É a dor física que a faz ser ou ter um corpo. Tem uma dor de dentes e diz: tenho boca. Tem um pêlo encravado na perna e diz: tenho pernas. Ou então o sinal de uma memória aflita no esquecimento e diz: eu naquela pessoa, naquela dor. A dor pode ser passageira, não interessa, isto é, há um golpe, um dia, uma semana, um mês de vida que nos fez num outro corpo, noutra boca, noutras pernas. Ou sobretudo: sob um outro olhar. Visita um elevador uma vez por ano, um elevador lento, com demasiadas paragens, formigas que entram, que saem, e senta-se num canto. Levanta-se e parece-lhe encontrar um olhar numa porta quase fechada. Não se lembra daquela pessoa, mas antes dela a ser olhada por aquela pessoa: uma mão: uma voz: um sorriso: um gemido: um elogio: um desejo: uma maldade: tão depressa: tão depressa: ela: tudo isto: demora um segundo. Vira-se para a frente. Vai em frente.
sexta-feira, junho 26, 2009
Por dentro do silêncio
E fez-se o silêncio. Numa cadeira de napa as articulações das suas mãos tremiam, dobravam-se, um, dois, três, a dizerem-se envelhecidas, cansadas, uma unha partida na ansiedade com que fechou uma porta. Sente o suor nas suas costas ou o suor sente-a, desenha-a, um corpo demasiado usado, magro, chicoteado, em tempos abraçado, posto aqui, ali, na cadeira de napa. Leva os dedos aos olhos, limpa as lágrimas e arruma deus num lenço de papel desfeito em excreções, deus enrolado nas duas mãos pousadas agora, então, no seu colo em escamas. Pensa de si: sou uma pobre: olha, levanta a cabeça contra a rigidez muscular do pescoço, olha para a janela e observa uma árvore, mas quer ver uma ponte, um penhasco, um avião, um prédio de oitenta andares, um cabo em cima do mar, a árvore é-lhe imprestável. Diz: vou ter uma semana lixada. Diz: vou ter um dia lixado. Ouve: mais uma etapa da sua vida. Pensa: a minha vida um cigarro ou ela por entre as argolas de fumo. Desmaia no sofá sem amor, começa a sangrar e sonha com o pai.
quarta-feira, junho 24, 2009
Os Olhos de Himmler - Rui Nunes
É preciso viver uma vida inteira para se escrever este livro. Viver uma vida com o nome das coisas, definindo as coisas, definindo condições – como a pobreza: “a minha história, ou a falta dela, torna-me um pobre, entre muitos, porque os pobres são aqueles a quem a história abandonou e, por isso, estão sempre a inventá-la, não há quem mais histórias conte do que os pobres, embora toda a gente diga: isso é mentira. E com esta frase cheia de maldade tiram-lhes o que ainda lhes resta: a pobreza” (p. 30) – insurgindo-se contra o efeito de captura que a linguagem quase sempre tem. Rui Nunes, como o próprio diz, “estilhaça as palavras” (in JL Ano XXIX/Nº 1010 de 17 a 30 de Junho)
Este livro, escrito com gosto, oferece-nos um enigma. Começa numa viagem (I) a do homem principal que ainda desconhecemos o nome, uma viagem sem desígnio senão o do breve passo seguinte, por um rio acima, um homem velho, derrotado pela sua história, e pela natureza: os seus bichos, a sua escuridão, ou o sol, e logo no início o enigma dos seus olhos fechados e de não sabermos de quem são estes olhos velhos que súbito se recordam soldado a pontapear uma mulher. Este homem chama-se homem, isto é, chama-se Andreas e continuará a sua viagem num outro sentido, mais adiante.
