Ela vem de uma estrada que lhe comeu as solas dos pés; está flagelada, um Cristo feito mulher caindo para a direita e para a esquerda, para a direita e para a esquerda, é tanta a poeira no ar, fecha os olhos com força, sabendo-se há muito cega, cega, cega e a tombar, mas anda como se aguenta, uma música, um poema, a recordação do único beijo sem requisitos, a poeira infecta as chagas daquele andar, ajoelha-se por uns minutos, que são um ano ou dois ou quatro, e cospe nos dedos de unhas partidas; passa os dedos molhados pelos joelhos todos uma crosta em construção e recorda-se quando a brisa fura os eucaliptos e depois o seu cabelo, recorda-se de um pedido junto ao ouvido, um pedido amado, um pedido a amar, o seu corpo tão excitado, sem entender ainda tanta humidade conduzida com amor, então a voz pedia-lhe que molhasse os dedos e que os enfiasse nela, e assim fazia, aflita, nervosa, o mundo acabara ali, ali nesse gesto de cuspo, o mundo acabara ali, ali disse que teria um telefone novo, que teria uma agenda nova, que teria uma rotina nova, que teria uma morada nova, que teria uma cidade nova, que ficaria por aqui, que seria esta mulher regressada afinal ao mesmo Tejo, à mesma Alfama, ao mesmo inferno feito céu num dedo húmido a pedido; foi assim que o mundo acabou e foi assim que um dia a mulher descobriu que tinha os ossos de fora, tão novo isso de amar que emagrece, emagrece, e depois a aflição, regressar à copa dos seus milhares de eucaliptos para morrer vivendo, dizer adeus amando, prometer andando de costas, chorar descontroladamente e esfregar urtigas no sexo, na boca, e ver sangue e poeira e perguntar na terceira pessoa pelo reconhecimento desta mulher ferida feita Cristo ajoelhada. Eu?
segunda-feira, outubro 25, 2010
segunda-feira, setembro 27, 2010
Pinheiros
Talvez fosse Maio e o seu corpo repousasse como nunca ali onde às vezes são outros os sons, outros os passos, animais e visitantes que não os dos seus dias; talvez fosse Maio, cigarras, grilos, que nomes dar àquelas coisas que faziam um musical murmurado?
(um dia o Homem disse-lhe que preferia o campo ao mar – o campo tem mais nomes).
Talvez fosse Maio, parece que sim, recorda-se de uma brisa, de um antes e de um depois, de esse tempo ser apenas reflectido no sangue a correr mais depressa ou num ruído acrescentado ao dos bichos, ao do feno, ao do abanar leve da copa dos pinheiros
- A minha mãe junta amor aos pinheiros, teve saudades deles quando emigrada, é deles que fala quando descreve Roma, olha que lindos aqueles monumentos na várzea.
Talvez fosse Maio, não se recorda de picos no corpo, recorda-se da singularidade de um outro corpo ser-lhe contíguo, isto é: não era só um depois distante, um depois para ir embora, um depois para encostar as costas ao peito, era um corpo contíguo, isso: podia temperar os olhos desse homem numa tigela pequena de barro e deitar fora os caroços, por isso nada mudou em adjectivos, em nosso redor, em redor deles, nada mudou em adjectivos: pinheiros; erva; várzea; cigarras; e grilos, o cenário ficou com o que dele diríamos antes, o que mudou foi aquela contiguidade, daí que acrescentássemos sem estranheza silêncio ao silêncio, e o que merecia adjectivo era o sermos encosto sentido um do outro, tão sentido que um carro parou mas não parou e disse talvez.
- Quem era aquele rapaz tão bonito?
