.
Nos meus 10 anos na Faculdade de Direito, na Clássica, como se diz, o que me entrou no sangue foram momentos, gestos, sons, dos alunos e dos funcionários, das telefonistas: o aluno que ficou uma hora e meia a ser interrogado no 1º ano, frágil, forte, parecia um candidato a mestre, a debater-se com a sabedoria e a ciência de anos de leituras, e tinha só 18 anos e teve o 17 que nunca se atribuía; a aluna do sul, aflita com a frieza da exigência de tantos livros em tantas disciplinas em simultâneo, com medo de desiludir os pais, sentada num banco a chorar a sua distância, tão jovem para desistir, tão fácil uma palavra, que ninguém lhe dava na pressa dos corredores, na urgência da competição, os olhos mais doces que conheci, dizia assim: ó professora: e chorava sem som, até conseguir ser o que é, capaz e sensível, combinação difícil naquele curso; a filha que foi estudar amedrontada, inteligente sem saber disso, e então o pai foi estudar com ela, fui professora dos dois ao mesmo tempo, uma ferida a sangrar água, que acabou bem por isso, que acabou tão bem; a romântica multifacetada que fez metade do curso com dores de cabeça crónicas, sem desistir nunca, tinha uma beleza dos anos vinte e vestia-se de preto, como quem sabe literariamente o que é a dor; o desarrumado mental, irrequieto, nervoso, com bons instintos, que estudava de véspera, que me irritava em cada 10, sempre a pedir para entrar atrasado para mais um cigarro, a bondade a sobrar-lhe na cara; os tímidos crónicos; o timorense sorridente, perdido no português, corajoso nesta emigração, com o seu sonho de voltar à pátria com um saber para servir; o rapaz mais sucinto que conheci, com olhos de quem vê 110%, pouco interventivo, infalível no 14; os alunos da noite, uma espécie de heróis, chegados dos seus empregos, vindos de dois ou três transportes para um curso destes, com uma maturidade que o dia desconhecia, sem tempo para reivindicações, perguntava-me a que horas estudariam.
São só exemplos de milhares de pessoas, pessoas, pessoas, gravadas na minha memória. No anfiteatro 1, enquanto o Regente falava, perdia-me a olhar para cada rosto, ano após ano, imaginando a vida de um, o futuro de cada um ali começado, às vezes ameaçado.
Depois, os funcionários. No início, as senhoras que guardam os livros das assinaturas das presenças iam às salas de aula, por isso conheciam os alunos que diziam: bom dia senhora tal e tal. Depois passaram a estar amarradas a uma cadeira. Ficaram tristes com isso. Como sou ansiosa com as horas, chegava sempre muito antes das minhas aulas e ficava para ali a falar com as senhoras dos livros das assinaturas. Guardo com um respeito e carinho enormes a vida que me confiaram nas suas palavras. Também me agarrava o cansaço, muitas vezes, o sorriso pronto e muito audível das senhoras do bar: então, doutora, como lá um bolinho! Pessoas tão boas.
O Direito constitucional e o Direito internacional público, para mim, foram essencialmente pretextos. O que eu queria era comunicar. Chegar àqueles jovens, àquelas pessoas. Ter a certeza de que dava por eles. Agora que me vou embora, espero apenas ter conseguido. Obrigada a todos os Professores, colegas, funcionários e alunos que marcam para sempre a minha vida.

terça-feira, julho 07, 2009

que chegasses

e se agora chegasses, vindo de uma montanha e me dissesses: a tua vida vai ser sempre assim, às vezes uma alegria, todos os dias uma chuva imensa, sem abrigo, mas aqui estou eu. e se agora chegasses, vindo de uma cabana junto ao teu rio e me visses e nada tivesses a dizer ou tudo me dissesses com o teu silêncio: os teus olhos um espelho e eu segura, as minhas lâminas na horizontal, nem uma gota de sangue, os teus olhos eu, eu azul. e se agora chegasses, vindo propositadamente do aeroporto e me desses a mão ou pousasses as mãos na minha cabeça alucinada e eu pressentisse o teu pressentimento e a tua a força para não chorares comigo. gostava muito que chegasses, um passarinho, que chegasses.

domingo, julho 05, 2009

N.

vem a ouvir um som, isto é, uma música, à esquerda o mar, dirás: uma merda porque aqui. seja. eu hoje cheguei a casa inteira porque pelo caminho me desfiz para me contruir outra vez no meu ponto de exclamação: "quanto te penso é a mim que retorno". eis uma confissão tantas vezes escrita se é que alguém lê estas palavras: decisões. tem saudades do gesto um dia começado, paraste-o, mas ainda senti que não tens película alguma que o tempo faz pousar nos lábios, tenho essa saudade, como a do dia em que morreste derrotado num gesto inteiro.

sexta-feira, junho 26, 2009

(Re)ser

É a dor física que a faz ser ou ter um corpo. Tem uma dor de dentes e diz: tenho boca. Tem um pêlo encravado na perna e diz: tenho pernas. Ou então o sinal de uma memória aflita no esquecimento e diz: eu naquela pessoa, naquela dor. A dor pode ser passageira, não interessa, isto é, há um golpe, um dia, uma semana, um mês de vida que nos fez num outro corpo, noutra boca, noutras pernas. Ou sobretudo: sob um outro olhar. Visita um elevador uma vez por ano, um elevador lento, com demasiadas paragens, formigas que entram, que saem, e senta-se num canto. Levanta-se e parece-lhe encontrar um olhar numa porta quase fechada. Não se lembra daquela pessoa, mas antes dela a ser olhada por aquela pessoa: uma mão: uma voz: um sorriso: um gemido: um elogio: um desejo: uma maldade: tão depressa: tão depressa: ela: tudo isto: demora um segundo. Vira-se para a frente. Vai em frente.

Por dentro do silêncio

E fez-se o silêncio. Numa cadeira de napa as articulações das suas mãos tremiam, dobravam-se, um, dois, três, a dizerem-se envelhecidas, cansadas, uma unha partida na ansiedade com que fechou uma porta. Sente o suor nas suas costas ou o suor sente-a, desenha-a, um corpo demasiado usado, magro, chicoteado, em tempos abraçado, posto aqui, ali, na cadeira de napa. Leva os dedos aos olhos, limpa as lágrimas e arruma deus num lenço de papel desfeito em excreções, deus enrolado nas duas mãos pousadas agora, então, no seu colo em escamas. Pensa de si: sou uma pobre: olha, levanta a cabeça contra a rigidez muscular do pescoço, olha para a janela e observa uma árvore, mas quer ver uma ponte, um penhasco, um avião, um prédio de oitenta andares, um cabo em cima do mar, a árvore é-lhe imprestável. Diz: vou ter uma semana lixada. Diz: vou ter um dia lixado. Ouve: mais uma etapa da sua vida. Pensa: a minha vida um cigarro ou ela por entre as argolas de fumo. Desmaia no sofá sem amor, começa a sangrar e sonha com o pai.