Assim é, porque o enigma prossegue para um segundo capítulo – com a tua sombra abre na luz a porta (II) – que aparentemente paralisa a caminhada de Andreas. Aqui encontramos uma mulher idosa, num lar, junto a um rio, o rio Traisen, que nos situa na Áustria, a conversar com a sua filha, que vimos a descobrir ter o seu nome (p.22), duas mulheres de nome Greta, perdidas num diálogo só aparentemente alucinado: a filha, quase numa oração, suplica à mãe que decifre as frases soltas que o leitor entende não serem de alguém senil, mas de uma memória magoada a perseguir um nome. Nessa memória magoada Rui Nunes começa a construir talvez da forma mais definitiva a sua relação com Deus, essa ausência inevitavelmente repetida, na busca de um sentido, que ele sabe não existir: “uma mentira dia a dia partilhada” (in JL, cit.): por isso a mãe diz: “na verdade há um Deus em cada época da vida, um Deus que é a nossa sombra, uma sombra cada vez maior, tão grande que, muito velhos, só a vemos estender-se à nossa frente, um dia de sombra, uma vida, minha filha todas as tardes vejo a tua sombra a alongar-se” (p. 27).
Há um ódio àquela gravidez que sabemos dever ter ocorrido pelos anos vinte do século passado, e uma primeira referência à casca de uma laranja na p. 15, que vai ser um elemento sensorial fundamental do enigma. Que nomes escondes, mãe?: pergunta insistente a filha. A mãe esconde o nome Andreas e os encontros de anos de abuso com esse homem com nome de homem. O primeiro encontro surge na p. 34, relatado pela mãe, no qual Rui Nunes decompõe essa memória destruindo as palavras até à minúcia dos poros de uma pele, porque Rui Nunes vê o mundo por uma lupa e força as palavras a seguirem esse percurso e, nisso, é magistral.
Entramos no terceiro capítulo – A Viagem – onde apesar de Andreas continuar o seu percurso rio acima, largado à sorte da minúcia do que a beira de um rio pode fazer a um velho, interiormente faz um percurso ao contrário, à sua vida passada, Riga, Riga, Riga, ouve-se, e ficamos a saber que esteve na Letónia, lugar de horror na segunda guerra mundial.
No quarto capítulo – quem? Pergunta quem – as revelações da mãe Greta são mais intensas. O abuso de Andreas é agora nítido e nele a “estranheza no nome de Deus” (p. 44) e nele a filha pequena observante na porta entreaberta. Neste capítulo inicia-se a osmose do cenário da mãe e da filha e do percurso de Andreas. Neste último, há muito de Rui Nunes, como em todos os seus livros: “às vezes sente que há cidades que o procuram” (p. 48); “Deus (…) Esta palavra, às vezes digo-a. E fico mais só. É uma palavra tão só” (p. 50); “eis o problema do amor: suicidar-se pela repetição de um nome”. (p. 54); “nunca houve um país que sentisse meu” (p. 57).
Andreas faz fisicamente o seu caminho até ao lar, mas psicologicamente há uma regressão aos horrores de um passado nazi, dos campos de concentração, da sua participação no massacre de Mizocz, aos amontoados de mortos, a uma mãe morta, fuzilada, à frente do seu filho. De quando em vez, a casca de laranja. Enquanto isso, Greta pergunta retroactivamente numa fúria de quem é esta coisa na sua barriga e há sempre a voz que lhe dói de Andreas: não é uma coisa, é um filho. Começa a fazer sentido a repulsa por aquela criança. Os corvos são pontuações de lembranças, de nomes que passam a ter rosto, de pessoas assassinadas na guerra, Andreas, agora velho e chegado ao lar, lembra-se de algumas mortes. É sobretudo na recordação de Mizocz que os olhos de um homem, os olhos de Andreas, são finalmente os olhos de Himmler.
No último capítulo – Thalassa, Thalassa – Andreas e Greta, a mãe, estão juntos no mesmo lar, não se reconhecendo. O homem que destruiu aquela mulher terminou a sua viagem e está instalado na casa do desespero da velha que persegue o seu nome nos diálogos que a filha não entende. Cada um deles regressa ao seu passado. Ela ao cheiro ao laranja que é sempre o vestígio imagético do abuso, ele às suas mortes, ambos pontuando as recordações com a metáfora dos corvos. Há o dia em que Greta reconhece a besta através da janela e anuncia à filha a sua morte. A filha insiste, em desespero, quer saber que nome esse que a mãe persegue. A morte por uma vez significará Deus. E debaixo de uma árvore Andreas afaga o cabelo da velha que se encolhe em todo o seu ódio ouvindo as frases do seu passado de abuso, ainda que não reconhecida. Andreas conhece o seu fim trágico às mãos de Greta num grito de alegria metafórico de quem vê finalmente o mar.