(uma história tão longa, meu amor)
Ela rompe a chorar porque não entende de que cidade da Estónia chega a voz na terceira língua. Uma voz a interromper as cigarras e os grilos, uma voz é uma história, outro fim assegurado, quero tanto que me agarres, pois claro, e és tão interessante, este diz és tão latina, que coisa tão estranha, uma mulher latina a tratar de ser expulsa, que dizes, Estónia? Que fará esse homem na Estónia, como era o sorriso dele, não se recorda de um Maio, recorda-se de se não lhe adivinhar as dores. Nada conseguiu ouvir sobre o que queria saber: queria saber acerca das árvores da Estónia.
As pessoas andam muito ocupadas
- Uma língua a subir-lhe a barriga e a dizer-lhe que ela é isto e aquilo.
Uma porta a bater.
O rapaz bonito apanhou um barco.
Só para ela os pinheiros terão cheiro.
quinta-feira, setembro 02, 2010
Eu não sabia
Põe a chave na porta à terceira vez, é sempre à terceira vez, na mão livre uma ocupação qualquer, e essa coisa qualquer pesa sempre, pesa e irrita, por isso irrita que seja à terceira que a chave entre na porta e sobre no elevador e diz tenho estas manchas na cara, parece que se chama tapete, eu era tão novinha. Era e ouvia: que sorte, mesmo a tempo e tens a vida toda, tão novinha. Sobe pelo elevador e passa a porta que é sua, cruza um prédio qualquer e procura um vizinho, faz hoje um mês que se fechou neste entra e sai, nunca se sentou numa esplanada, mas não dá por isso, isso: faz hoje um mês que se fechou neste entra e sai, e vê o amigo febril e esconde que teria de ir para uma escola aprender como se faz para viver se o amigo um dia não lhe abrisse a porta, portanto sorri porque vive como se este chegar a casa fosse para sempre; aliás: é para sempre. Ele é o para sempre dela. Cai no sofá, que quente a casa, ela, ela na casa, os dois vagamente encostados: correu bem o dia, sim, não desesperes, a febre passa, olha o meu telefone a tocar. Há um mês que não ouvia a voz transformada em inglês para que se entendam, realmente nunca lhe ouviu a língua verdadeira, e ele diz-lhe que a tinha perdido, o telemóvel, os códigos, tudo, e ela responde agitada que lhe enviara um mail, que bom ouvi-lo respirar, mas ouve mais que isso, ouve: estou em Lisboa. Em Lisboa? O sofá puxa pelo seu corpo que ali desmaia cinco minutos, despede-se do amigo para uma energia desconhecida, tomar um duche, usar uma base e tudo, faz hoje um mês que se fechou neste entra e sai, como e onde ir, que é feito de Lisboa em Agosto? Parte uma unha enquanto faz da sua casa uma coisa e ele entra e integra-a num abraço. Afasta de si línguas, dedos, o que seja, quer muito ir jantar fora, tanto que está cega pelas lágrimas, you look so beautiful, sim, sim, mas eu queria mesmo era uma esplanada, um copo de vinho, levas-me? You look so beautiful, vamos, vamos, assim mesmo ao som do voltar atrás do elástico junto a uma anca, o meu quarto anda ocupadíssimo por toda eu, vamos para junto do rio? No elevador somos duas pessoas, duas pessoas? Duas pessoas, o meu rosto está outro, vamos num carro que não é meu, que coisa esta de me levarem? Antes mesmo de jantar contigo, antes mesmo de rir numa mesa arejada pelo rio, olho para ti sem que me vejas nessa morte e volto às minhas mãos com a minha solidão feita em pedra porque chegaste. É isso: passas por cá tu inteiro, que partes amanhã, e és o retrato do meu vazio. De resto, foi só nos teus braços que me dei conta de que o meu telefone não toca.
- It doesn´t ring?