quarta-feira, junho 24, 2009

Os Olhos de Himmler - Rui Nunes

É preciso viver uma vida inteira para se escrever este livro. Viver uma vida com o nome das coisas, definindo as coisas, definindo condições – como a pobreza: “a minha história, ou a falta dela, torna-me um pobre, entre muitos, porque os pobres são aqueles a quem a história abandonou e, por isso, estão sempre a inventá-la, não há quem mais histórias conte do que os pobres, embora toda a gente diga: isso é mentira. E com esta frase cheia de maldade tiram-lhes o que ainda lhes resta: a pobreza” (p. 30) – insurgindo-se contra o efeito de captura que a linguagem quase sempre tem. Rui Nunes, como o próprio diz, “estilhaça as palavras” (in JL Ano XXIX/Nº 1010 de 17 a 30 de Junho)
Este livro, escrito com gosto, oferece-nos um enigma. Começa numa viagem (I) a do homem principal que ainda desconhecemos o nome, uma viagem sem desígnio senão o do breve passo seguinte, por um rio acima, um homem velho, derrotado pela sua história, e pela natureza: os seus bichos, a sua escuridão, ou o sol, e logo no início o enigma dos seus olhos fechados e de não sabermos de quem são estes olhos velhos que súbito se recordam soldado a pontapear uma mulher. Este homem chama-se homem, isto é, chama-se Andreas e continuará a sua viagem num outro sentido, mais adiante.
Assim é, porque o enigma prossegue para um segundo capítulo – com a tua sombra abre na luz a porta (II) – que aparentemente paralisa a caminhada de Andreas. Aqui encontramos uma mulher idosa, num lar, junto a um rio, o rio Traisen, que nos situa na Áustria, a conversar com a sua filha, que vimos a descobrir ter o seu nome (p.22), duas mulheres de nome Greta, perdidas num diálogo só aparentemente alucinado: a filha, quase numa oração, suplica à mãe que decifre as frases soltas que o leitor entende não serem de alguém senil, mas de uma memória magoada a perseguir um nome. Nessa memória magoada Rui Nunes começa a construir talvez da forma mais definitiva a sua relação com Deus, essa ausência inevitavelmente repetida, na busca de um sentido, que ele sabe não existir: “uma mentira dia a dia partilhada” (in JL, cit.): por isso a mãe diz: “na verdade há um Deus em cada época da vida, um Deus que é a nossa sombra, uma sombra cada vez maior, tão grande que, muito velhos, só a vemos estender-se à nossa frente, um dia de sombra, uma vida, minha filha todas as tardes vejo a tua sombra a alongar-se” (p. 27).
Há um ódio àquela gravidez que sabemos dever ter ocorrido pelos anos vinte do século passado, e uma primeira referência à casca de uma laranja na p. 15, que vai ser um elemento sensorial fundamental do enigma. Que nomes escondes, mãe?: pergunta insistente a filha. A mãe esconde o nome Andreas e os encontros de anos de abuso com esse homem com nome de homem. O primeiro encontro surge na p. 34, relatado pela mãe, no qual Rui Nunes decompõe essa memória destruindo as palavras até à minúcia dos poros de uma pele, porque Rui Nunes vê o mundo por uma lupa e força as palavras a seguirem esse percurso e, nisso, é magistral.
Entramos no terceiro capítulo – A Viagem – onde apesar de Andreas continuar o seu percurso rio acima, largado à sorte da minúcia do que a beira de um rio pode fazer a um velho, interiormente faz um percurso ao contrário, à sua vida passada, Riga, Riga, Riga, ouve-se, e ficamos a saber que esteve na Letónia, lugar de horror na segunda guerra mundial.
No quarto capítulo – quem? Pergunta quem – as revelações da mãe Greta são mais intensas. O abuso de Andreas é agora nítido e nele a “estranheza no nome de Deus” (p. 44) e nele a filha pequena observante na porta entreaberta. Neste capítulo inicia-se a osmose do cenário da mãe e da filha e do percurso de Andreas. Neste último, há muito de Rui Nunes, como em todos os seus livros: “às vezes sente que há cidades que o procuram” (p. 48); “Deus (…) Esta palavra, às vezes digo-a. E fico mais só. É uma palavra tão só” (p. 50); “eis o problema do amor: suicidar-se pela repetição de um nome”. (p. 54); “nunca houve um país que sentisse meu” (p. 57).
Andreas faz fisicamente o seu caminho até ao lar, mas psicologicamente há uma regressão aos horrores de um passado nazi, dos campos de concentração, da sua participação no massacre de Mizocz, aos amontoados de mortos, a uma mãe morta, fuzilada, à frente do seu filho. De quando em vez, a casca de laranja. Enquanto isso, Greta pergunta retroactivamente numa fúria de quem é esta coisa na sua barriga e há sempre a voz que lhe dói de Andreas: não é uma coisa, é um filho. Começa a fazer sentido a repulsa por aquela criança. Os corvos são pontuações de lembranças, de nomes que passam a ter rosto, de pessoas assassinadas na guerra, Andreas, agora velho e chegado ao lar, lembra-se de algumas mortes. É sobretudo na recordação de Mizocz que os olhos de um homem, os olhos de Andreas, são finalmente os olhos de Himmler.
No último capítulo – Thalassa, Thalassa – Andreas e Greta, a mãe, estão juntos no mesmo lar, não se reconhecendo. O homem que destruiu aquela mulher terminou a sua viagem e está instalado na casa do desespero da velha que persegue o seu nome nos diálogos que a filha não entende. Cada um deles regressa ao seu passado. Ela ao cheiro ao laranja que é sempre o vestígio imagético do abuso, ele às suas mortes, ambos pontuando as recordações com a metáfora dos corvos. Há o dia em que Greta reconhece a besta através da janela e anuncia à filha a sua morte. A filha insiste, em desespero, quer saber que nome esse que a mãe persegue. A morte por uma vez significará Deus. E debaixo de uma árvore Andreas afaga o cabelo da velha que se encolhe em todo o seu ódio ouvindo as frases do seu passado de abuso, ainda que não reconhecida. Andreas conhece o seu fim trágico às mãos de Greta num grito de alegria metafórico de quem vê finalmente o mar.
O assombro deste livro é a sua imensa humanidade, é a fluidez de um enigma que se vai decifrando numa vida que se vive lendo o livro, porque assim é a vida também, sem a facilidade de uma narrativa alinhada pela evidência. O assombro deste livro é a sua sabedoria, em cada passo da viagem de Andreas, em cada passo do diálogo de Greta, as provocações sobre a linguagem, sobre Deus, o sofrimento, os nomes, o papel da memória, o peso dos mortos na história de cada um, o delinear da diferença entre ver e olhar, tudo isto é escrito e inscrito por um escritor superior e fica-nos, no final, a certeza de que é preciso viver uma vida inteira para se escrever este livro.

segunda-feira, junho 22, 2009

lâminas

a tua voz já não me adianta nada: diz. a tua voz adoece-me: insiste. mata a confidente, isto é, mata-a nessa qualidade, para mantê-la viva, ainda que uma sombra ao fundo do peso das suas lágrimas à hora do almoço: és uma sombra. tem duas gavetas na cozinha prontas para uma outra confidência, não as abre, pensa em abri-las, num derradeiro segredo, a bomba atómica da sua dor, recua e tem a memória de uma mistura simples: o seu corpo e uma onda quase fria. mas a tua voz já não me adianta nada. cala-te: grita: deixa-me aqui: doente: murmura. a ansiedade trepa-lhe pelo coração acima, vence-lhe a garganta, quando cinco crianças lhe sorriem com idades para se recordarem dela.

quinta-feira, junho 18, 2009

Grijó de Vale Benfeito

Há dias em que as pessoas não são elas, mas a sua história. Uma sombra caminha primeiro atrás de cada passo, larga, duplicando o corpo do homem, depois a sombra ganha a dianteira e diz: o teu passado é o teu presente e o teu dia de amanhã: há dias em que um homem regressa à cidade mais próxima da sua aldeia, pode ser Bragança, para doar a sua biblioteca, ao seu lado estão muitos filhos, a mulher, nove netos, mas depois de percorrida a biblioteca com os seus conterrâneos, o homem solta uma enorme sombra à sua frente: gritam as vozes da senhora Maria, do senhor José, enche-se-lhe a boca de bôla de azeite, murmuram o pai e mãe que emigraram da aldeia para Lisboa: o meu filho vai licenciar-se e a minha filha também: morrem hoje mesmo os cinco filhos do seu avô, levados pela tuberculose, sobraram três, nenhum era analfabeto. Uma sombra enorme faz este homem de oitenta e seis anos, nos seus olhos as lágrimas das viúvas dos homens vivos daquela terra de emigrantes. Ruma à sua aldeia e contempla numa Ave-Maria o túmulo dos seus pais, pobres, mas nunca humildes, vai aos restos da casinha onde nasceu, os netos pequenos assistem a tudo com os olhos muito abertos: este é o nosso avô.

sexta-feira, junho 05, 2009

Apatia

O que me leva a escrever um texto não é o resto de chocolate profilático entalado entre a unha e a carne ou a descrição disso mesmo, isto é, o que me leva a escrever um texto é precisar de carregar um papel branco de sílabas pretas, interrupções da apatia, correr por entre palavras, uma mulher magra a contornar a chuva, é o que me leva a escrever um texto como o que te escrevi hoje em meu socorro, travada pela distância de duas línguas, pela distância do silêncio, o tempo do meio de comunicação, não ter a tua resposta, ou sequer um dos teus rostos, as tuas mãos um dia esmagaram-me, eis-me deserta num espelho temporal que só pode dizer de mim, o que me leva a escrever um texto não é o ardor de uma pele que se arrancou ferindo a carne, há antes o barulho, o mergulho no Danúbio e um olhar apreensivo porque me perdeu por instantes e disso só eu me lembro, isto é a solidão, e neste momento pensar numa bicicleta a percorrer Lisboa com a fome de não percorrer uma pessoa é a apatia a subir e a descer num vestido sem alças, dizia desculpa, de vez em quando, episódios leves agora numa unha limpinha, episódios pequenos, agora, esvaziado o Danúbio, embarco para Roma e vejo três inocentes mortos, abraço uma coluna do Panteão e grito: quero, regresso a Lisboa, que cidade tão bonita, um horror, dizes-me, um passarinho na tua mão, eu só tenho uma pátria, tem três andares e uma salinha, onde me sentei à hora do almoço, nem uma pessoa, tantas pessoas, uma vida, a minha, não inscrevi uma lágrima que fosse neste texto, sentei-me ali, na minha pátria, apática.

quinta-feira, junho 04, 2009

tristeza ténue

há uma tábua lisa sem arestas que se vai fazendo com morangos pelo caminho. há uma televisão decomposta pelas imagens de quem a vê. essas imagens fazem parte da tábua lisa sem arestas que se vai fazendo e dela também fazem parte os morangos pelo caminho. num período de tempo alargado que se chama sorriso o fumo de quinze cigarros diários não fazem do ar um canalha corrompido, tudo é transparente, há uma tábua rasa lisa sem arestas que se vai fazendo com morangos pelo caminho.
mas a televisão ganha o rancor dos outros que se sentam com o outro ao nosso lado. o outro são os outros dele. “ouve-se sempre a distância numa voz”.

terça-feira, junho 02, 2009

Movimento pela igualdade no acesso ao casamento civil

Decidi juntar-me ao MPI por duas razões: por convicção e por dever cívico, razões que andam de mãos dadas. Tenho a convicção profunda de que há uma injustiça, uma imoralidade, grave, na sociedade portuguesa, a que o Direito civil português tristemente dá cobertura e a que urge pôr fim, para bem não apenas dos visados, mas para bem de todos. Tenho a convicção profunda de que um dos factores pelos quais se mede o estádio de civilidade de um país é a forma como o mesmo trata as minorias, pelo que acabar com o triste imperativo que resulta de uma lei datada pela homofobia e que podemos traduzir no mandamento dirigido às pessoas do mesmo sexo vocês não podem casar é melhorar a sociedade, e do contrato social de que todos fazemos parte. Trata-se de criar uma sociedade mais justa, mais livre e mais solidária, imperativos de um Estado de direito.