O assombro deste livro é a sua imensa humanidade, é a fluidez de um enigma que se vai decifrando numa vida que se vive lendo o livro, porque assim é a vida também, sem a facilidade de uma narrativa alinhada pela evidência. O assombro deste livro é a sua sabedoria, em cada passo da viagem de Andreas, em cada passo do diálogo de Greta, as provocações sobre a linguagem, sobre Deus, o sofrimento, os nomes, o papel da memória, o peso dos mortos na história de cada um, o delinear da diferença entre ver e olhar, tudo isto é escrito e inscrito por um escritor superior e fica-nos, no final, a certeza de que é preciso viver uma vida inteira para se escrever este livro.
Este livro, escrito com gosto, oferece-nos um enigma. Começa numa viagem (I) a do homem principal que ainda desconhecemos o nome, uma viagem sem desígnio senão o do breve passo seguinte, por um rio acima, um homem velho, derrotado pela sua história, e pela natureza: os seus bichos, a sua escuridão, ou o sol, e logo no início o enigma dos seus olhos fechados e de não sabermos de quem são estes olhos velhos que súbito se recordam soldado a pontapear uma mulher. Este homem chama-se homem, isto é, chama-se Andreas e continuará a sua viagem num outro sentido, mais adiante.
Assim é, porque o enigma prossegue para um segundo capítulo – com a tua sombra abre na luz a porta (II) – que aparentemente paralisa a caminhada de Andreas. Aqui encontramos uma mulher idosa, num lar, junto a um rio, o rio Traisen, que nos situa na Áustria, a conversar com a sua filha, que vimos a descobrir ter o seu nome (p.22), duas mulheres de nome Greta, perdidas num diálogo só aparentemente alucinado: a filha, quase numa oração, suplica à mãe que decifre as frases soltas que o leitor entende não serem de alguém senil, mas de uma memória magoada a perseguir um nome. Nessa memória magoada Rui Nunes começa a construir talvez da forma mais definitiva a sua relação com Deus, essa ausência inevitavelmente repetida, na busca de um sentido, que ele sabe não existir: “uma mentira dia a dia partilhada” (in JL, cit.): por isso a mãe diz: “na verdade há um Deus em cada época da vida, um Deus que é a nossa sombra, uma sombra cada vez maior, tão grande que, muito velhos, só a vemos estender-se à nossa frente, um dia de sombra, uma vida, minha filha todas as tardes vejo a tua sombra a alongar-se” (p. 27).
Há um ódio àquela gravidez que sabemos dever ter ocorrido pelos anos vinte do século passado, e uma primeira referência à casca de uma laranja na p. 15, que vai ser um elemento sensorial fundamental do enigma. Que nomes escondes, mãe?: pergunta insistente a filha. A mãe esconde o nome Andreas e os encontros de anos de abuso com esse homem com nome de homem. O primeiro encontro surge na p. 34, relatado pela mãe, no qual Rui Nunes decompõe essa memória destruindo as palavras até à minúcia dos poros de uma pele, porque Rui Nunes vê o mundo por uma lupa e força as palavras a seguirem esse percurso e, nisso, é magistral.
Entramos no terceiro capítulo – A Viagem – onde apesar de Andreas continuar o seu percurso rio acima, largado à sorte da minúcia do que a beira de um rio pode fazer a um velho, interiormente faz um percurso ao contrário, à sua vida passada, Riga, Riga, Riga, ouve-se, e ficamos a saber que esteve na Letónia, lugar de horror na segunda guerra mundial.
No quarto capítulo – quem? Pergunta quem – as revelações da mãe Greta são mais intensas. O abuso de Andreas é agora nítido e nele a “estranheza no nome de Deus” (p. 44) e nele a filha pequena observante na porta entreaberta. Neste capítulo inicia-se a osmose do cenário da mãe e da filha e do percurso de Andreas. Neste último, há muito de Rui Nunes, como em todos os seus livros: “às vezes sente que há cidades que o procuram” (p. 48); “Deus (…) Esta palavra, às vezes digo-a. E fico mais só. É uma palavra tão só” (p. 50); “eis o problema do amor: suicidar-se pela repetição de um nome”. (p. 54); “nunca houve um país que sentisse meu” (p. 57).