- No.
segunda-feira, agosto 09, 2010
telefone
correu as ruas todas em redor do seu ofício: um pretexto, uma manicure ou manicura, ou como é que se diz, sabe lá, qualquer coisa que lhe beliscasse o corpo, talvez pelas cutículas lhe saísse o medo, antes que o medo vingue em terror; não tem hora marcada nem sabia que havia tanto sítio para limar as unhas nas ruas em redor do seu ofício, só com marcação, ouve, mas como se marca o final de uma dor?;
andou, andou, não pode correr, como lhe bate o coração e lhe sua o corpo inteiro, recorda-se de um cigarro e logo a seguir da memória do medo aumentado por um cigarro junto ao danúbio, olha para o cigarro e tem pena que não haja vício que lhe valha;
ou há?
- o que faz sem falar é um vício?
não, não;
sabe apenas que diz sempre que haverá o dia em que se lembrará deste dia, que se soma a tantos, mas quando vive uma das somas não aguenta nem mais um e resiste à salvação do telefone, dos números que sabe na ponta dos lábios ressequidos, nove, um, começa, desiste, deita o corpo no sofá que ficou em casa e despede-se de quem nunca se foi embora num pedido de perdão aflitivo.
quinta-feira, agosto 05, 2010
leste
- o que tens?
- tu.
- obrigado.
- pelo quê?
- vou então à minha cidade, tantos anos sem ver a minha cidade, tantos anos sem falar a minha língua e foram tantos os anos que a minha filha não pede afectos pelo telefone; quer uma cena moderna, electrónica.
- não pronuncias o nome da tua cidade, do teu país; fala-me na tua língua, sempre foram semanas a gritar com os gajos dos imigrantes.
- 58 dias, foi o que me disseram, não cumpri o prazo de dois meses, não é assim? dois meses para o meu cartão renovado, 8 anos em Portugal, dois dias ao telefone, o senhor está em lista de espera, assim fiquei, dois dias ao telefone, por isso 58 dias e dois dias fora do prazo.
- por dois dias ficaste um papel perdido nos corredores, sim, um bilhete de avião perdido, quantos ofícios feitos para esse bilhete?
(como é que se lambe lágrimas que não correm?)
- já está, novo bilhete, muitos gritos, vou à minha terra? que terra essa, que não vejo há tantos anos; ou é a terra que me não vê há tantos anos? não vou dizer-te o nome da minha cidade, para pensares nele como eu, muda; que queres que diga na minha língua?
- no domingo gostava de ir à tua praia secreta.
- (…………………….)
- que língua é essa? é russo?
- sim. porque os meus pais eram russos e foram ali parar. também falo a língua do meu país, mas a minha língua é russo.
- no domingo gostava que viesses comigo à minha praia deserta e que perdesses o peso de tantos anos nas mãos e que nadasses a ansiedade do rosto que a tua filha terá e que soubesses que a cena electrónica é um afecto que uma miúda distante conhece.
- falas inglês?
- sim.
- eu não.
- e então?
- gostava de falar.
- sabes dizer costas?
- sim.
- é muito.
- tu.
- obrigado.
- pelo quê?
- vou então à minha cidade, tantos anos sem ver a minha cidade, tantos anos sem falar a minha língua e foram tantos os anos que a minha filha não pede afectos pelo telefone; quer uma cena moderna, electrónica.
- não pronuncias o nome da tua cidade, do teu país; fala-me na tua língua, sempre foram semanas a gritar com os gajos dos imigrantes.
- 58 dias, foi o que me disseram, não cumpri o prazo de dois meses, não é assim? dois meses para o meu cartão renovado, 8 anos em Portugal, dois dias ao telefone, o senhor está em lista de espera, assim fiquei, dois dias ao telefone, por isso 58 dias e dois dias fora do prazo.
- por dois dias ficaste um papel perdido nos corredores, sim, um bilhete de avião perdido, quantos ofícios feitos para esse bilhete?
(como é que se lambe lágrimas que não correm?)
- já está, novo bilhete, muitos gritos, vou à minha terra? que terra essa, que não vejo há tantos anos; ou é a terra que me não vê há tantos anos? não vou dizer-te o nome da minha cidade, para pensares nele como eu, muda; que queres que diga na minha língua?
- no domingo gostava de ir à tua praia secreta.
