sexta-feira, junho 05, 2009

Apatia

O que me leva a escrever um texto não é o resto de chocolate profilático entalado entre a unha e a carne ou a descrição disso mesmo, isto é, o que me leva a escrever um texto é precisar de carregar um papel branco de sílabas pretas, interrupções da apatia, correr por entre palavras, uma mulher magra a contornar a chuva, é o que me leva a escrever um texto como o que te escrevi hoje em meu socorro, travada pela distância de duas línguas, pela distância do silêncio, o tempo do meio de comunicação, não ter a tua resposta, ou sequer um dos teus rostos, as tuas mãos um dia esmagaram-me, eis-me deserta num espelho temporal que só pode dizer de mim, o que me leva a escrever um texto não é o ardor de uma pele que se arrancou ferindo a carne, há antes o barulho, o mergulho no Danúbio e um olhar apreensivo porque me perdeu por instantes e disso só eu me lembro, isto é a solidão, e neste momento pensar numa bicicleta a percorrer Lisboa com a fome de não percorrer uma pessoa é a apatia a subir e a descer num vestido sem alças, dizia desculpa, de vez em quando, episódios leves agora numa unha limpinha, episódios pequenos, agora, esvaziado o Danúbio, embarco para Roma e vejo três inocentes mortos, abraço uma coluna do Panteão e grito: quero, regresso a Lisboa, que cidade tão bonita, um horror, dizes-me, um passarinho na tua mão, eu só tenho uma pátria, tem três andares e uma salinha, onde me sentei à hora do almoço, nem uma pessoa, tantas pessoas, uma vida, a minha, não inscrevi uma lágrima que fosse neste texto, sentei-me ali, na minha pátria, apática.