Andreas faz fisicamente o seu caminho até ao lar, mas psicologicamente há uma regressão aos horrores de um passado nazi, dos campos de concentração, da sua participação no massacre de Mizocz, aos amontoados de mortos, a uma mãe morta, fuzilada, à frente do seu filho. De quando em vez, a casca de laranja. Enquanto isso, Greta pergunta retroactivamente numa fúria de quem é esta coisa na sua barriga e há sempre a voz que lhe dói de Andreas: não é uma coisa, é um filho. Começa a fazer sentido a repulsa por aquela criança. Os corvos são pontuações de lembranças, de nomes que passam a ter rosto, de pessoas assassinadas na guerra, Andreas, agora velho e chegado ao lar, lembra-se de algumas mortes. É sobretudo na recordação de Mizocz que os olhos de um homem, os olhos de Andreas, são finalmente os olhos de Himmler.
No último capítulo – Thalassa, Thalassa – Andreas e Greta, a mãe, estão juntos no mesmo lar, não se reconhecendo. O homem que destruiu aquela mulher terminou a sua viagem e está instalado na casa do desespero da velha que persegue o seu nome nos diálogos que a filha não entende. Cada um deles regressa ao seu passado. Ela ao cheiro ao laranja que é sempre o vestígio imagético do abuso, ele às suas mortes, ambos pontuando as recordações com a metáfora dos corvos. Há o dia em que Greta reconhece a besta através da janela e anuncia à filha a sua morte. A filha insiste, em desespero, quer saber que nome esse que a mãe persegue. A morte por uma vez significará Deus. E debaixo de uma árvore Andreas afaga o cabelo da velha que se encolhe em todo o seu ódio ouvindo as frases do seu passado de abuso, ainda que não reconhecida. Andreas conhece o seu fim trágico às mãos de Greta num grito de alegria metafórico de quem vê finalmente o mar.
O assombro deste livro é a sua imensa humanidade, é a fluidez de um enigma que se vai decifrando numa vida que se vive lendo o livro, porque assim é a vida também, sem a facilidade de uma narrativa alinhada pela evidência. O assombro deste livro é a sua sabedoria, em cada passo da viagem de Andreas, em cada passo do diálogo de Greta, as provocações sobre a linguagem, sobre Deus, o sofrimento, os nomes, o papel da memória, o peso dos mortos na história de cada um, o delinear da diferença entre ver e olhar, tudo isto é escrito e inscrito por um escritor superior e fica-nos, no final, a certeza de que é preciso viver uma vida inteira para se escrever este livro.
segunda-feira, junho 22, 2009
lâminas
a tua voz já não me adianta nada: diz. a tua voz adoece-me: insiste. mata a confidente, isto é, mata-a nessa qualidade, para mantê-la viva, ainda que uma sombra ao fundo do peso das suas lágrimas à hora do almoço: és uma sombra. tem duas gavetas na cozinha prontas para uma outra confidência, não as abre, pensa em abri-las, num derradeiro segredo, a bomba atómica da sua dor, recua e tem a memória de uma mistura simples: o seu corpo e uma onda quase fria. mas a tua voz já não me adianta nada. cala-te: grita: deixa-me aqui: doente: murmura. a ansiedade trepa-lhe pelo coração acima, vence-lhe a garganta, quando cinco crianças lhe sorriem com idades para se recordarem dela.