- (…………………….)
- que língua é essa? é russo?
- sim. porque os meus pais eram russos e foram ali parar. também falo a língua do meu país, mas a minha língua é russo.
- no domingo gostava que viesses comigo à minha praia deserta e que perdesses o peso de tantos anos nas mãos e que nadasses a ansiedade do rosto que a tua filha terá e que soubesses que a cena electrónica é um afecto que uma miúda distante conhece.
- falas inglês?
- sim.
- eu não.
- e então?
- gostava de falar.
- sabes dizer costas?
- sim.
- é muito.
segunda-feira, julho 19, 2010
Diálogos curtos II
_ Diz lá outra vez a palavra que mais disseste na vida.
- Adeus.
- Tem a ver com o amor, por exemplo?
- O amor é insuportável.
- És uma cobarde?
- Sou muito magra.
quinta-feira, junho 17, 2010
O que fazes amanhã?
perguntou-lhe entre os ruídos de um meio de comunicação revelador da distância de tantos continentes o que fazes amanhã e a mulher respondeu como num telegrama da segunda guerra mundial que faria nada de especial, mas pressentiu uma imprudência chamada desejo, calou-a, no entanto, que silêncio depois de uma resposta cheia de riscos?, isto é, cheia de interferências a cortarem duas vozes, ou que contra-resposta?; e se amanhã? veio então a proposta chamada desejo, com ponto de interrogação, um avião, dois aviões, três aviões, quantos forem necessários, e se amanhã?, e a mulher já a ver um amanhã, o amanhã, as vozes que podem dizer tudo, porque a voz vai sempre à frente dos corpos, as vozes feitas uma presença, duas pessoas, um homem e uma mulher, muito tarde e um aeroporto, numa língua em que se entendam, um comprimido para ansiedade, a palavra do desejo dela, um dia inteiro, um século lento à espera da noite escura no aeroporto, qual era mesmo a cidade de onde vinha o avião? unhas comidas, ou as peles em redor delas, pesa-lhe muito o cabelo longo, cada mulher que sai pela porta é o homem prometido, assim mesmo, as saias são calças com pénis vincados, as blusas abertas têm peitos amputados, tudo é ele, tudo és tu, esse desejo impudente, um avião, dois aviões, três aviões, quantos forem necessários, o amanhã é agora, eis que te vê sair por uma porta, és diferente da voz com interferências, espera-os e espera-nos vinho e queijo de Azeitão, amanhã três aviões de regresso às interferências, um hoje eterno é tudo o que o desejo impõe ou pede ou deseja, tens um sorriso muito inocente e quando não gritas gritas muito e sais e ela fica com a casa povoada.
quarta-feira, junho 09, 2010
sexta-feira, maio 28, 2010
Da cobardia e da coragem
Começa, desde logo, pela escravatura da gramática. Pela escolha das palavras. Eis o início da cobardia ou do medo de se dizer o que se é, o que se pensa, por causa daquilo que tem um nome: consequências. Numa pátria de gramática, a cobardia é uma cobra, os cobardes são escravos da língua, encostamo-nos para trás ao fim de um dia de opiniões e o ar está poluído de silêncios, isto é, do ruído enorme das palavras subsidiárias, as que acautelam as malditas consequências, as que asseguram que não se criam inimigos, as que não afunilam oportunidades futuras de convívios, desde logo profissionais. Eis então o silêncio desse ruído, todos os dias.
Nos murmúrios das mesas de café, dezenas de afirmações categóricas, dedos em riste, tanta gente afirmativa, tanta gente de peito aberto às balas, mas, depois, as faces desses murmúrios dão a sua fotografia aos textos que as desmentem, às intervenções que as integram no sistema dos bons costumes, faces sorridentes em apertos de mãos aos inimigos dos murmúrios das vésperas secretas, tudo assegurado, os amigos oportunos, os convívios para o que possa ser, os empregos de amanhã.