Decidi juntar-me ao MPI por dever cívico, porque aprendi desde cedo que nós não somos sem o outro, pelo que não podemos continuar a viver as nossas vidas como se uma massa anónima de murmúrios sem nome não nos incomodasse, eles, aquelas pessoas, que por acaso têm nome, existem, são pessoas, pessoas só, às vezes pessoas sós, na sua condição, com direito a serem pessoas por inteiro na sua dignidade, o primeiro princípio constitucional, pessoas a quem a lei, em nome de preconceitos hoje inadmissíveis, quer do ponto de vista constitucional, quer do ponto de vista moral, quer ainda do ponto de vista político, afasta do acesso a um bem, a um direito fundamental, o casamento, que tem consequências práticas e que tem um peso simbólico de inclusão do outro na normalidade dos conceitos.

Este movimento é ainda muito importante porque, insisto, está em causa um direito fundamental, pelo que a questão devia ser simples de resolver, na senda da Holanda, da Bélgica, do Canadá, da Espanha, da Noruega, da Suécia, da África do Sul, ou dos cinco Estados dos EUA que já nos tomaram a dianteira, a questão é fácil de colocar e tem uma resposta muito clara se a virmos na sua simplicidade. No entanto, sabemos que há quem não entenda que é mais importante discutir a imoralidade do mandamento tu não podes casar do que um alegado conceito histórico de casamento aliado à procriação, ou as alegadas consequências ditas inevitáveis da nossa proposta como a poligamia ou mesmo - por que não? -o casamento entre pais e filhos, entre irmãos, eu diria até com animais, os argumentos terroristas que servem para desconversar e que são cegos a experiências como a da nossa vizinha Espanha onde o mundo não acabou, antes pelo contrário, onde o mundo continuou melhor, mais justo, mais solidário. Está aqui em causa uma questão identitária, ao contrário desses devaneios terroristas. Ninguém cometeu um erro, ninguém é, como se presume, um erro. Os homossexuais são pessoas por inteiro, sãs, como outras quaisquer.

Hoje, evidentemente, seria um atentado à autonomia individual pretender-se que o casamento tem por finalidade a procriação: só tem filhos quem quer, só tem filhos quem pode, casa quem quer. Mas é importante perceber que está em causa o acesso ao casamento civil, instituição estadual com século e meio, alheia a legítimas concepções religiosas ou outras. Em todo o caso, como curiosamente explicam os Professores Pires de Lima e Antunes Varela, o que há século e meio esteve na génese da proibição do acesso ao casamento civil por parte de pessoas do mesmo sexo foi entender-se não ser possível a comunhão plena de vida entre essas pessoas . Isto é homofobia pura. Pura e simples. Ignorante e cega à realidade de milhares de casais que existem, que fazem as suas vidas, que pagam impostos, mas que não são nós, são eles, são aqueles.

Não se pretende impor qualquer visão do casamento às pessoas de sexo diferente; mesmo que o casamento tivesse por finalidade a procriação, que não tem, não impediria o casamento de pessoas que não podem ter filhos; o facto é que a lei nega toda a especialidade do casamento sem filhos seja porque motivo for, isto é, nada há, em termos de regime, de especial nessa circunstância; e mais importante, esta desconversa da procriação é uma visão utilitarista das pessoas hoje, como já referi, inaceitável à luz da autonomia individual. De resto, alguém no seu perfeito juízo pode supor que mudando o casamento as pessoas vão ter menos filhos? A verdade é que se confunde casamento com filiação. E a verdade é que se esquece que os homossexuais têm filhos.

Hoje pedimos que se tome consciência de que os direitos fundamentais, enquanto expressão da dignidade da pessoa humana, garantem ao indivíduo um espaço de não intervenção alheia, querendo aqui chamar-se a esse espaço uma moral colectiva maioritária, ditada ou votada, decidida ou eleita, que lhe não permitisse esse acontecimento único que é ser-se, em liberdade, o que se é. Por isso mesmo, contra direitos fundamentais não valem, sem mais, maiorias, sob pena de se funcionalizarem os primeiros; é por isso, também, que os direitos fundamentais, sendo a asserção mais efectiva nas liberdades e nas competências, como é o caso, não admitem e devem resistir ao discurso do que diz a maioria sobre o comportamento a ele associado, ou do que é, conjunturalmente, a vontade parlamentar. Mais: é ainda pelo que se vem afirmando que as liberdades e competências, fortemente ligadas à dignidade das pessoas, não têm de esperar pelo consenso social para terem plena efectividade. Nesse sentido aponta-se uma vocação contramaioritária dos direitos fundamentais. Quer-se com este passo recordar que numa ordem constitucional fundada na dignidade da pessoa, à qual o Estado se subordina, quando um direito expressa claramente uma liberdade ou uma competência que inscrevem o titular num universo de seres livres e iguais em dignidade, só por razões muito ponderosas, excepcionais e com claro apoio na Constituição pode o legislador afastar uma categoria de pessoas daquele direito.

É, pois, absolutamente inadmissível qualquer tentação referendária sobre o direito de acesso ao casamento civil por parte das pessoas do mesmo sexo. Isso seria totalitário.

Pura e simplesmente, à luz do que referi, não é moral ou juridicamente aceitável retirar um bem a um grupo de pessoas sem razões para isso. E não há razões para isso. Razões, amigos, razões. Não há um interesse constitucional ou moral contrário a ponderar com vista a um resultado diferente do que aqui defendemos. Não há.

A sociedade prefere pensar que os homossexuais podem existir desde que não chateiem, desde que não apareçam nessa condição, desde que se disfarcem. Ignoram o sofrimento dessa condição de invisibilidade e não fazem o exercício sobre si próprios. Experimentem. Gostava de propor o exercício a um homem ou a uma mulher heterossexual casados. Experimentem imaginar o momento em que se apaixonaram. Não poderem expressar publicamente o vosso afecto. Eventualmente a vossa família não vos aceitar. Condicionarem cada gesto de expressão de um sentimento. Num momento de crise viverem a mesma apenas com quem compreenda que o amor que sentem não é aceite por parte da sociedade. Quererem casar, exteriorizar a vossa relação perante terceiros, aceder a esse bem jurídico e social e esbarrarem com uma lei que vos diz que vocês são anormais para o efeito. Experimentem o exercício.

A questão é que o Direito vai à frente no derrubar das discriminações em matéria de direitos fundamentais e não espera por consensos sociais. A não ser assim, não tinha acabado a escravatura, não se tinha consagrado o sufrágio feminino, não tinha permitido o casamento inter-racial, que ainda nos anos sessenta, nos EUA, conhecia sentenças que temiam pelos filhos de uma tal aberração, e o próprio casamento não teria mudado radicalmente nos últimos cem anos no sentido da igualdade entre homens e mulheres e da facilitação do divórcio. Deixou de ser casamento? Não. Tal como na vizinha Espanha, quando tivermos a decência de acabar com o mandamento tu não podes casar, o casamento dos católicos continua incólume, cada pessoa casa com a sua concepção intocável, simplesmente há mais um grupo de pessoas com acesso a esse bem, pessoas silenciadas anos e anos, criminalizadas até há trinta anos, tidas por doentes até há vinte anos, mortas por regimes totalitários, que foram de humilhação em humilhação levantando a cabeça até a momentos como o de hoje onde todos possamos parar de dizer eles e possamos de uma vez por todas dizer nós.