quinta-feira, junho 18, 2009
Grijó de Vale Benfeito
Há dias em que as pessoas não são elas, mas a sua história. Uma sombra caminha primeiro atrás de cada passo, larga, duplicando o corpo do homem, depois a sombra ganha a dianteira e diz: o teu passado é o teu presente e o teu dia de amanhã: há dias em que um homem regressa à cidade mais próxima da sua aldeia, pode ser Bragança, para doar a sua biblioteca, ao seu lado estão muitos filhos, a mulher, nove netos, mas depois de percorrida a biblioteca com os seus conterrâneos, o homem solta uma enorme sombra à sua frente: gritam as vozes da senhora Maria, do senhor José, enche-se-lhe a boca de bôla de azeite, murmuram o pai e mãe que emigraram da aldeia para Lisboa: o meu filho vai licenciar-se e a minha filha também: morrem hoje mesmo os cinco filhos do seu avô, levados pela tuberculose, sobraram três, nenhum era analfabeto. Uma sombra enorme faz este homem de oitenta e seis anos, nos seus olhos as lágrimas das viúvas dos homens vivos daquela terra de emigrantes. Ruma à sua aldeia e contempla numa Ave-Maria o túmulo dos seus pais, pobres, mas nunca humildes, vai aos restos da casinha onde nasceu, os netos pequenos assistem a tudo com os olhos muito abertos: este é o nosso avô.
sexta-feira, junho 05, 2009
Apatia
O que me leva a escrever um texto não é o resto de chocolate profilático entalado entre a unha e a carne ou a descrição disso mesmo, isto é, o que me leva a escrever um texto é precisar de carregar um papel branco de sílabas pretas, interrupções da apatia, correr por entre palavras, uma mulher magra a contornar a chuva, é o que me leva a escrever um texto como o que te escrevi hoje em meu socorro, travada pela distância de duas línguas, pela distância do silêncio, o tempo do meio de comunicação, não ter a tua resposta, ou sequer um dos teus rostos, as tuas mãos um dia esmagaram-me, eis-me deserta num espelho temporal que só pode dizer de mim, o que me leva a escrever um texto não é o ardor de uma pele que se arrancou ferindo a carne, há antes o barulho, o mergulho no Danúbio e um olhar apreensivo porque me perdeu por instantes e disso só eu me lembro, isto é a solidão, e neste momento pensar numa bicicleta a percorrer Lisboa com a fome de não percorrer uma pessoa é a apatia a subir e a descer num vestido sem alças, dizia desculpa, de vez em quando, episódios leves agora numa unha limpinha, episódios pequenos, agora, esvaziado o Danúbio, embarco para Roma e vejo três inocentes mortos, abraço uma coluna do Panteão e grito: quero, regresso a Lisboa, que cidade tão bonita, um horror, dizes-me, um passarinho na tua mão, eu só tenho uma pátria, tem três andares e uma salinha, onde me sentei à hora do almoço, nem uma pessoa, tantas pessoas, uma vida, a minha, não inscrevi uma lágrima que fosse neste texto, sentei-me ali, na minha pátria, apática.
quinta-feira, junho 04, 2009
tristeza ténue
há uma tábua lisa sem arestas que se vai fazendo com morangos pelo caminho. há uma televisão decomposta pelas imagens de quem a vê. essas imagens fazem parte da tábua lisa sem arestas que se vai fazendo e dela também fazem parte os morangos pelo caminho. num período de tempo alargado que se chama sorriso o fumo de quinze cigarros diários não fazem do ar um canalha corrompido, tudo é transparente, há uma tábua rasa lisa sem arestas que se vai fazendo com morangos pelo caminho.
mas a televisão ganha o rancor dos outros que se sentam com o outro ao nosso lado. o outro são os outros dele. “ouve-se sempre a distância numa voz”.
terça-feira, junho 02, 2009
Movimento pela igualdade no acesso ao casamento civil
Decidi juntar-me ao MPI por duas razões: por convicção e por dever cívico, razões que andam de mãos dadas. Tenho a convicção profunda de que há uma injustiça, uma imoralidade, grave, na sociedade portuguesa, a que o Direito civil português tristemente dá cobertura e a que urge pôr fim, para bem não apenas dos visados, mas para bem de todos. Tenho a convicção profunda de que um dos factores pelos quais se mede o estádio de civilidade de um país é a forma como o mesmo trata as minorias, pelo que acabar com o triste imperativo que resulta de uma lei datada pela homofobia e que podemos traduzir no mandamento dirigido às pessoas do mesmo sexo vocês não podem casar é melhorar a sociedade, e do contrato social de que todos fazemos parte. Trata-se de criar uma sociedade mais justa, mais livre e mais solidária, imperativos de um Estado de direito.