Há quem não tenha medo de uma máquina que não perdoa essa falta de medo passem os anos que passarem. Em bom rigor, há quem viva, mesmo, sem uma película de plástico transparente, porque genuinamente pensa, diz, escreve e fala sem a percepção de um sistema que regista, que pune, que cobra e que demite.
Os loucos, livres, ingénuos, na verdade, corajosos na vida pública porque o são numa mesa de café como o são na defesa de um amigo que leva uma facada numa esquina, são gente pouco atenta à manipulação dos cobardes com vestes de gente brava. São como as crianças recrutadas para os exércitos. Motivam-nos para darem a cara, para escreverem, para dizerem, para gritarem, aplaudem-nos em telefonemas privados, dão sugestões, dizem do que diriam no seu lugar, mas reservam esse lugar para os tais loucos, loucos de tão livres, que se esquecem, ou não sabem sequer pensar sobre isso, que cada palavra tem um preço, que cada intervenção assertiva cria um inimigo, que cada luta desinteressada interessa a alguém e é sempre olhada como interessada por tantos outros.
Os loucos de tão loucos pela liberdade caracterizam-se pela generosidade. Não sabem dizer não a qualquer pedido no qual vejam justiça. Emagrecem até ao limiar dos ossos pelos outros, se for necessário, e um dia, às vezes, acordam no espantoso acontecimento de um pedido deles não ser atendido pelo camarada, descobrem com a mesma perplexidade de um navegador que a bitola ética do outro não é a sua, verificam que há vinte portas fechadas por causa de uma denúncia justa, ligam para quarenta caixas de mensagens, encontram, enfim, um outro silêncio, o seu preço, e esse dá pelo nome de solidão.
É aí, nesse lugar, nesse lugar que é uma doença, a doença que predomina todas as doenças, a solidão, que o louco pela liberdade faz uma escolha: descobre o polvo que o rodeia e avança com os passos de sempre ou adere à poluição dos silêncios e junta-se em mesas de cafés, com a sua acutilância, de dedo em riste, denunciando as injustiças, as corrupções, as mentiras, murmurando-as, portanto, mas escorrendo-as no dia seguinte subordinado à gramática do compromisso, a ver se assegura portas abertas, chamadas atendidas, convívios sociais, amigos que dão jeito, trabalhos futuros.
Quando, nesse lugar, nesse lugar doloroso, mas de amadurecimento, o louco pela liberdade, o anterior ingénuo que tinha por normal não sofrer por carregar apenas a sua consciência, escolhe subordinar a gramática e não se subordinar a ela, escolhe riscar a palavra consequências do seu dicionário de convicções, temos um corajoso.
Em seu redor, um degelo. Ficarão poucos; os que contam. Mas, recordando Shakespeare, ele experimentará a morte apenas uma vez na vida. Já os cobardes, esses morrem várias vezes antes da sua morte.
Nos murmúrios das mesas de café, dezenas de afirmações categóricas, dedos em riste, tanta gente afirmativa, tanta gente de peito aberto às balas, mas, depois, as faces desses murmúrios dão a sua fotografia aos textos que as desmentem, às intervenções que as integram no sistema dos bons costumes, faces sorridentes em apertos de mãos aos inimigos dos murmúrios das vésperas secretas, tudo assegurado, os amigos oportunos, os convívios para o que possa ser, os empregos de amanhã.
Há quem não tenha medo de uma máquina que não perdoa essa falta de medo passem os anos que passarem. Em bom rigor, há quem viva, mesmo, sem uma película de plástico transparente, porque genuinamente pensa, diz, escreve e fala sem a percepção de um sistema que regista, que pune, que cobra e que demite.