domingo, maio 31, 2009

Sobreviver

Em nenhum dos textos há uma novidade, nem no interlocutor, mãe, neste texto há a novidade da dimensão da tragédia. O corpo sai da cama e move-se em direcção a um lavatório onde se questionou algumas vezes, sente a água fria a começar-lhe o dia e parece que vai sobreviver. Há uma rapariga, uma mulher, que lá atrás era a criança que prometia crescer feliz a seu lado. Há essa mulher. Entra na sua casa, experimenta um vestido, fuma um cigarro e ela vê as formas dessa mulher marcadas por uma vida que correu afinal a milhares de estradas da sua, com filhos, com um homem ao seu lado, a mulher que chama de meu amor, meu amor, meu amor, (se soubesses dos meus cabelos presos a esta toalha), mas a mulher sai e vai à sua vida. Ela vai trabalhar e tem uma nova hormona no corpo que lhe trocou as voltas aos pensamentos, sempre foi muito sensível às hormonas, sempre foi uma explosão hormonal, senta-se e a colega em frente começa a desaparecer no nevoeiro da sua tragédia, que se anuncia. Uma dor mortal no peito induzida pela sua inimiga indegolável, uma dor aguda, precisa, às vezes difusa, com uma voz clara, um mandamento: acaba com isto. Cala-se na mágoa que se mostra mais uma vez tantos anos passados e cala-se duplamente porque desta vez a voz não tem causa possível, parece-lhe. Caminha por um corredor, morde a boca, ocorre-lhe arrancar um pouco do lábio num golpe para escoar tanto veneno, contém-se, assume a sua corajosa teatrologia e avança, minuto a minuto, segundo a segundo, acaba com isto, acaba com isto, fazes assim, agora mesmo, vai para casa, seria assim, seis anos disto, já chega, ela envelhece de um quarto em um quarto de hora até a sua tragédia explodir por todas as extremidades do seu corpo e foge para a casa onde cresceu até nascer a voz.
Dobra-se como uma vírgula num sofá e em vez de sangue deixa caírem lágrimas silenciosas pela sua cara, acalma-se ligeiramente, fala com uma pessoa, faz planos finais, entristece-se no adeus a cada parede da sua infância, chega o fim dia e pede ajuda. Começa a gritar. Os pensamentos ramificam-se por linhas que nada têm de ténues, são linhas de aço, são guias precisos da sua realidade próxima, são a sua vida, a sua certeza, o seu horror, a sua tragédia. Não consegue escapar-lhes.
É socorrida e vai jantar. Sorri por fora e vê a realidade paralela daquele jantar com uma cadeira vazia. No dia seguinte, a memória da tragédia da véspera é tão forte que não sabe como dizer estás boa?às amigas de infância que fazem tanto da sua história e que rodeiam uma mesa. Estou viva, pensa. Atreve-se a partilhar o que sente. E amanhã?, pergunta.

quarta-feira, maio 20, 2009

ser feliz

encontrar uma pessoa e ser feliz ponto de exclamação já chega de morrer todos os dias. adormece, no entanto. sua a sua história: forçam uma entrada no casino do Estoril e uma conta bancária esvazia-se sem fazer uma aposta, alguém joga por ela, alguém num grito estridente mata-a numa roleta. acorda ainda a dormir e viaja para um bar, está a suar, aflita, olhando o novo homem, pronta para o beijar, é tempo de ser feliz ponto de exclamação há um véu de pó branco entre os dois e cai de costas num colchão molhado de muita gente, sua gente. volta a acordar e abraçam-se, respira e vai ao cinema, isto passa, isto vai passar, a noite cai e faz-se dia numa praia no sul de Espanha, sem espaço para a sua toalha, familiares que a não reconhecem e os lobos numa terceira semana de Agosto ficaram lá desde uma longínqua segunda semana de Agosto, está cercada, vai morrer? continua a suar a sua tensão, a sua vida, é tempo de ser feliz ponto de exclamação chega, basta, saiam daqui.

quinta-feira, maio 14, 2009

Janela

As unhas amarelas da lixívia agarram o canto de uma janela que fica no canto de um prédio caro. Estranhamente é a sua casa nova. A mulher da ilha de São Vicente tem uma casa nova e diz-me adeus sem som algum. Talvez tenha escutado na distância dos meus passos o rasgar do seu sorriso, por uma vez o pano de pó limpa uma sala que sei sua e no centro de Lisboa, cara, não sei como conseguiu aqueles vizinhos. As unhas amarelas da lixívia são de uma senhora transportada do Barreiro para aqui, ela própria um subúrbio, abrem-se dezoito janelas em seu redor e gente com madeixas loiras pensa que a mulata é a criada de uma nova inquilina e não ela a nova inquilina. Levo pão, queijo e uma garrafa de espumante. Não se faz por enquanto som algum, insisto. Desisto, por segundos, de ir ao seu encontro, para fazer do seu sorriso e do meu, a cem metros de distância, o nosso encontro. O vento rouba-lhe o cabelo alargando-lhe o sorrido, acena-me com a mão e eu retribuo.
Eis uma mulher rodeada de janelas a fazer-se uma janela.

quinta-feira, maio 07, 2009

Maria

Lentamente afasta-se de um rosto insuportável. Entra no elevador, carrega no andar de sempre, mas não desvia o rosto do espelho e nele encontra uma história a diluir-se. Diz: felizmente. O rosto pestaneja todo com os olhos e de cada vez uma morte, duas mortes, várias mortes, e a eternidade de Deus a sobrevoar as promessas do passado. Saber que Deus não teve nada a ver com as linhas quase invisíveis e para ela tão vincadas, em redor dos olhos, mas saber que Deus é a ausência a que mais se apelou, a mais culpada. Há um gemido, um som vulnerável, quando apanha o cabelo e pronuncia um nome. Despede-se lentamente do peso que vem sendo a sua casa e expõe-se ao peso de se libertar desse peso. O novo peso é a construção do amor. É esse o som que a desequilibra entre dois andares, desvia-se do espelho e diz: já não me chamo Maria, esse nome que não é de ninguém. Adeus e a Deus, fica nela o conhecimento de um novo nome. Decompõe o medo durante o dia, às vezes curva-se e diz quem sou eu?, sabe já não ser Maria, abriga devagar uma nova identidade, abraça-a com coerência, mas sem ter pendurado um novo espelho. E já escreveu: o amor é uma dor. Ou não seria.

segunda-feira, abril 27, 2009

memória olfactiva

Estamos a viver o presente e dizes vamos fazer com que isto dure. Quando o dizes tens um odor na tua frase e quando te escuto é hoje, e parece uma impossibilidade que exista um amanhã que faça da tua frase uma relíquia pisada por odores que se mexeram pelo espaço do teu som em tempos que são de repente ontem, um novo hoje, a fazerem de ti antigamente e mesmo assim, às vezes, diluídos numa parede de azulejos falsos ou perdidos nos acordes de um violoncelo o teu rosto quando a porta se abria; o que tens? Desapareces e um pingo de chuva acerta-lhe em cheio na ponta do nariz, reapareces quando o lambe na descida para os lábios, há um homem que lhe assegura recordar-se do seu cheiro a dois metros de distância, a três anos de distância, e há um homem que não usa senão o cheiro que a pele lhe empresta. Estamos a viver o presente e dizes vamos fazer com que isto dure, não dói absolutamente nada, tens a distância das cidades gregas, és o advérbio antigamente, mas rasgas a memória de uma rapariga que não gosta de quem vive bem com uma condenação à morte sem pedir a palavra.

segunda-feira, abril 20, 2009

praia grande

quem se não lembra do precipício apanhado num instante e de cair num golpe sem misericórdia e de finalmente sobreviver por acaso, depois de engolidos pela onda pesada, inteira, sonora, velha? quem se não lembra de temer morrer e ainda assim arriscar uma paralisia nas carreirinhas que tínhamos como as mais perigosas do mundo? assim se apanhavam ondas, na praia grande. haverá e sabe e soube que há quem se lembre e quem saiba o que é acordar a apanhar uma onda de medo a crescer para um gigante de pânico que nos leva em pensamentos mais velozes do que os métodos que nos ensinaram para os controlar. haverá e sabe e soube que há quem se lembre e quem saiba o que é cair a pique e sentir a dor do embate no corpo, a morte anunciada no pensamento, gemer-se no fundo da areia a dizer-se adeus, para repentinamente vir-se à superfície. ainda a tremer recorda-se o que seja: o sonho da véspera – a rapariga morta ao fundo do corredor emoldurada por uma porta, sentada a sorrir para ela –; a voz que se escuta com atenção a recordar-lhe que a sua luta é maior do que a luta contra um cancro. ou então vive-se uma história: canções que lhe recordam dois ouvidos funcionais, músicas a encherem um automóvel, músicas que fazem a caminhada de uma mulher descoberta nos acasos da sua vida. ou então luta-se e reencontra-se uma pessoa e apanha-se assim uma onda suave até terra firme, alguém que lhe conhece uma sorriso juvenil, anterior a todos os lobos, anterior às carreirinhas assassinas, uma mesa e duas mulheres, às vezes um tremor, às vezes um aviso na ponta dos dedos, mas vence a cumplicidade da memória do afecto que se faz presente e diz-se, no fim: obrigada. luta-se, luta-se, luta-se: caminha de gatas, encharcada, com areia no cabelo embaraçado, até ao início da areia húmida, ainda não seca, mas pelo menos já húmida, e encontra-se o desenho de um sentimento. a parede de pânico quer empurrá-la para trás, mas luta, luta, luta e diz: vou abrir a caixa do correio. haverá e sabe e soube que há quem se lembre e quem saiba o que é.