Decidi juntar-me ao MPI por dever cívico, porque aprendi desde cedo que nós não somos sem o outro, pelo que não podemos continuar a viver as nossas vidas como se uma massa anónima de murmúrios sem nome não nos incomodasse, eles, aquelas pessoas, que por acaso têm nome, existem, são pessoas, pessoas só, às vezes pessoas sós, na sua condição, com direito a serem pessoas por inteiro na sua dignidade, o primeiro princípio constitucional, pessoas a quem a lei, em nome de preconceitos hoje inadmissíveis, quer do ponto de vista constitucional, quer do ponto de vista moral, quer ainda do ponto de vista político, afasta do acesso a um bem, a um direito fundamental, o casamento, que tem consequências práticas e que tem um peso simbólico de inclusão do outro na normalidade dos conceitos.
Decidi juntar-me ao MPI por dever cívico, porque aprendi desde cedo que nós não somos sem o outro, pelo que não podemos continuar a viver as nossas vidas como se uma massa anónima de murmúrios sem nome não nos incomodasse, eles, aquelas pessoas, que por acaso têm nome, existem, são pessoas, pessoas só, às vezes pessoas sós, na sua condição, com direito a serem pessoas por inteiro na sua dignidade, o primeiro princípio constitucional, pessoas a quem a lei, em nome de preconceitos hoje inadmissíveis, quer do ponto de vista constitucional, quer do ponto de vista moral, quer ainda do ponto de vista político, afasta do acesso a um bem, a um direito fundamental, o casamento, que tem consequências práticas e que tem um peso simbólico de inclusão do outro na normalidade dos conceitos.
Este movimento é ainda muito importante porque, insisto, está em causa um direito fundamental, pelo que a questão devia ser simples de resolver, na senda da Holanda, da Bélgica, do Canadá, da Espanha, da Noruega, da Suécia, da África do Sul, ou dos cinco Estados dos EUA que já nos tomaram a dianteira, a questão é fácil de colocar e tem uma resposta muito clara se a virmos na sua simplicidade. No entanto, sabemos que há quem não entenda que é mais importante discutir a imoralidade do mandamento tu não podes casar do que um alegado conceito histórico de casamento aliado à procriação, ou as alegadas consequências ditas inevitáveis da nossa proposta como a poligamia ou mesmo - por que não? -o casamento entre pais e filhos, entre irmãos, eu diria até com animais, os argumentos terroristas que servem para desconversar e que são cegos a experiências como a da nossa vizinha Espanha onde o mundo não acabou, antes pelo contrário, onde o mundo continuou melhor, mais justo, mais solidário. Está aqui em causa uma questão identitária, ao contrário desses devaneios terroristas. Ninguém cometeu um erro, ninguém é, como se presume, um erro. Os homossexuais são pessoas por inteiro, sãs, como outras quaisquer.
Hoje, evidentemente, seria um atentado à autonomia individual pretender-se que o casamento tem por finalidade a procriação: só tem filhos quem quer, só tem filhos quem pode, casa quem quer. Mas é importante perceber que está em causa o acesso ao casamento civil, instituição estadual com século e meio, alheia a legítimas concepções religiosas ou outras. Em todo o caso, como curiosamente explicam os Professores Pires de Lima e Antunes Varela, o que há século e meio esteve na génese da proibição do acesso ao casamento civil por parte de pessoas do mesmo sexo foi entender-se não ser possível a comunhão plena de vida entre essas pessoas . Isto é homofobia pura. Pura e simples. Ignorante e cega à realidade de milhares de casais que existem, que fazem as suas vidas, que pagam impostos, mas que não são nós, são eles, são aqueles.
Não se pretende impor qualquer visão do casamento às pessoas de sexo diferente; mesmo que o casamento tivesse por finalidade a procriação, que não tem, não impediria o casamento de pessoas que não podem ter filhos; o facto é que a lei nega toda a especialidade do casamento sem filhos seja porque motivo for, isto é, nada há, em termos de regime, de especial nessa circunstância; e mais importante, esta desconversa da procriação é uma visão utilitarista das pessoas hoje, como já referi, inaceitável à luz da autonomia individual. De resto, alguém no seu perfeito juízo pode supor que mudando o casamento as pessoas vão ter menos filhos? A verdade é que se confunde casamento com filiação. E a verdade é que se esquece que os homossexuais têm filhos.
