sexta-feira, maio 28, 2010

Da cobardia e da coragem

Começa, desde logo, pela escravatura da gramática. Pela escolha das palavras. Eis o início da cobardia ou do medo de se dizer o que se é, o que se pensa, por causa daquilo que tem um nome: consequências. Numa pátria de gramática, a cobardia é uma cobra, os cobardes são escravos da língua, encostamo-nos para trás ao fim de um dia de opiniões e o ar está poluído de silêncios, isto é, do ruído enorme das palavras subsidiárias, as que acautelam as malditas consequências, as que asseguram que não se criam inimigos, as que não afunilam oportunidades futuras de convívios, desde logo profissionais. Eis então o silêncio desse ruído, todos os dias.
Nos murmúrios das mesas de café, dezenas de afirmações categóricas, dedos em riste, tanta gente afirmativa, tanta gente de peito aberto às balas, mas, depois, as faces desses murmúrios dão a sua fotografia aos textos que as desmentem, às intervenções que as integram no sistema dos bons costumes, faces sorridentes em apertos de mãos aos inimigos dos murmúrios das vésperas secretas, tudo assegurado, os amigos oportunos, os convívios para o que possa ser, os empregos de amanhã.
Há quem não tenha medo de uma máquina que não perdoa essa falta de medo passem os anos que passarem. Em bom rigor, há quem viva, mesmo, sem uma película de plástico transparente, porque genuinamente pensa, diz, escreve e fala sem a percepção de um sistema que regista, que pune, que cobra e que demite.
Os loucos, livres, ingénuos, na verdade, corajosos na vida pública porque o são numa mesa de café como o são na defesa de um amigo que leva uma facada numa esquina, são gente pouco atenta à manipulação dos cobardes com vestes de gente brava. São como as crianças recrutadas para os exércitos. Motivam-nos para darem a cara, para escreverem, para dizerem, para gritarem, aplaudem-nos em telefonemas privados, dão sugestões, dizem do que diriam no seu lugar, mas reservam esse lugar para os tais loucos, loucos de tão livres, que se esquecem, ou não sabem sequer pensar sobre isso, que cada palavra tem um preço, que cada intervenção assertiva cria um inimigo, que cada luta desinteressada interessa a alguém e é sempre olhada como interessada por tantos outros.
Os loucos de tão loucos pela liberdade caracterizam-se pela generosidade. Não sabem dizer não a qualquer pedido no qual vejam justiça. Emagrecem até ao limiar dos ossos pelos outros, se for necessário, e um dia, às vezes, acordam no espantoso acontecimento de um pedido deles não ser atendido pelo camarada, descobrem com a mesma perplexidade de um navegador que a bitola ética do outro não é a sua, verificam que há vinte portas fechadas por causa de uma denúncia justa, ligam para quarenta caixas de mensagens, encontram, enfim, um outro silêncio, o seu preço, e esse dá pelo nome de solidão.
É aí, nesse lugar, nesse lugar que é uma doença, a doença que predomina todas as doenças, a solidão, que o louco pela liberdade faz uma escolha: descobre o polvo que o rodeia e avança com os passos de sempre ou adere à poluição dos silêncios e junta-se em mesas de cafés, com a sua acutilância, de dedo em riste, denunciando as injustiças, as corrupções, as mentiras, murmurando-as, portanto, mas escorrendo-as no dia seguinte subordinado à gramática do compromisso, a ver se assegura portas abertas, chamadas atendidas, convívios sociais, amigos que dão jeito, trabalhos futuros.
Quando, nesse lugar, nesse lugar doloroso, mas de amadurecimento, o louco pela liberdade, o anterior ingénuo que tinha por normal não sofrer por carregar apenas a sua consciência, escolhe subordinar a gramática e não se subordinar a ela, escolhe riscar a palavra consequências do seu dicionário de convicções, temos um corajoso.
Em seu redor, um degelo. Ficarão poucos; os que contam. Mas, recordando Shakespeare, ele experimentará a morte apenas uma vez na vida. Já os cobardes, esses morrem várias vezes antes da sua morte.