quarta-feira, abril 15, 2009

a voz

está escuro. a voz que escuta com mais atenção surge-lhe num corpo colado ao dela, que se dobra como dentro da mãe. começa a chorar uma solidão de vinte anos. chama pela voz que escuta com mais atenção.
- não o queria acordar.
- isso é irrelevante.
- são vinte anos a ouvir essa voz e eu preciso tanto dela aqui e agora a sufocar-me com braços e pernas, a não permitir uma desintegração.
- eu gosto muito de si, muito, isso não é uma consolação?
- é, há vinte anos que a voz que escuto com mais atenção é uma consolação, mas a solidão infectou-me os ossos, a pele, a cabeça, agarre-me, passe-me as mãos pelo cabelo.
- eu não conheço esses gestos.
- e se eu morrer antes de a sua voz morrer?
- é esse o meu medo. mas não se morre quando se é amado.
- por uma voz.
- por esta voz.
- não morra.
- sobreviva.
- venha viver comigo.
- eu vivo num país que não existe. e numa casa que também não existe.
- está a doer menos. sabe? alguém pediu pela minha palavra.
- a sua palavra é o seu poder. o seu caminho. o de uma alegria cheia de lâminas.

terça-feira, abril 14, 2009

decide vestir uma batina preta, sentar-se num confessionário, e esperar pela palavra.
fosse através de quadradinhos de madeira, rendilhados a esconderem a sua face, fosse assim.
decide vestir uma batina preta, sem fazer de deus ou de representante de deus, decide apenas um teatro facilitador.

sexta-feira, abril 03, 2009

2 de Abril: nota pessoal

A 25 de Abril de 1974, o Movimento das Forças Armadas, coroando a longa resistência do povo português e interpretando os seus sentimentos profundos, derrubou o regime fascista.
Libertar Portugal da ditadura, da opressão e do colonialismo representou uma transformação revolucionária e o início de uma viragem histórica da sociedade portuguesa.
A Revolução restituiu aos Portugueses os direitos e liberdades fundamentais. No exercício destes direitos e liberdades, os legítimos representantes do povo reúnem-se para elaborar uma Constituição que corresponde às aspirações do país.
A Assembleia Constituinte afirma a decisão do povo português de defender a independência nacional, de garantir os direitos fundamentais dos cidadãos, de estabelecer os princípios basilares da democracia, de assegurar o primado do Estado de Direito democrático e de abrir caminho para uma sociedade socialista, no respeito da vontade do povo português, tendo em vista a construção de um país mais livre, mais justo e mais fraterno.
A Assembleia Constituinte, reunida na sessão plenária de 2 de Abril de 1976, aprova e decreta a seguinte Constituição da República Portuguesa:
Escrevo na primeira pessoa e considero que apesar de o relógio apontar já para o dia 3 de Abril, psicologicamente ainda estamos no dia 2 de Abril. Ainda não adormeci. Há 33 anos foi nasceu a Constituição actual e há 33 anos nasci eu, por ironia do destino hoje uma docente de Direito constitucional. Nas minhas aulas fazemos a brincadeira de perguntar o que é que de importante aconteceu no dia 2 de Abril de 1976. Naturalmente, foi aprovada a Constituição, que tem este preâmbulo cujo valor jurídico dá discussão para meia aula. Hoje, fala-se muito na Constituição: deve ser revista; é muito complexa; é asfixiante em matéria económica; em bom rigor, deveria ser substituída por outra; há mesmo quem já tenha um projecto de Constituição com menos de 20 preceitos; é velha; já foi usada e abusada; tem mesmo de ser mudada! Já lá vão 33 anos... Eu gosto dela, a sua complexidade não me assusta, acho que bem lida é muito mais aberta do que se diz, acho que nos serve. Sobretudo, parece-me que os problemas que inquietam as pessoas que falam em rever ou mudar de constituição continuariam a existir caso conseguissem levar a sua avante.
E eu? Eu preciso de ser revista. Ontem fui operada a um rim. Saí do Hospital, muito frágil, para os meus amigos, muito fortes. Mas preciso de ser revista. 33 anos. Vou descansar. Já volto.
Um dia destes.

segunda-feira, março 30, 2009

lobo

chegou ao fim, finalmente. sábado de manhã o seu corpo perdeu as forças. a sua inimiga indegolável defendeu-se e fez-se em células, para dormir, dormir, dormir. nos sonhos o homem é um lobo, pergunta por ela à sua mãe, quer saber, como é que está a sua filha?, depois mistura-se com a face do criminoso, inala uma linha de coca, o lobo que a matou, volta às vestes do criminoso, pousa na sua cama e sorri, e mata-a, como todos os lobos, também ele nos diálogos passados com pele de cordeiro, antes de ser lobo, lobo mau, lobo mau, onde vais, onde vais?
vai para a casa da sua infância, janta na cozinha, olha de lado a gravata do pai, encolhe-se toda na sua dor, pensa que partilhou tanto, mas não as sua bulas perdidas na gaveta, a sua doença, olha de lado a gravata do pai, que é como quem diz o colo do pai, vê o pai pestanejar enlouquecido com a sua morte, começa a chorar, lobo mau, lobo mau, foge para a copa,
mãe, desculpa, esta dor que nasceu comigo, mãe, abraça-me para sempre, esta dor que ninguém conhece, mãe, socorro, o meu cancro foi acordado, lobo mau, lobo mau, deixa-me adormecer, adeus, mãe, adeus, mãe, o problema não é o lobo, é o que o lobo me recorda, mãe, mãe, mãe.

sábado, março 28, 2009

manhã de sábado

dança, dança, dança, um copo de água tónica na mão, o seu gin a fingir, dança,dança, dança, um milhão de mosquitos colados à sua pele, um milhão de beijos tentados, dança, dança, dança, acende um cigarro proibido, pensa: como terei sobrevivido a este dia, ao meu cansaço?dança, dança, dança, nunca olha para o relógio, lembra-se da véspera, cola os pés ao chão
(a minha magreza)
dança, dança, dança, às vezes, muitas vezes, o medo de um surto de medo, dança, dança, dança, mas também alegria
(na minha fragilidade)
dança, dança, dança, ri perdendo o ar, dança, dança, dança, o seu amigo, está feliz por não cair, está feliz por se não ver na sua dança o seu cansaço, dança, dança, dança, pensa: terei forças para um volante? dança, dança, dança, a pensar no cansaço de amanhã.
é sábado de amanhã, mete a chave na porta e diz: fui eu que entrei.

sexta-feira, março 27, 2009

dedos

- não me lembro de isto estar aqui, nem isto nem aquilo.
- como não?
- não te via há dois anos.
- como não?
- não dás pelo tempo?
- não dou por mim.
- o que te aconteceu?
- no ano passado lembro-me de um aniversário a dormir.
(reconhecer o espaço que é um pessoa: cabelos, nariz, boca, peito, pernas, cabelo, olhos; reconhecer os movimentos que fazem uma pessoa: uma mão a afastar a franja, o peito a suar sobe desce sobe desce, duas pernas a empurrarem um prazer, o olhar seguro a reconhecer uma mulher)
- estás igual, sabes?
- não dei por nada. dois anos, dizes?
- estás cansada?
- não.
(dar atenção ao tempo naquele quadrado, fazer do espaço um ensaio de tempo, dez unhas a comerem umas costas revisitadas dizem meia noite e meia, mas também dizem um sorriso de três minutos, ou um grito de trinta segundos, muita atenção nos dedos entrelaçados que foi todo o tempo de todos os gestos: as mãos dele)
- eu estava apreensivo e tu foste como que ontem.
(os olhos dela nos dedos embrulhados)
- também eu.
- por que olhas tanto para os meus dedos?
- porque estão livres. porque estão livres.

quinta-feira, março 26, 2009

depois do jogo

não sabe. sabe. sempre soube. não sabe. ou: não investiga e só sabe depois, e depois diz sempre soube. hoje quando descobriu o que sempre soube passeou por uma rua difícil, vestida de branco, um bom amigo agarrava-lhe o braço. sorria o calor da tarde, ela sorria o calor da tarde e explicava: a minha memória anda tão mal, tão mal, ontem recordaram-me ao jantar de coisas minhas, soltaram-se gargalhadas, eu ri muito, não me lembrava de nada, depois apanhei um táxi.
não sabe. sabe. sempre soube. não sabe. um restaurante e um amigo bom. tinha saudades deste amigo. uma mesa, dois copos, dois pratos, peixe cru, peixe cru, uma pessoa crua, não esta, a diluir-se como um pedaço de arroz no molho de soja, por cima desse corpo palavras inteiras, corpos inteiros, por isso, sem a ameaça do toque, e a confissão dela. uma borboleta na janela, branca como o vestido dela. conta, conta, ouve-se. mas talvez já não se lembre. porque não foi o que foi, porque era para ter sido um caso único e não um episódio desportivo.
- passa-me a manteiga.
- passa-me a bola, disseste?