Hoje pedimos que se tome consciência de que os direitos fundamentais, enquanto expressão da dignidade da pessoa humana, garantem ao indivíduo um espaço de não intervenção alheia, querendo aqui chamar-se a esse espaço uma moral colectiva maioritária, ditada ou votada, decidida ou eleita, que lhe não permitisse esse acontecimento único que é ser-se, em liberdade, o que se é. Por isso mesmo, contra direitos fundamentais não valem, sem mais, maiorias, sob pena de se funcionalizarem os primeiros; é por isso, também, que os direitos fundamentais, sendo a asserção mais efectiva nas liberdades e nas competências, como é o caso, não admitem e devem resistir ao discurso do que diz a maioria sobre o comportamento a ele associado, ou do que é, conjunturalmente, a vontade parlamentar. Mais: é ainda pelo que se vem afirmando que as liberdades e competências, fortemente ligadas à dignidade das pessoas, não têm de esperar pelo consenso social para terem plena efectividade. Nesse sentido aponta-se uma vocação contramaioritária dos direitos fundamentais. Quer-se com este passo recordar que numa ordem constitucional fundada na dignidade da pessoa, à qual o Estado se subordina, quando um direito expressa claramente uma liberdade ou uma competência que inscrevem o titular num universo de seres livres e iguais em dignidade, só por razões muito ponderosas, excepcionais e com claro apoio na Constituição pode o legislador afastar uma categoria de pessoas daquele direito.
É, pois, absolutamente inadmissível qualquer tentação referendária sobre o direito de acesso ao casamento civil por parte das pessoas do mesmo sexo. Isso seria totalitário.
Pura e simplesmente, à luz do que referi, não é moral ou juridicamente aceitável retirar um bem a um grupo de pessoas sem razões para isso. E não há razões para isso. Razões, amigos, razões. Não há um interesse constitucional ou moral contrário a ponderar com vista a um resultado diferente do que aqui defendemos. Não há.
A sociedade prefere pensar que os homossexuais podem existir desde que não chateiem, desde que não apareçam nessa condição, desde que se disfarcem. Ignoram o sofrimento dessa condição de invisibilidade e não fazem o exercício sobre si próprios. Experimentem. Gostava de propor o exercício a um homem ou a uma mulher heterossexual casados. Experimentem imaginar o momento em que se apaixonaram. Não poderem expressar publicamente o vosso afecto. Eventualmente a vossa família não vos aceitar. Condicionarem cada gesto de expressão de um sentimento. Num momento de crise viverem a mesma apenas com quem compreenda que o amor que sentem não é aceite por parte da sociedade. Quererem casar, exteriorizar a vossa relação perante terceiros, aceder a esse bem jurídico e social e esbarrarem com uma lei que vos diz que vocês são anormais para o efeito. Experimentem o exercício.
A questão é que o Direito vai à frente no derrubar das discriminações em matéria de direitos fundamentais e não espera por consensos sociais. A não ser assim, não tinha acabado a escravatura, não se tinha consagrado o sufrágio feminino, não tinha permitido o casamento inter-racial, que ainda nos anos sessenta, nos EUA, conhecia sentenças que temiam pelos filhos de uma tal aberração, e o próprio casamento não teria mudado radicalmente nos últimos cem anos no sentido da igualdade entre homens e mulheres e da facilitação do divórcio. Deixou de ser casamento? Não. Tal como na vizinha Espanha, quando tivermos a decência de acabar com o mandamento tu não podes casar, o casamento dos católicos continua incólume, cada pessoa casa com a sua concepção intocável, simplesmente há mais um grupo de pessoas com acesso a esse bem, pessoas silenciadas anos e anos, criminalizadas até há trinta anos, tidas por doentes até há vinte anos, mortas por regimes totalitários, que foram de humilhação em humilhação levantando a cabeça até a momentos como o de hoje onde todos possamos parar de dizer eles e possamos de uma vez por todas dizer nós.
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