Os loucos, livres, ingénuos, na verdade, corajosos na vida pública porque o são numa mesa de café como o são na defesa de um amigo que leva uma facada numa esquina, são gente pouco atenta à manipulação dos cobardes com vestes de gente brava. São como as crianças recrutadas para os exércitos. Motivam-nos para darem a cara, para escreverem, para dizerem, para gritarem, aplaudem-nos em telefonemas privados, dão sugestões, dizem do que diriam no seu lugar, mas reservam esse lugar para os tais loucos, loucos de tão livres, que se esquecem, ou não sabem sequer pensar sobre isso, que cada palavra tem um preço, que cada intervenção assertiva cria um inimigo, que cada luta desinteressada interessa a alguém e é sempre olhada como interessada por tantos outros.
Os loucos de tão loucos pela liberdade caracterizam-se pela generosidade. Não sabem dizer não a qualquer pedido no qual vejam justiça. Emagrecem até ao limiar dos ossos pelos outros, se for necessário, e um dia, às vezes, acordam no espantoso acontecimento de um pedido deles não ser atendido pelo camarada, descobrem com a mesma perplexidade de um navegador que a bitola ética do outro não é a sua, verificam que há vinte portas fechadas por causa de uma denúncia justa, ligam para quarenta caixas de mensagens, encontram, enfim, um outro silêncio, o seu preço, e esse dá pelo nome de solidão.
É aí, nesse lugar, nesse lugar que é uma doença, a doença que predomina todas as doenças, a solidão, que o louco pela liberdade faz uma escolha: descobre o polvo que o rodeia e avança com os passos de sempre ou adere à poluição dos silêncios e junta-se em mesas de cafés, com a sua acutilância, de dedo em riste, denunciando as injustiças, as corrupções, as mentiras, murmurando-as, portanto, mas escorrendo-as no dia seguinte subordinado à gramática do compromisso, a ver se assegura portas abertas, chamadas atendidas, convívios sociais, amigos que dão jeito, trabalhos futuros.
Quando, nesse lugar, nesse lugar doloroso, mas de amadurecimento, o louco pela liberdade, o anterior ingénuo que tinha por normal não sofrer por carregar apenas a sua consciência, escolhe subordinar a gramática e não se subordinar a ela, escolhe riscar a palavra consequências do seu dicionário de convicções, temos um corajoso.
Em seu redor, um degelo. Ficarão poucos; os que contam. Mas, recordando Shakespeare, ele experimentará a morte apenas uma vez na vida. Já os cobardes, esses morrem várias vezes antes da sua morte.
domingo, maio 23, 2010
almofada verde
seria bom que me ligasses, tu e só tu que me podes tratar por tu e dizes assim:
- como está?
então, dir-te-ia que fiz aquele esforço, aceitar as pessoas ou uma pessoa na sua simplicidade, não querer que ela saiba do que tu sabes, do poço enorme ao qual descemos, do que significa dizermos amor, deus, morte ou proclamarmos, sem o peso da esperança, one of this beautiful nights.
-como está?
então, dir-te-ia que hoje uma vida inteira, acontece-nos muito, não é?, o dia está um carrasco, saí uma vez por causa do tabaco, nuvens e calor, não consigo mover-me daqui à minha praia, vejo sempre o carro cair numa ravina, merda de memória tão viva, do que aconteceu e do que não aconteceu, eu queria uma coisa muito simples, saber se ali, naquele sítio exacto, estariam apenas dois corpos e pegadas de gaivotas ou mais algumas pessoas como nós, que sabem daquilo, e o mar não tem nada que saber, hoje está com um ondulado largo, bom para me perdoar o peso.
fica para outro dia.
-como está?
estou aqui, N. o dia é esta almofada daquela cor do hotel de Faro.
segunda-feira, maio 03, 2010
Dia da mãe
Não envelhece quem envelhece ao nosso lado, respondeu um dia o meu pai a quem lhe perguntava acerca do como de tantos anos ao pé de ti. São quarenta e um a ditarem uma declaração do amor que tu espalhas à tua volta e que me sustenta há trinta e quatro.