segunda-feira, março 23, 2009

depois do incêndio

a casa está desarrumada, por exemplo: umas meias do avesso a dizerem o gesto que foi despi-las, uma mulher cansada à beira da cama desequilibrou-se e quase caiu, lá viu as pernas e a sua pele que é muito lisa. a casa está desarrumada, por exemplo: um vestido caído no chão, recorda-se hoje já maquilhada de se ter virado na véspera para um espelho e de ter visto umas costas magras e uma fotografia possível, um princípio de nádegas, um princípio de atrevimento. a casa está muito desarrumada, por exemplo: hoje o edredão não diz que dormiu só no cantinho esquerdo da cama, e o fumo dos cigarros da sala confessam que se não deitou à primeira, andou de um lado para o outro, muitos copos, muita água, abre a janela e um pássaro grita e lembra-se ou pergunta-se: gritei e desarrumei o ar?

quinta-feira, março 19, 2009

não há título. nem conteúdo. talvez desistir de escrever. que disparate que acabou de escrever. seria desistir de não sofrer.

quarta-feira, março 18, 2009

escuro

viu o escuro do seu sono. não tirou as lentes de contacto e viu as pálpebras de rosadas a pretas. pedia muito dorme, dorme: 5 e qualquer coisa e um polvo nos olhos. volta a adormecer cansada de se dizer cansada tão cansada. encolhe-se reunida com os joelhos, abre os olhos e vê a mãe na parede. fecha os olhos e vê a barriga da mãe. abre os olhos e vê a mãe na parede. fecha os olhos e tem saudades de um outro tempo. adormece e entra em salas com pecados, com recados, com pecados. fecha e abre as portas. corre dali para fora. pedia muito: dorme, dorme: há um amigo numa sala que a olha de lado. pecado e recado. começa a chorar. acaba a gritar.
vai trabalhar.

terça-feira, março 17, 2009

vou dedicar-te um texto

vou dedicar-te um texto após alguns textos sobre as horas e os minutos e sobre o meu coração a morrer neles de madrugada tão aflita a pedir por um cardiologista já era por ti que chamava um texto hoje estou a correr para um ataque cardíaco sem pontos nem vírgulas na minha boca a comer o ar sem o deitar fora de cada vez vou dedicar-te um texto ou fazer de ti um texto
ontem acordou e pôs as mãos entre as pernas sentiu o quente do sangue e pensou passou um mês exactamente ou quase exactamente e também pensou disse mesmo não terias nojo deste sangue passou um mês exactamente és um texto de um mês e lá vai ela pela calçada a recordar-se de um texto zás uma mão zás uma perna zás o movimento de ancas zás a voz do texto a avisar que não aguenta mais é agora sua doida zás e agora o texto acabou e lembra-se que começou com uma frase absurda a comandar que não podemos não podemos isto e aquilo e em cada movimento o anúncio certo disso e daquilo e agora adeus antes que morta na alma como já se escreveu tantas vezes e agora adeus na mesma posição no cantinho esquerdo da cama à direita o teu sorriso ou gargalhadas e muita humidade e muita humidade e muita saudade

quinta-feira, março 12, 2009

a Voz

são 22h e 55 m. ela pensa talvez hoje a dor ocupe o lado esquerdo da cama e fique quieta e eu possa dormir. navega pelas páginas dos seus livros, tão odiadas pelo familiar de faca na mão, ao fundo vê, como sempre vê, uma ilha deserta, que não lhe dá conforto, mas o desconforto psicanalítico da memória mal escondida de um afogamento lá atrás. na véspera pediu consolação. não: amabilidade. é muito, para muitos.
são 4h e 32 minutos. cai uma lágrima lenta a escutar o coração tum, tum, tum, não dormi, não dormi, não dormi. vira-se de costas para o espelho e vê a voz que escuta com mais atenção, a tantos voos de distância, tão doente, a voz dos seus livros todos, a voz que diz: talvez a ternura nos salve. não se telefona a uma voz; escuta-se essa voz que lhe diz sempre ironize, ironize, e ela a olhar para os pêlos brancos no cimo de uma camisa de pescador, a olhar para as extremidades de quatro mãos que se tocaram pela ponte de um passarinho que pousa sempre nas nossas mesas, não é, meu amor? ela a pensar que a voz que escuta com mais atenção é a voz que escuta com mais atenção porque tem consistência: é amável há 20 anos; é verdadeira há 20 anos; é honesta há 20 anos; é autêntica há 20 anos; não tem outra estratégia que não a da verdade há 20 anos, a voz que ela escuta com mais atenção. às 4h e 34 minutos pede-lhe que ao fim de 20 anos deixe de ser uma voz e que se transforme num ombro. e num ouvido, no qual possa soprar sabes?, mais uma banalidade, mais uma inconsistência, e há um familiar com as veias do pescoço de fora que me não deixa dormir e o meu coração está por um fio.
tum, tum, tum, volta-se de frente para o espelho. sabe o que ouviria: integre a sua condição.
São 4h e 35 minutos, embrulha-se na voz que escuta com mais atenção e a banalidade fica assim: uma banalidade.

quarta-feira, março 11, 2009

e assim se vai

vai-se embora só com o dedo indicador, enquanto o homem de 80 anos lhe prende a mão esquerda ao telefone, uma amargura a vida dele, a luta de milhares de contos para a ver perdida na burocracia de um país menos deserto do que ele: morto; vai-se embora, só com o dedo indicador, o coração não descansou desde a véspera, sabe que não viverá muito mais. vai-se embora, assim, a escrever, enquanto 82 rugas lhe falam ao ouvido esquerdo, a dizer de um projecto de uma vida, do qual não se desiste nem depois de morto; trezentos volumes de requerimentos, qual a miséria maior? é secundário. ouve não lhe tiro mais tempo e até à próxima e pensa: - vou-me embora com o indicador comido a 120 batidas por minuto, fora os minutos em que fumo, vou embora não sem antes visitar o abismo de um cigarro e em cada morte inspirada recordar a inspiração do velho que me fala morto pela burocracia.
ela morta por um coração que não tem mais forças para o seu corpo que é todo ele uma cabeça.

terça-feira, março 10, 2009

defesa

o que ela queria mesmo era um cardiologista. não é possível viver muito mais tempo neste estado em que todos os vizinhos lhe escutam as batidas fora do normal. não há cardiologista algum na sua lista de telefones, há apenas a memória do desgosto de uma fúria que o familiar abateu sobre ela e que como sempre teve os seus danos tardiamente a fazerem estragos num coração que bate tanto, tanto, tanto. pelo meio, um homem inesperado que lhe promete e que a faz prometer a frase imatura, usual, mas à conta da promessa e à conta de não haver cardiologista algum, entra-lhe um jovem pela casa que lhe sopra ao ouvido, como um poema complicado, a tua vista é fixe; ela a dizer-lhe calada que a tua função é retirares função ao homem inesperado, mas o comando é muito difícil para a simplicidade de quem só se preocupa com o sol de sábado e com a previsão de um amanhã igual. a tua vista é fixe; lembra-se de um texto antigo, três mulheres e um tapete, e faz a metamorfose do rapaz em rapaz literário: dois amantes e um tapete? não chega, mas ajuda, ele bebe cola, ela bebe água, ele é muito bonito, soletra frases com três palavras, um rapaz bom. (a tua função é retirares função ao homem inesperado, ao homem da frase imatura que sempre se diz). disseste alguma coisa? ela responde que não disse nada e acompanha-o à porta.

segunda-feira, março 02, 2009

uma mensagem

a sua casa e a de todos os vizinhos ficou sem luz. a sua casa, que já é preta, escureceu contra a luz que lhe diz amanheceu e a rapariga, a mulher, pousou com vagar os pés por onde andava, meia nua, escutando o vento que nasce no cemitério. demorou a entender que a escuridão não era só da sua casa preta, mas do prédio inteiro, e ali ficou, sentada numa cadeira, molhada, meia nua, encontrada na luminusidade aglutinante do ecrã de um telemóvel.
uma alegria.
uma mensagem.
uma alegria.

terça-feira, fevereiro 17, 2009

a palavra que mata

diante dos seus olhos, os olhos familiares a cuspirem a palavra que mata, que é a que nos faz confirmar a suspeita que se havia confessado à mulher sábia: eu amo quem não me ama. a palavra desenha-lhe o corpo em muitos anos abafados através de uma garganta jovem, bonita, hoje castigada de veias de ódio a dizerem-lhe: tu não tens o direito de ser assim, que é como quem diz: tu não tens o direito de ser. invoca-se o passado da agedida para agredir e consegue-se agredir, e é nesse instante que o sangue de cristo que nos amou desde há 25 anos pode ser puxado por um cano de esgoto. os pulsos dela estão cortados por mãos alheias, as mesmas que lhe ampararam a cabeça, lá atrás, quase morta. essas mãos, hoje, são jovens, têm botões de punho, vivem com medo do medo dos outros, do que os outros vão dizer-lhe à conta dela, e por isso não estão a cuidar dela, mas delas, das mãos que se descobrem nos novíssimos botões de punho, das mãos que hoje ameaçaram bater numa mulher.