domingo, maio 23, 2010

almofada verde

seria bom que me ligasses, tu e só tu que me podes tratar por tu e dizes assim:
- como está?
então, dir-te-ia que fiz aquele esforço, aceitar as pessoas ou uma pessoa na sua simplicidade, não querer que ela saiba do que tu sabes, do poço enorme ao qual descemos, do que significa dizermos amor, deus, morte ou proclamarmos, sem o peso da esperança, one of this beautiful nights.
-como está?
então, dir-te-ia que hoje uma vida inteira, acontece-nos muito, não é?, o dia está um carrasco, saí uma vez por causa do tabaco, nuvens e calor, não consigo mover-me daqui à minha praia, vejo sempre o carro cair numa ravina, merda de memória tão viva, do que aconteceu e do que não aconteceu, eu queria uma coisa muito simples, saber se ali, naquele sítio exacto, estariam apenas dois corpos e pegadas de gaivotas ou mais algumas pessoas como nós, que sabem daquilo, e o mar não tem nada que saber, hoje está com um ondulado largo, bom para me perdoar o peso.
fica para outro dia.
-como está?
estou aqui, N. o dia é esta almofada daquela cor do hotel de Faro.

segunda-feira, maio 03, 2010

Dia da mãe

Não envelhece quem envelhece ao nosso lado, respondeu um dia o meu pai a quem lhe perguntava acerca do como de tantos anos ao pé de ti. São quarenta e um a ditarem uma declaração do amor que tu espalhas à tua volta e que me sustenta há trinta e quatro.
Num parágrafo, já escrevi quarenta e um e há escrevi trinta e quatro, unidades de tempo, mas poderia ter escrito unidades de tempo como a semana passada ou o dia de ontem ou aquele ano em que me doía o corpo ou aquele telefonema que começou no meu choro e acabou no teu sorriso sempre de esperança ou, melhor, de força, de tanta força, refeito na minha cara finalmente seca.
O Cabo da Roca é o mistério da beleza sem par e só de aparente perigo, por isso mesmo, porque aquela ventania é uma montanha imemorial de vozes sábias, é assim que me surge, quando lá vou porque sim, não preciso de dizer a ninguém, não tenho medo do que parece, apenas parece um abismo, porque encosto o meu corpo ao limite da Europa e descanso o olhar no único elemento que me rouba à introspecção, esse mar que só tão tarde descobri não acabar na linha no horizonte, por isso eterno, calmo quando quer, revolto quando tem de ser, revolto, mas sem me transmitir medo algum, antes mensagens, avisos tantos, que me dizem quando devo esperar em silêncio, quando devo gritar até que uma rocha se parta, quando devo procurar uma luz no nevoeiro, ou mesmo quando devo ignorar este último, porque há o outro, sempre o outro, e nem a cegueira de uma parede opaca nos pode fazer hesitar nos passos.
Tu, sardenta, com o toque irlandês do teu pai, foste sempre o meu Cabo da Roca. Há uns anos escrevi-te: o meu cabo da roca.
Quando te pergunto como é possível perder tanta gente pela vida e não cair numa cama, como nós, não te dares ao direito de deprimir, não morreres por uns tempos, como é possível essa sensibilidade militante de te doer tudo, a tua dor e a dos outros, a tua empatia sem igual, numa viagem até ao dia do teu nascimento, e ainda assim não te tremerem as pernas, porque a vida segue, há sempre que tratar dos que ficam, dos tais que precisam de se deixar morrer por uns tempos, dos que não aguentam a tragédia do que não vem casado com a palavra anunciado, dizes apenas, num sorriso, que estou a disparatar, porque cada um nasce como nasce e não está em ti passar por mais do que chorar o que tens a chorar de noite e acordar para fazer o que há a fazer.
Devias ter nos teus nomes alegria, emoção, loucura saudável, generosidade e força. E para mim tens. (Ó meu deus, e quando pegas num lápis, distraída e desenhas obras de arte; ó, meu deus, e quando alucinaste com um monte de barro e fizeste em seis horas o busto do pai e tiveste por razoável, quando o mesmo foi transformado em bronze, marcar uma consulta no dentista e, para horror deste, sacar da broca e corrigir o olho da tua obra espontânea!)
O meu Cabo da Roca, tu que choras com a arte e que tens princípios de ataques cardíacos com um jogo de futebol, tu que sabes, como um mapa minucioso, das minúsculas e enormes diferenças quotidianas das alegrias e dores de seis filhos e doze netos. Tu que sabes que a ventania, a calma, o nevoeiro, o abismo, têm sempre a sua beleza – não tenhas medo, dizes.
Hoje, tal como no tempo em que se disputava o lugar no sofá ao pé de ti depois do jantar, a minha mão e a tua face conhecem-se e reconhecem-se, tantos foram os anos de cumplicidade a aproximarem-se.
Obrigada, meu Cabo da Roca.
E não te esqueças do meu pedido infantil: tu até aos cem e eu até aos setenta.