Num parágrafo, já escrevi quarenta e um e há escrevi trinta e quatro, unidades de tempo, mas poderia ter escrito unidades de tempo como a semana passada ou o dia de ontem ou aquele ano em que me doía o corpo ou aquele telefonema que começou no meu choro e acabou no teu sorriso sempre de esperança ou, melhor, de força, de tanta força, refeito na minha cara finalmente seca.
O Cabo da Roca é o mistério da beleza sem par e só de aparente perigo, por isso mesmo, porque aquela ventania é uma montanha imemorial de vozes sábias, é assim que me surge, quando lá vou porque sim, não preciso de dizer a ninguém, não tenho medo do que parece, apenas parece um abismo, porque encosto o meu corpo ao limite da Europa e descanso o olhar no único elemento que me rouba à introspecção, esse mar que só tão tarde descobri não acabar na linha no horizonte, por isso eterno, calmo quando quer, revolto quando tem de ser, revolto, mas sem me transmitir medo algum, antes mensagens, avisos tantos, que me dizem quando devo esperar em silêncio, quando devo gritar até que uma rocha se parta, quando devo procurar uma luz no nevoeiro, ou mesmo quando devo ignorar este último, porque há o outro, sempre o outro, e nem a cegueira de uma parede opaca nos pode fazer hesitar nos passos.
Tu, sardenta, com o toque irlandês do teu pai, foste sempre o meu Cabo da Roca. Há uns anos escrevi-te: o meu cabo da roca.
Quando te pergunto como é possível perder tanta gente pela vida e não cair numa cama, como nós, não te dares ao direito de deprimir, não morreres por uns tempos, como é possível essa sensibilidade militante de te doer tudo, a tua dor e a dos outros, a tua empatia sem igual, numa viagem até ao dia do teu nascimento, e ainda assim não te tremerem as pernas, porque a vida segue, há sempre que tratar dos que ficam, dos tais que precisam de se deixar morrer por uns tempos, dos que não aguentam a tragédia do que não vem casado com a palavra anunciado, dizes apenas, num sorriso, que estou a disparatar, porque cada um nasce como nasce e não está em ti passar por mais do que chorar o que tens a chorar de noite e acordar para fazer o que há a fazer.
Devias ter nos teus nomes alegria, emoção, loucura saudável, generosidade e força. E para mim tens. (Ó meu deus, e quando pegas num lápis, distraída e desenhas obras de arte; ó, meu deus, e quando alucinaste com um monte de barro e fizeste em seis horas o busto do pai e tiveste por razoável, quando o mesmo foi transformado em bronze, marcar uma consulta no dentista e, para horror deste, sacar da broca e corrigir o olho da tua obra espontânea!)
O meu Cabo da Roca, tu que choras com a arte e que tens princípios de ataques cardíacos com um jogo de futebol, tu que sabes, como um mapa minucioso, das minúsculas e enormes diferenças quotidianas das alegrias e dores de seis filhos e doze netos. Tu que sabes que a ventania, a calma, o nevoeiro, o abismo, têm sempre a sua beleza – não tenhas medo, dizes.
Hoje, tal como no tempo em que se disputava o lugar no sofá ao pé de ti depois do jantar, a minha mão e a tua face conhecem-se e reconhecem-se, tantos foram os anos de cumplicidade a aproximarem-se.
Obrigada, meu Cabo da Roca.
E não te esqueças do meu pedido infantil: tu até aos cem e eu até aos setenta.
Num parágrafo, já escrevi quarenta e um e há escrevi trinta e quatro, unidades de tempo, mas poderia ter escrito unidades de tempo como a semana passada ou o dia de ontem ou aquele ano em que me doía o corpo ou aquele telefonema que começou no meu choro e acabou no teu sorriso sempre de esperança ou, melhor, de força, de tanta força, refeito na minha cara finalmente seca.