sexta-feira, fevereiro 13, 2009

dois anos ontem

ontem não escrevi a dizer-te: beijo a tua fotografia há dois anos (já?). ontem fiquei antes em silêncio, até uma criança tua cantar com a força que eu não tenho, recusando-se a dizer adeus. volto a prometer-te que nunca te conjugarei no futuro e daqui a um ano direi o mesmo. ainda a semana passada senti a tua mão sobre a minha, quando passei numa estrada e não via como manobrar as mudanças do meu carro. meu amor.

terça-feira, janeiro 27, 2009

depois

no dia seguinte, vem o medo de si. afinal (afinal?!, ainda não aprendeu?) não tem controlo sobre os efeitos dos seus feitos e diz: vem aí a minha doença, mãe. vem aí tudo, tudo outra vez, a minha conquista a desfazer-se de frente para trás, que medo.
agarra a respiração e recorda-se dos longos curtos minutos em que escapou à solidão e vê no plasma em frente do cadeirão velho o seu preço sob a forma de um colete de forças.
não começa a chorar, antes confessa-se àquela mulher, que lhe diz: eu não te deixo cair, estás muito bonita, forte, chegaste até aqui, já passou, eu não te deixo cair.

quinta-feira, janeiro 15, 2009

s. t.

o piso estava molhado e o carro ganhou vida. acabou num buraco, varrida a auto-estrada e caída numa encosta a 120 km/h. tudo se partiu e morreu naquele carro. menos ela que insiste em sobreviver. saiu do carro reduzido a metade e a arriscar um incêndio, trepou a montanha e aguardou deitada pela ambulância: eu, eu ,eu.
as dores de cabeça intensas, duas feridas no corpo e os músculos desenhados por dez dias a dizerem: tu, tu, eu, eu.
a morte passa-lhe ao lado mais uma vez. há uma voz familiar, feminina, que está a ficar velhinha e que se não conforma que ela não tenha meditado sobre o facto de Deus, deus, ter escolhido que o fim não fosse a sua morte.
passam muitos dias. a casa continua preta, como escolheu. o corpo continua quieto, como vem escolhendo.
- isto não pode ter continuação.
- eu sei.
- já passaram dois anos, acho.
- faz o que quiseres.
- tenho de ir, um horror esta pressa.
- não faz mal, é bom fingir que se é de alguém por um bocado.
(estes meus músculos doridos)
a noite chega e o preto do céu entra pela janela e casa-se com a casa preta.
(entra o amigo)
(sai o amigo)
- vai embora, antes que me doa ficar só numa casa enorme.
- enorme és tu.

quarta-feira, dezembro 24, 2008

preferias não ter sofrido?

o que eu queria era derrubar as palavras todas e com elas a gramática, as figuras de estilo, eliminar os adjectivos, inventar tudo de novo, porque não há palavras para a palavra de sempre que é a palavra dor. o projecto falha e tenho de dizer que esta dor dói mais do que as outras porque engana com intrevalos que fazem acreditar na sua derrota, mas ela cai a pesar uma tonelada no sábado de manhã, e sem aviso volta-se ao princípio da doença e ouve-se uma voz que nos diz que isto é cíclico e a nossa voz interior chora por andar nisto que é cíclico há mais de cinco anos. preferias não ter sofrido? ouve-se essa pergunta e sabe-se que não, mas sabe-se também que sim, que quanto a esta dor cílica, que nos nasce na alma, preferíamos não ter sofrido, não sofrer, não ter nascido. fica um deserto de esperança, o optimismo está entalado numa centena de bulas esquecidas nas gavetas dos anos de luta escondida. vai-se trabalhar de manhã e chora-se à hora do almoço e de noite. é-se forte, sim. muito; então em dias como os de natal...

segunda-feira, dezembro 15, 2008

s.t.

atreve-se, sai do caixão devagarinho, navega para uma sala desconhecida, de peso sente apenas um leve rímel nos olhos, ouve uma história pesada, não esperava por isso, por aquela história, vinda daquela boca, consegue não chorar, enquanto se enterra no relato, porque sai da sua própria dor e entra numa dor anónima, embora agora sua, como sempre faz às dores, dobra-se no sofá, ouve, a história e a música que a anima para viver, ouve também o som do cinto que se desaperta, preciso de afecto, eu também, o copo de água é grande, como a história de dor que escuta, cada vez mais colada à sua pele, sobretudo quando há silêncio, a história continua atrás das suas orelhas, na sua cintura irrequieta, no grito que não abafa, nos lábios que teimam em não se fechar, ser de alguém por uma vez que seja, há muito tempo, pensa, há tanto tempo, preciso de peso, pensa, cola-te à dor que te não contei e entra, entra, entra, fazes depois uma pausa e não sabes que estou a chorar por dentro, que três dias antes, como o 3 do teu quadro, eu estava morta, era só isto que eu queria, ouvir e sentir a tua história e diluir a minha assim.

quarta-feira, dezembro 10, 2008

s. t.

agarra o braço da mãe com muita força e caminha pelas ruas de Praga. ampara braço e corpo dessa maneira, sem ter prazer em nada, numa visão que seja, uma solidão demasidao ruidosa, uma outra cidade, inventada, por dentro, com as suas esquinas a acabarem todas numa prancha para saltar: a morte. as copas das árvores abanam e assobiam a palavra morte ou o verbo morre, toma consciência da perna direita e da perna esquerda, aflige-se até chegar ao hotel, para então curvar-se toda no seu desejo de saltar e agarrar o corpo da sua mãe com muita força e confessar-lhe ao ouvido que em minuto algum daquele passeio fez outra coisa que não treinar a sua morte: não aguenta mais, mãe. há um homem ao telefone que lhe sopra a certeza de que isso passa, que só ela não vê que a dor medieval que sente é provisória, que de fora é fácil ter uma outra certeza que se chama vida. ela diz-lhe que a sua provisoriedade vem sendo eterna, que não aguenta o peso de uma folha outonal, um sorriso estrangeiro numa sala anónima, um restaurante que lhe roube a segurança do quarto escuro, a maquilhagem que a impede de chorar.
mãe, eu vivo no inferno.
por ti.

quarta-feira, dezembro 03, 2008

proximidade II

a tia afastada-próxima morreu, ouve. morreu, ouve. morreu, ouve. morreu, ouve, morreu, chora.
o verbo é um choque que não mata a pessoa, apenas nos atira para a última vez vimos a pessoa. morreu, ouve. morreu, ouve, morreu, lembra-se: no átrio do hospital a palavra que não disse àquela dignidade comida por um cancro feroz, rápido, e agora as palavras da filha que lhe chegam aos ouvidos: eu não quero viver sem a minha mãe. diria assim: eu não quero viver sem a minha mãe. com esse pensamento abraça a prima afastada-próxima. a morta deitada ainda parecia cansada, de tanto que sofreu; pô-la a andar no átrio do hospital e recordou-se de pensar: a próxima vez que te vir estarás deitada entre quatro velas. um cartão a clamar que God couldn´t be everywhere, therefore he made mothers. abraçou a mãe da tia afastada-próxima, que perdera o marido quinze dias antes, e que misteriosamente lhe dedicou desde sempre um amor intuitivo, uma fraqueza, como diz, e na sua dor imensa, a um centímetro do rosto da filha morta, agarrou no seu rosto, que estava firme, sem uma lágrima, por ela, e disse-lhe: Deus lhe dê forças, minha querida.
(como é que ela sabia?)
saíu dali a tropeçar nas lágrimas de três mulheres.

quinta-feira, novembro 27, 2008

I found peace about you

I found peace about you.
para ela não há qualquer racionalidade que a obrigue a sentar-se nas circunstâncias que ditam essa meditação que resulta na frase que escutou: I found peace about you. a impossibilidade de uma vida, de uns anos, de um ano, de uns meses, que importa?, ela vive a emoção daquela emoção, o desenho de uma boca que lhe fez um só corpo, aquele daquela cozinha que não é a mesma passados estes meses, assim como o corpo é outro depois do milagre do Tejo e do Danúbio a fazerem uma cozinha, ela não quer meditar e render-se a uma amizade com esse capítulo em que as unhas faziam sangue de raiva da distância, quando se encontravam e se amavam, em que os dentes não se preveniam a juntar o Tejo e o Danúbio, ela não quer dizer-lhe I did the same. porque ela não é assim, não cuida do futuro, entraria nos dois aviões para chegar do Tejo ao Danúbio, até que uma fatalidade a impedisse, e se no entretanto a vida lhe sobrasse atrapalhada e comida de ansiedade, tanto lhe faria, porque nos intervalos correria a guerra que sabe viver, a construir um corpo, uma cama, um sofá, uma cozinha. a traduzir poemas entre o Tejo e o Danúbio e a abrir a luz para te ver escorrendo nas costas um outro rio, aquele fio de sangue que era o meu grito.

domingo, novembro 23, 2008

proximidade

no átrio do hospital, a familiar curvada sobre o filho e a filha, cinquenta e poucos anos, a lamber o chão com os pés. à pergunta da mãe da observante respondeu com um sorriso comido pelo cancro, que lhe não comeu a bondade, mas que lhe escreveu a palavra cansaço em todos os gestos e que fez do seu corpo um grito de dor. viu-a quase morta a encontrar, curvada sobre o fiho e a filha, um banco.
a rapariga que observa não dirige uma palavra àquela dignidade; esconde os exames médicos que acabara de receber e sorri para a tia afastada-próxima.

segunda-feira, novembro 17, 2008

para a frente

uma mesa em brasileiro.
- anda para a frente, garota, foi ela; não foi você que fez aquilo.
(uma mesa em brasileiro muito redonda, confinada, pronta para ela dizer estou encurralada)
mas antes:
- é isso. é isso mesmo, não disse.
(olhou-(o)).
sentiu as costelas vivas na cadeira e ficou a ouvir o rapaz alegre e sábio, ela respirava contra a cadeira e estudava aquele sorriso corajoso, as suas costelas desenhavam uma vida ao contrário.
- é isso. é isso mesmo, não repetia.
- que vista linda.
- é.
- vamos?
- i m e d i a t a m e n t e, que o meu corpo não é só costelas.

terça-feira, novembro 04, 2008

s.t.

Constituição da República Portuguesa comentada, os últimos meses de Salazar, o Público, o Diário de Notícias, um site para conversar que não abre, um cinzeiro sujo, a colega em frente, o relógio, quatro relógios, um telefone a tocar, esta a sua mesa, nada que chegue para ocupar a cabeça, para desocupar a cabeça, dela, hoje uma menina faz treze anos, num minuto dirá a sorrir parabéns, meu amor, hoje também chegará a noite e o sono, para não dar pelo tempo por oito horas, aflita porque amanhã a mesa terá a Constituição da República Portuguesa comentada, os últimos meses de Salazar, o Público, o Diário de Notícias, um site para conversar que não abre, um cinzeiro sujo, a colega em frente, o relógio, quatro relógios, um telefone a tocar, nada que chegue para ocupar a cabeça, para desocupar a cabeça, dela, a sua inimiga indegolável, dia para dia maior o mapa da ocupação, teme dar-se por vencida, dorme de tarde enganando os relógios, acorda para jantar e há pessoas. dependências. está viva.

quinta-feira, outubro 30, 2008

inconsistência

dar a nossa a vida a quem pergunta por ela
(eu perguntei por ela sem grande sentir)
explicar a nossa dor a quem se deu o gesto
(eu ouvia mas mas mudava a frequência da rádio ao mesmo tempo)
esperar que o telefone toque como naquela semana parecida com esta
( )
doer ter feito um desenho com as mãos com tanto jeito
doer ter dado conta da nossa dor
doer ter pensado que a dor doía no outro
ocupado
a escapar-se
entender o silêncio
e depois:
viver o silêncio

domingo, outubro 26, 2008

Inferno

pensava que conhecia o inferno, mas estes anos todos andou pelo purgatório. sabe o que é um ataque, sabe o que é quase morrer, mas o seu corpo estava sempre encostado a qualquer coisa, e nunca cegava. era atirada sem piedade contra paredes cobertas de espinhos, mas as paredes são condição de espaço, e por isso ela estava ali e via dali.
- estou péssima: eis o anúncio do início da semana
- é uma fase, isso passa.
chegam os três dias temidos e entra num não-lugar; tudo é dor e chamamento para morrer imediatamente, antevendo os cerimoniais em todos os seus sons, em todas as cores dos tecidos deles. não há esquinas, não há paredes, não há onde amparar o corpo para ganhar perspectiva e cega-se. há, o que é violentíssimo, gravidade, mas não cai num qualquer chão, não choca com nada, quando a dor insuportável a faz circular a alta velocidade e lhe dita morre imediatamente. não há qualquer apoio, ponto de chegada ou ponto de partida.
(a dor em infinita vertigem).
grita mãe, mãe, mãe, esmurrando a cabeça, até a mãe aparecer. ao fundo, o olhar seguro do homem que veio de avião em seu auxílio. não chega. chora muito alto, agarra-se à barriga da mãe e quer muito entrar lá dentro para começar tudo de novo.

domingo, outubro 19, 2008

domingo só

chegou a única mensagem que não lhe traz nada senão a morte. o dia começou azul fresco numa praia onde ao longe as gaivotas não ameaçadas a deixaram dormir em vez de morrer. às cinco da tarde já viu um filme enrolada numa manta a recordar-se de como a temperatura mudou entre o meio-dia e aquela hora: começa a pensar e a fumar. está descalça e o coração acelera sem aviso. o silêncio é tão espesso que as lágrimas correm de fora para dentro. lembra-se do princípio dos três dias que matam as semanas e não sente calor. lembra-se da única mensagem que não lhe traz nada senão a morte. à hora do almoço sorria com um amigo e uma voz interior perguntava-lhe se pensava mais na morte ou se pensava mais na velhice. quando chegar a velha os vizinhos terão paz. mas a sua voz sussura-lhe que não verá num espelho uma velha. não recebe a carta que lhe daria talvez uma semana de vida. não recebe a mensagem que lhe daria talvez uma hora de alegria. chegou a única mensagem que não lhe traz nada senão a morte. morde a língua para fingir que quebra o cimento do silêncio. quando era pequena, havia a missa das sete. agora bebe um copo à mesma hora. de manhã, bem vistas as coisas, já estava enjoada. secou-se após o banho a ver a sua amiga morta mesmo antes de rumar à praia. fazia o creme circular à volta dos olhos e via aqueles olhos verdes. hidratava a boca seca e ouvia a boca da amiga morta falar da certeza da vida eterna. então perguntou-se nua se a amiga morta ainda a amaria integralmente, agora que podia ver tudo o que por cá fazia. esse pensamento foi o roupão a cobri-la da tristeza que cresceu em silêncio pelo dia fora. quase seis da tarde e a dor, ou o vazio, que são sinónimos, é enorme.

sexta-feira, outubro 17, 2008

Sonhos IV

cada Sábado um instante, mas depois uma facada, enche-se de sangue, as palavras estão gastas, são muitos séculos e muitas pessoas a utilizarem palavras, por isso é com muito ódio que se força a dizer que depois do sangue vem o tal cansaço e a raíz da ansiedade semanal, mais um frasquinho de veneno para a soma dos instantantes inúteis, como este homem, que lhe ataca os vícios como um soco nos rins e que está de perfil. ela olha-o e vê quatro olhos na sua face. dois onde devem estar e mais dois um pouco mais abaixo e o homem fala como se ter quatro olhos fosse normal, mas ele tem mesmo quatro olhos, e talvez ao acordar ela se dê conta que aquele peixe gigante que a sangra como nenhum outro tem sempre duas intenções, e daí o horror de quatro olhos; casa sábado um instante e o sangue dá nestes sonhos. deita-se no divã e perguntam-lhe pelo seu poder. a música soa sempre muita alta, ela tem, sim, muito poder, mas depois vem uma facada, enche-se de sangue, sonha com um rosto com quatro olhos, atira as pessoas pela janela, faz de todos os rituais o retrato da sua tese sobre os afectos e vai à sua vida, com a raíz da ansiedade semanal bem semeada.
bebe muita água.

quinta-feira, outubro 16, 2008

"talvez a ternura nos salve"

um dia ela estava como uma balão por soprar e o escritor escreveu-lhe talvez a ternura nos salve. ela explica-lhe que são quase dois mil dias de balão por soprar, essa coisa de já não amar mas de ter a imagem tão certa do que foi isso, mesmo que lhe digam talvez ficciones o passado, tanto faz, são quase dois mil dias de balão por soprar, e lá atrás havia um poema de manhã, sempre, ou muitas vezes, colado no espelho da casa de banho. de noite havia um veludo escurecido pelo tempo, não era só genética, umas costas que olhava depois de adormecidas para falar com elas e dizer-lhes tão-só obrigada. são quase dois mil dias de balão por soprar, mas talvez a ternura nos salve, de certeza que a ternura nos salva, diria, porque as pernas sabem do ofício de andar, não desistem. são quase dois mil dias, são, mas a ternura talvez nos salve, por exemplo numas mãos que deslizam a construir a palavra ternura numa pessoa que nos diz como estás? é muito.

terça-feira, outubro 14, 2008

A não perder

Ver: alguns dos quadros do Zé Lourenço que vão amanhã a exposição na Sociedade de Geografia de Lisboa na Rua das Portas de Santo Antão às 16h30