O Cabo da Roca é o mistério da beleza sem par e só de aparente perigo, por isso mesmo, porque aquela ventania é uma montanha imemorial de vozes sábias, é assim que me surge, quando lá vou porque sim, não preciso de dizer a ninguém, não tenho medo do que parece, apenas parece um abismo, porque encosto o meu corpo ao limite da Europa e descanso o olhar no único elemento que me rouba à introspecção, esse mar que só tão tarde descobri não acabar na linha no horizonte, por isso eterno, calmo quando quer, revolto quando tem de ser, revolto, mas sem me transmitir medo algum, antes mensagens, avisos tantos, que me dizem quando devo esperar em silêncio, quando devo gritar até que uma rocha se parta, quando devo procurar uma luz no nevoeiro, ou mesmo quando devo ignorar este último, porque há o outro, sempre o outro, e nem a cegueira de uma parede opaca nos pode fazer hesitar nos passos.
Tu, sardenta, com o toque irlandês do teu pai, foste sempre o meu Cabo da Roca. Há uns anos escrevi-te: o meu cabo da roca.
Quando te pergunto como é possível perder tanta gente pela vida e não cair numa cama, como nós, não te dares ao direito de deprimir, não morreres por uns tempos, como é possível essa sensibilidade militante de te doer tudo, a tua dor e a dos outros, a tua empatia sem igual, numa viagem até ao dia do teu nascimento, e ainda assim não te tremerem as pernas, porque a vida segue, há sempre que tratar dos que ficam, dos tais que precisam de se deixar morrer por uns tempos, dos que não aguentam a tragédia do que não vem casado com a palavra anunciado, dizes apenas, num sorriso, que estou a disparatar, porque cada um nasce como nasce e não está em ti passar por mais do que chorar o que tens a chorar de noite e acordar para fazer o que há a fazer.
Devias ter nos teus nomes alegria, emoção, loucura saudável, generosidade e força. E para mim tens. (Ó meu deus, e quando pegas num lápis, distraída e desenhas obras de arte; ó, meu deus, e quando alucinaste com um monte de barro e fizeste em seis horas o busto do pai e tiveste por razoável, quando o mesmo foi transformado em bronze, marcar uma consulta no dentista e, para horror deste, sacar da broca e corrigir o olho da tua obra espontânea!)
O meu Cabo da Roca, tu que choras com a arte e que tens princípios de ataques cardíacos com um jogo de futebol, tu que sabes, como um mapa minucioso, das minúsculas e enormes diferenças quotidianas das alegrias e dores de seis filhos e doze netos. Tu que sabes que a ventania, a calma, o nevoeiro, o abismo, têm sempre a sua beleza – não tenhas medo, dizes.
Hoje, tal como no tempo em que se disputava o lugar no sofá ao pé de ti depois do jantar, a minha mão e a tua face conhecem-se e reconhecem-se, tantos foram os anos de cumplicidade a aproximarem-se.
Obrigada, meu Cabo da Roca.
E não te esqueças do meu pedido infantil: tu até aos cem e eu até aos setenta.
terça-feira, fevereiro 16, 2010
da subjugação
uma picada um pouco abaixo do externo, permanente. instala-se depois de se instalar, nela, isso, nela, o amor, o princípio do amor. perde solidez e um corpo desfaz-se em cera queimada, lentamente, às ordens da opinião do outro. talvez seja o que ele diz, talvez sim, talvez então tudo mais pequeno, o que fez, o que faz, uma ameixa e não um pomar, de uma semana de entrega o outro regista um gesto que parece ter sido desconfortável. ela não deu por isso e derrete-se toda na lembrança verbalizada ali, à sua frente, ainda ofegante de uma tarefa qualquer. diz-lhe, muda, olha para mim, para mim, para mim, a picada é tão forte quando me engano na fruta que compro, porque dói doer em vez de te bater.
segunda-feira, fevereiro 15, 2010
12 de Fervereiro
3 anos e eu não disse tu, ela ou nós, a ver se morrias de vez, a ver se eu vivia sem ti, mas morri eu sem te dar uma palavra, porque há três anos morremos ambas e teremos de aprender a viver com isso.
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